Volume 1

Capítulo 12: Uma lição

Marco nunca imaginou que precisaria roubar na vida.

No desespero de ajudar Levi, porém, tivera que engolir a própria moralidade a seco. Correu até o supermercado, apontou a pistola para o primeiro carro ligado que encontrou — o motorista aguardava ao volante pela volta dos comparsas e das mercadorias — e tomou o veículo, enfiando Levi com Beatriz no banco de trás e pisando fundo no acelerador. Igualmente agitado, Régulo andava de um lado para outro sobre o carona, como se assimilasse que algo de muito errado ocorria por ali.

— Como ele está? — gritou do motorista, fazendo uma curva à direita.

— Perdendo muito sangue. — Beatriz respondeu com aflição, segurando o corpo do menino do jeito mais cuidadoso que a situação permitia. — Ele precisa de um médico, Marco.

— Sei disso. Tô indo pro Hospital de São Luque. Reze para ainda haver algum médico lá dentro. — E esmagou o crucifixo entre os dedos, encarando a paisagem se transformar num borrão através do para-brisa.

Enquanto acelerava, Marco conferia o caos instalado pelas ruas. A cidade vibrava com a gritaria, num tropel de gente correndo, saqueando, brigando e depredando tudo que encontrava pela frente. Baía das Rocas se transformara num pequeno pedaço do inferno.

Após sete minutos dirigindo como louco, avistou o prédio branco e azulado do hospital e o letreiro em caixa-alta com a inscrição de São Luque. Freou bruscamente ao lado do meio-fio, pulou para fora do carro e correu para a entrada.

— Socorro! — gritou Marco.

— Quem vem lá? — perguntou uma voz roufenha, saindo pelas portas envidraçadas do local.

Era uma mulher grisalha, de pele amorenada e coque frouxo. Devia estar na faixa dos quarenta, aproximando-se com uma espingarda calibre 12 colada ao peito. Estava acompanhada de mais três pessoas, dois brutamontes e uma segunda mulher, essa de cabelos curtos e escuros, todos de armas em punho e trajados com coletes e uniformes da polícia.

Sentindo o cano da pistola repentinamente gelar na cintura, Marco não se intimidou. Não havia tempo para se intimidar.

— Tem uma criança ferida no carro — gritou para o quarteto enquanto gesticulava por cima do ombro. — Precisamos de assistência médica urgente.

A policial da escopeta, que estava uns dois passos mais à frente dos demais, estacou no lugar, fazendo um gesto com a cabeça. Como resposta, o trio de policiais levantou as armas e mirou na direção de Marco.

— Está armado? — Ela perguntou asperamente.

Marco ergueu os braços no segundo em que Régulo se aproximou.

— Estou sim… — soaram estalidos das armas se engatilhando — … precisava de algo para me defender dos invisíveis.

— POR DEUS, PRECISO DE AJUDA AQUI! — Beatriz rugiu do carro.

O grito pareceu surtir efeito sobre as animosidades. Com olhar severo, a mulher grisalha se limitou a manear com a cabeça outra vez, no que foi respondido pela policial de cabelo curto, que se achegou a Marco. Um dos brucutus, entretanto, correu dali e voltou para o interior do hospital.

— Me entregue a arma, garoto — mandou ela.

Respirando fundo, Marco não viu alternativa que não obedecê-la. Enfiou a pistola na mão da policial.

— Tem mais com você?

— Numa mochila que deixei no carro.

Neste momento, as portas do hospital se abriram de chofre e o brucutu retornou com duas enfermeiras e um médico louro empurrando uma maca de rodinhas. Correram na direção do veículo.

A policial de cabelo curto se afastou depressa ao passo que a grisalha se aproximou, puxando um cigarro do maço. Acendendo-o com displicência, reparou Marco que a mulher usava uma pequena cruz de madeira ao redor pescoço. Ela deu uma longa tragada, expelindo fumaça para o alto. O céu já começava a se acinzentar. Não tardaria a chover de novo.

— Vê aquele lá? — disse ela de repente, apontando com a mão do cigarro para o médico que ajudava a botar Levi na maca. — Dr. Cássio Pereda, o homem está saindo para olhar todos os pacientes que chegam, nunca vi tamanha dedicação. Quem quer que esteja trazendo, estará em boas mãos a partir de agora.

— Obrigado. — A gratidão desceu como um bálsamo sobre Marco.

A mulher, porém, fez uma negativa, remexendo na escopeta. Régulo miou.

— Como se chama, jovem?

— Marco Pharas — respondeu de pronto, observando que os olhos acastanhados da mulher emanavam um tipo de sabedoria ao mesmo tempo severa e paciente.

— E o gato está com você?

— Está sim.

— Interessante. É o seguinte, Marco… — ela apontou com o cigarro por entre os dedos. — Sou a tenente Jacira de Lurdes. Tudo que precisa saber é que sou eu quem está no comando por aqui. Tem um companheiro nosso baleado na ala de emergência; levou um tiro de um viciado. Você não é um viciado, não é?

Marco negou com veemência, assistindo Beatriz e os outros cortarem rapidamente por eles e adentrarem no hospital.

— É ótimo saber disso — prosseguiu Jacira. — Você parece ser mesmo um bom garoto. Quer saber o que fizemos com o viciado?

O garoto fez um meio gesto com a cabeça. A mulher sorriu e prosseguiu mesmo assim:

— Digamos que… ele está livre das drogas, dessa vez para sempre, sem direito a reabilitação, tá me entendendo? O hospital está sob minha proteção agora. Minha equipe e eu estamos de olho em todos que chegam.

— Entendi sim, senhora…

— Não precisa me chamar de senhora. — Ela maneou em direção às portas envidraçadas. — Vamos para dentro. A única regra que deve seguir é a de ser gentil com todo mundo. Também falarei com a garota que veio com você, mas já adianto que acredito piamente naquela máxima de que gentileza gera gentileza, já grosseria… — Jacira deu dois tapinhas no cano alongado da escopeta.

Marco engoliu em seco, colocando-se a acompanhá-la.

— Opa — repreendeu Jacira, freando de chofre. — Tudo bem você ter um gato, mas não quero animais no hospital.

— Não posso me separar do Régulo. — O tom de Marco soou inflexível.

Jacira arqueou uma sobrancelha.

— Por que não?

— Porque ele pode enxergá-los.

A mulher arregalou as órbitas.

— Enxergar? Quer dizer… as coisas? As coisas invisíveis?!

— Ocultos… é como são chamados — respondeu Marco. — E não apenas Régulo. Acredito que todos os gatos possam vê-los.

O semblante paciente de Jacira foi tomado por uma severidade austera. Ela cuspiu o cigarro aos pés e apontou a escopeta na direção de Marco.

— Parece a par de muita coisa, garoto. Quem é você de verdade?

Marco a fitou com a mesma intensidade.

— Se deixar meu gato em paz, explicarei tudo que sei.

 

*******

 

Apesar de estarem distantes do litoral, Marco pensou ter sentido um estranho cheiro de maresia ao passar pela entrada do hospital, mas foi logo distraído pelo interior abarrotado de gente enfaixada, iluminada fracamente pelas luzes do gerador.

Entrementes, reparou Marco que a maioria das pessoas lançava olhares que mesclavam temor e respeito diante da figura empertigada de Jacira, abrindo caminho para que ela passasse como se uma sirene estivesse a tocar em torno dela.

Marco procurou por Beatriz, mas não a encontrou em lugar nenhum, supondo que a garota tivesse corrido para a emergência com Levi. Assim que esclarecesse a situação com Jacira, decidiu que seguiria imediatamente para lá.

Daquela forma, a mulher guiou Marco e Régulo até a sala de raios-X. Ela abriu a porta, segurando para que gato e garoto passassem primeiro. Quando a fechou, Jacira apontou para uma das cadeiras. A sala estava vazia.

Marco se sentou, mas a mulher ficou encostada à porta, mirando-o com olhar carrancudo.

— Desembucha.

Marco resumiu as palavras do Sr. Salvatore, desde a menção à Ordem de Vanitas até a teoria de que os Ocultos tinham surgido a partir de um ritual executado pela seita. Explicou também que não sabia porquê os gatos os enxergavam, mas que já tinha reparado nesse velho costume que os bichanos possuíam de encararem o nada como se vissem alguma coisa, descobrindo da pior maneira que, de fato, eles viam alguma coisa. Contou também sobre a aversão que os Ocultos tinham pela luz do sol.

Quando Marco terminou, Jacira permaneceu em silêncio por quase um minuto inteiro, deixando a sensação de incômodo se prolongar enquanto coçava o queixo sem reparar no próprio gesto.

— Ordem de Vanitas? — repetiu, por fim. Suspirou. — Olha, Marco, não saio espalhando essa história pra muita gente, mas em minha juventude fui noviça por quase dois anos. Sei bastante sobre religiosidade, mas confesso que nunca ouvi falar dessa Ordem. Não está querendo me enrolar, não é?

Ele respondeu com uma negativa sincera.

— Sei apenas o que o pai da Beatriz contou pra gente, e que a tal Ordem foi fundada aqui mesmo em Baía das Rocas.

— Por Deus… — Jacira correu a mão pelo rosto. — E o pior é que não dá nem pra negar uma história dessas. Minha equipe e eu fomos atacados por esses… Ocultos enquanto tentávamos salvar um subordinado. Acho que, depois de tudo, o que contou faz um pouco de sentido.

— É como estão dizendo por aí… talvez seja o fim do mundo.

Jacira bufou secamente.

— Se for, não tá lá muito parecido ao que li nas Escrituras.

— Talvez a situação tenha mudado agora — suspirou Marco. — Talvez a humanidade mereça um castigo pior que o Apocalipse.

Outro minuto de quietude, cortado apenas pelo ronronar de Régulo. A atenção de Jacira se voltou na direção do som. Encarou o gato preto.

— Sabia que, na idade média, esses pobres coitados eram associados a bruxas e demônios? — disse ela. — Principalmente gatos pretos como o seu. As pessoas os jogavam na fogueira com a justificativa de serem bruxas disfarçadas. — Jacira fez uma pausa. — Se o que me diz for realmente verdade, que eles podem mesmo enxergar esses Ocultos, não acha no mínimo irônico? Depois de tudo que já sofreram?

— Pode ser uma lição… — respondeu Marco com as vistas sobre Régulo, mas o olhar perdido muito além do gato. — Se as pessoas querem sobreviver, precisarão cooperar com quem antes desprezavam.

Jacira concordou devagar, afastando-se da porta.

— Então chame seu gato para vir junto — disse ela, em tom de seriedade descontraída. — Vamos dar uma olhada em Levi.



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