Volume 1

Capítulo 11: Feridas

Como se o inconsciente já esperasse pelo evento, Marco puxou Ibrahim contra si e gritou para Beatriz e Levi no meio da confusão.

Os ouvidos zumbiram, mas Marco se sentia estranhamente consciente de tudo ao seu redor. Percebeu que Régulo mantinha os olhos de cúrcuma cravados sobre o lado oposto do corredor ao passo que um grito de ordem abafado partia de Ibrahim na direção dos filhos, como se soasse por detrás de uma parede bastante grossa. O homem tomou Levi no colo.

— Rápido! Rápido! — berrou Ibrahim.

Sem pestanejar, Marco arrancou a pistola da cintura e apertou um gatilho pela primeira vez na vida, sentindo o recuo do tiro ricochetear pelo braço. Num frenesi, repetiu a ação por mais três vezes; a destra vibrando com força enquanto mirava para dentro da nuvem de poeira. Não ouviu o ruído dos projéteis se chocarem com concreto, concluindo depressa que penetraram em outra coisa mais macia. A resposta veio no formato de um guincho que espalhou ainda mais enxofre pelo espaço claustrofóbico, tornando tudo tão fétido que Marco chegava a senti-lo quase sólido na boca.

— Vão agora! — mandou ele, empurrando alguém para fora do corredor com os olhos úmidos de repulsa.

— Estão vindo pelo esgoto! — A voz de Beatriz ecoou de algum lugar.

Marco não sabia aonde ia, nem com quem ia. Tinha um palpite vago de que atravessara uma porta, divisando a silhueta escura de Régulo à distância. Sentia o calor de um corpo contra a mão esquerda em contraste ao peso frio da pistola na outra. Os pés faziam força contra o piso. Ofegava em desespero. Um ruído… um ruído angustiante de dor.

Foi o barulho liquefeito que o trouxe de volta à realidade, percebendo que as pernas o haviam carregado até o lado de fora do edifício. O sol brilhou em seu rosto por um momento ofuscante, os olhos se fecharam e os arredores sumiram de vista.

Não soube especificar o tempo que passou alheio à realidade, mas foi trazido de volta por algo que o sacudia com violência, gritando seu nome à distância… Marco… Marco…

Marco! — rugiu a voz alucinada de Beatriz.

Foi como um tapa no rosto.

— Que foi? — perguntou ofegante, como se todos os sons do mundo de repente lhe invadissem os ouvidos. Sentiu-se desnorteado.

— Ali… é ali — disse Beatriz. A voz quase incompreensível saía esganada através das lágrimas em profusão, tremendo descontroladamente enquanto apontava com o dedo.

Marco se virou, seguindo o rastro avermelhado que escorria pela calçada até o charco que se formava sob as vestes de Ibrahim, espichado de barriga para baixo contra o chão frio.

— Sr. Salvatore!

Correu assombrado até o homem, que soluçava qualquer coisa ininteligível enquanto era lentamente tragado para os domínios da morte, compreendendo com súbita lástima que nada mais havia a ser feito. Ibrahim agonizava, afogando-se no próprio sangue, resultado do ferimento pavoroso em forma de mordida que lhe arrancara todo o braço direito e parte da clavícula. A voz engrolava-se no próprio vômito.

Era algo muito difícil de testemunhar, ao passo que Marco travava uma batalha interna para criar coragem de apanhar a pistola e dar cabo do que via. Seria um ato de misericórdia ou covardia? Qualquer que fosse a resposta, não achava que um ser humano merecesse findar a vida de modo tão indigno, mas uma palavra — uma única palavra compreensível proferida por entre os lábios semimortos de Ibrahim — fez a realidade dar um salto diante de Marco.

— L-Levi…

Compreendeu, naquele segundo, que o sangue não podia ser de todo dele, avistando subitamente algo embaixo de Ibrahim. A coisa se mexeu.

Com os músculos em frangalhos, Marco fez um hercúleo e derradeiro esforço para arrancar o corpo frágil de Levi que jazia sob o torso do pai, embora não houvesse muito com o que se animar.

O menino ainda respirava, mas o fazia tão fracamente que mal se via o peito subir e descer, além do sangramento que não estancava…

Correu com Levi para longe do corpo de Ibrahim, depositando-o aos pés trêmulos de Beatriz. Assustada, não conteve o grito:

— Que houve com o braço dele?!

— Me ajude com o seu irmão. Segure-o pelos ombros — respondeu Marco, arrancando um pedaço da camisa de Levi ao se ajoelhar perante a ferida; o sangue escapava em golfadas do braço do menino ou, pelo menos, do que sobrara do membro.

A canhota de Levi se transformara numa maçaroca pendurada que já não chegava ao cotovelo, numa cópia menos piorada da versão do pai, embora a ferida se mostrasse tão pavorosa quanto. Beatriz, no entanto, segurava o irmão com firmeza obstinada, ainda que as mãos oscilassem devido ao horror.

Marco olhou para ela, observando que, a despeito da careta de repulsa, Beatriz não vacilou quanto ao que precisava fazer. Marco respirou profundamente, conseguindo cobrir o membro dilacerado de Levi com o pedaço de tecido improvisado, puxando o cinto das próprias calças para prender as faixas e estancar parte do sangramento.

— Não dá pra fazer mais que isso agora — disse Marco.

— Ele precisa de um hospital — agonizou Beatriz, o rosto empoeirado cortado de traços grossos de lágrimas. — Mas… e meu pai?

Marco fez uma negativa que pesou uma tonelada.

— Acho que tentou proteger o seu irmão…

Ela concordou devagar, assimilando a resposta, gesto que veio numa mescla de desespero e aceitação. Viu-a se levantar com dificuldade, arrastando-se até a traseira do carro estacionado, fazendo som de quem botava todo o café da manhã para fora.

Marco olhou para baixo, para o menino inconsciente e sem braço deitado de barriga para cima sobre o passadiço, sentindo-se verdadeiramente perdido em meio àquilo tudo. Viu-se em Levi. Poderia ser ele mesmo estirado ali no chão.

— O que eu faço, mãe? — sussurrou para si, as mãos sujas de sangue.

A respiração de Levi se tornava mais fraca a cada segundo.



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