Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume II – Arco IV

Epílogo

Padrões multicoloridos dançavam ao meu redor. Formas de força. Combinações de leis naturais. Elementos infinitos que colidiam e se afastavam, dissolvendo-se e recompondo-se em um fluxo contínuo.

Eu fazia parte desse emaranhado mas, ao mesmo tempo, estava separado dele. O fragmento que me conectava à totalidade fora arrancado de mim, puxando-me bruscamente de volta à materialidade.

Senti minha pele — a camada fina e delicada que cobria minha carne. Era quente. Muito quente. Eu podia escutar meu sangue martelar dentro de mim, vibrando em meus ouvidos, ritmado e inquieto.

Eu estava respirando. Não era uma simulação da necessidade fisiológica de respirar, mas a sensação completa. Eu percebia o brilho das lâmpadas periféricas, o piso gelado sob os pés. Percebia tudo.

Diante de mim, um objeto metálico. Uma faca de cozinha. Seu gume estava firmemente cravado no corpo de uma pessoa prostrada sob mim. Seu rosto, seus olhos fechados... me eram cognoscíveis.

Uma mancha vermelha se espalhava pelo tecido da roupa. Sangue.

Que estranho. Por que algo dentro do meu peito doía tanto?

Ser capaz de sentir — de fisgar sensações concretas das coisas com a minha aparelhagem psíquica — só podia significar uma coisa: uma parcela da herança de deus fora extirpada de mim e absorvida por aquele corpo inerte.

E agora... éramos humanos. Indivíduos separados, distintos, ao mesmo tempo que—

O-o que era isso? Que impulso tempestuoso era esse que me mandava correr? Que tipo de emoção primitiva era essa? “Medo”? “Culpa”? “Pecado”? Ou será que... “tormento” a descrevia melhor?

Minhas linhas de pensamento, outrora ordenadas, se enredavam umas nas outras. Conceitos que eram absolutos perdiam o sentido, tornando-se uma massa disforme e estranha no interior da minha mente.

Lágrimas escorriam pelo meu rosto, sem parar. Elas caíam do queixo no mesmo ritmo dos tiques do meu relógio de pulso.

Eu já não era mais um ser alheio à causalidade. Eu possuía um passado, um presente e os momentos consecutivos do futuro. Cada fração de segundo se fechava para mim, como em uma contagem regressiva.

Soltei um grito abafado. Levantei-me, cambaleante, e corri na direção para a qual meus instintos me guiavam, o mais rápido que pude.

Desculpa. Desculpa. Desculpa. Alguém, por favor, me desculpa. Alguém me tire daqui. É tudo culpa minha. Estou com medo. Não quero mais ficar neste lugar. Não me deixem preso aqui, nem por mais um instante.

Vozes sussurravam à distância. Minhas pernas bambeavam, e uma luz se aproximava.

ᛜᛜᛜ

— Cheguei em casa.

Abri a porta e cumprimentei meus parentes. Da mesa de jantar, eles me responderam em uníssono:

— Bem-vindo de volta!

Dei um suspiro discreto. Ufa, que canseira. Um pouco atrapalhado, fechei o guarda-chuva e o deixei escorrendo ali mesmo, na bancada.

— Michiiii! Irmãozão! Olha o desenho que eu fiz na escola!

Entusiasmado, meu irmãozinho me chamou, acenando com um papel na mão. Sorri, fui até ele e baguncei seus cabelos carinhosamente.

— Um desenho, é? Deixa eu ver!
— Olha! A professora pediu pra gente desenhar nossa família! Esse aqui sou eu. Esse é você! E aqui tem o papai, a mamãe, o vovô e a vovó! 
— Woaaah!!

Tinha um traço infantil e colorido. Era muito lindo.

Teruki não chegou a conhecer a vovó, e não se lembrava do vovô, mas, sempre que pegava meu medalhão para brincar, eu lhe contava como eles eram legais e o quanto significavam para mim.

Por isso, ali estavam eles, retratados com auréolas e asas, do jeitinho que ele os imaginava.

— Está lindo, Ruki! Meu irmãozinho desenha tão bem!
— Você acha?! — Seus olhos brilhavam.
— Sim!
— Terumichi, você está ensopado — comentou o papai. — Quer que eu pegue uma toalha?
— Precisa não! Vou tomar um banho e já volto para comer. Ahh, tô urrando de fome.
— Não vá pegar uma gripe durante os exames finais.

Subi para o meu quarto e pendurei a mochila na cadeira da escrivaninha. Eu havia deixado as janelas fechadas quando saí, então estava escuro.

Acendi a luz do banheiro, que piscava sem parar. Mesmo depois de o papai mandar consertar, ela voltou a dar defeito. Lavei as mãos, o rosto, e comecei a me despir. Tirei o suéter, desabotoei a camisa...

Então, meus olhos recaíram sobre uma cicatriz no lado esquerdo do meu peito.

Fiquei ali, imóvel, observando-a em silêncio. A lâmpada continuava a piscar, me trazendo lembranças desconexas. Vozes de pessoas conversando. Movimentos bruscos. A sirene estridente de uma ambulância.

Foi no dia 1º de março de 2018, durante uma excursão escolar ao Museu Nacional de Tóquio. Uma pessoa tentou tirar minha vida. Mas essa mesma pessoa chamou ajuda e se entregou às autoridades.

Enquanto os socorristas tentavam me estabilizar, eu insistia, ofegante, que havia feito aquilo comigo mesmo, e que ninguém mais tinha culpa. Claro que não acreditaram em mim. Para eles, eu estava delirando.

A mãe dessa pessoa ajudou a custear minha cirurgia e os remédios. Ela orou por mim e acompanhou minha recuperação. Certa vez, meus pais precisaram se ausentar, e quem ficou comigo no hospital foi ela.

A senhora Miyashita.

Antes de sair, ela me perguntava se podia dar notícias, e eu acenava com um “sim”.

Os médicos que me operaram disseram que, por questão de um centímetro, não foi um procedimento de risco. Meu coração não foi atingido. O pulmão esquerdo sofreu apenas uma laceração superficial.

Provavelmente, o medalhão me salvou. A pedra de granada, agora lascada, era a prova disso.

Fui dispensado das avaliações finais e me formei. Depois que recuperei minha saúde, tinha um novo desafio para enfrentar: os testes de admissão da universidade. Mas fui mal. Tirei notas bem medíocres.

Eu deixei de ser o “Menino de Ouro”. Esse papel não brilhava mais. Qualquer esforço parecia um fardo esmagador, como se o mundo tivesse desabado sobre mim e eu não conseguisse me restabelecer.

Me entupi de medicações, algumas delas bem pesadas, e iniciei acompanhamento com um terapeuta. No entanto, não havia alguém a quem eu pudesse contar tudo o que aconteceu comigo. Não sem soar como um louco.

Para os profissionais e para minha família, meu adoecimento mental se devia única e exclusivamente ao que aconteceu no museu, e nada mais.

Era assustador. E solitário.

Quanto àquela pessoa, soube que ficou em um reformatório até completar vinte anos, o que foi há alguns meses. Na época, essa era a idade da maioridade penal perante a lei juvenil do Japão.

Apesar de ela ter respondido criminalmente, a sentença de prisão foi descartada após avaliações psicológicas e psiquiátricas. Disseram-me por alto que dinheiro esteve envolvido, mas eram boatos, eu acho.

Agora, essa pessoa levava uma vida completamente diferente, usando o nome de sua escolha.

Seus amigos chamam-lhe de “Tsu”.

Esses dias, descobri que se descobriu como x-gender. Durante o tempo na instituição, fez novos amigos — dentre eles, um com quem começou a namorar. Hmm... No momento, não consigo lembrar o nome dele.

Fiquei aliviado ao saber que também lhe foi garantida assistência social e psiquiátrica, além da rede de apoio. Foram tempos turbulentos para nós dois, mas acredito que os enfrentamos da maneira que podíamos.

Antes de se mudarem para Osaka, sua mãe pediu que nos encontrássemos. Dizia ser uma oportunidade para nos perdoarmos e termos um “fechamento”. Coisa rápida. Somente uma despedida, e nada mais.

Meus pais foram contra, é lógico. Não só por saber de quem se tratava, mas por uma nova doença ter sido notificada como pandêmica. Mesmo assim, no dia da partida, duas semanas mais tarde, eu fui vê-los.

— Passageiros do Shinkansen com destino à Estação de Shin-Osaka, Yodogawa-ku, 16:00, compareçam à plataforma de número 18 para embarque. Por favor, mantenham distância da linha amarela.

Conversamos normalmente no início. A senhora Miyashita se mostrou super atenciosa e preocupada comigo, como de costume. Depois de um tempo, levou as malas para dentro do trem, deixando-nos a sós.

Mudamos muito desde a última vez que nos vimos. Em aparência, e na forma de nos vestirmos.

Mas ainda havia uma similaridade entre nós: nossos olhos.



Ilustração colaborativa com @HAPI0_

— O ovo está estremecendo. Ele pode chocar a qualquer momento.
— Eu estarei aqui para zelar por ele e quebrá-lo com a espada ardente, na hora certa. 
— Então... não virá atrás de mim?
— Não.
— Tudo bem. Eu levarei sua dedicatória comigo — disse, tirando de sua bolsa a cópia do Atalanta Fugiens que o dei.
— E eu, a sua.
— Você não deveria. O que fiz não é nem um pouco perdoável.
— Se é ou não, já te dei a minha resposta no dia em que fez em esta cicatriz, bem aqui.
— Nós somos tão idiotas.
— Tem razão. Dois idiotas.
— Teru. Existe alguma separação imposta pelos deuses que não seja eterna?
— Existe — disse-lhe, após um breve silêncio. — Mas você tem um caminho a seguir sem mim. E, se um dia ele cruzar com o meu, só saiba que... meu único arrependimento foi não ter sido um bom amigo. 

Sua expressão descongelou, desvelando os olhinhos negros que eu bem conhecia.

— Você foi um bom amigo. Um melhor do que eu me permitia ver.
— Lembrarei disso. — Dei um fraco sorriso.

O celular vibrou.

— Minha mãe está me ligando. Melhor eu ir. Adeus, Teru.
— Adeus, Tsu.

Bye-bye, Lullabye.

As portas se fecharam, e o Shinkansen zarpou, levando consigo uma parte de mim. Permaneci ali, entre os cidadãos que iam e vinham, como se nada tivesse mudado.

Do bolso da calça, puxei o medalhão. Na superfície da joia lascada, estava refletido um par de estrelas douradas, invisíveis para qualquer outro olhar. Eram as minhas estrelas. Elas não demoraram a se apagar.

Estalos. Som de água borbulhando. Que entardecer barulhento. ... Bem, faz parte de domar os próprios demônios, eu acho.

Eu ainda era eu. Mas seria presunção dizer que este é o meu “verdadeiro eu”. Talvez eu nunca entenda quem realmente é Terumichi Kinjō. Só havia uma certeza: eu não era deus, tampouco o filho dele. Eu era eu.

Sentei-me em um banco da estação e deslizei os dedos pela tela do celular, procurando velhas fotos que tirei com meus amigos de uma terra distante. Um ritual diário. No entanto, a última era de 28 de fevereiro de 2018.

No pós-operatório, quando voltei a ter contato com o lado de fora, descobri que todas as mídias no meu armazenamento datavam só até a excursão. Ou seja, as únicas lembranças que eu tinha deles haviam desaparecido.

Nunca mais fotografei nada, esperando, irracionalmente, que as fotos e vídeos que eu queria ressurgissem algum dia. Eu queria vê-las, só mais uma vez. Se eu as substituísse por novas memórias, isso poderia impedi-las de voltar.

Talvez fosse hora de parar com isso.

Até agora, vivi da maneira que eles — Hector, Theseus e os outros — gostariam que eu vivesse. Um passo de cada vez. Uns mais curtos, outros mais curtos ainda. Na medida do que era possível para minha condição.

Desisti de cursar medicina e de qualquer coisa que viesse do interesse dos meus pais. Quero ser professor de línguas estrangeiras. Como tenho facilidade com isso, sei que não vou me arrepender mais adiante.

“Isso é um desperdício da sua inteligência!”, “Você tinha o potencial para descobrir a cura de todas as doenças!”

As críticas do papai e da mamãe me empestearam por um tempo, mas tentei não me abalar. Afinal, foi uma decisão que tomei por mim mesmo. Hoje em dia, eles são mais compreensivos. Se conformaram.

8 de agosto de 2020. Meu aniversário de vinte e um anos.

Há exatamente dois anos, eu retornei ao meu mundo, onde o tempo havia sido congelado.

O céu estava carregado. A previsão era de uma chuva passageira. Já que eu não tinha outros planos, fiz como no ano anterior: peguei um trem até a Estação de Ueno, de onde fui caminhando até o Museu Nacional de Tóquio.

Entrando lá, me deparei com uma comoção de adolescentes uniformizados. Era uma excursão escolar do ensino secundário. No meio deles, dois meninos usando óculos riam um para o outro, e andavam de mãos dadas.

Que adorável.

Me trouxe uma certa nostalgia.

Subi as escadas e segui por um corredor diferente dos outros, um que não parecia ter fim. Quanto mais eu ia adiante, mais longínquo parecia. Era como se eu andasse em círculos em um lugar inóspito.

Deparei-me com estátuas de ouro representando todo tipo de animal estranho, como borboletas siamesas e outras misturas entre animais. Cavalos com cabeças de ocapi. Pássaros, dezenas deles.

Também havia vestimentas e utensílios que só veríamos em livros de fantasia. Alguns pareciam instrumentos musicais, e outros, artefatos de teor ritualístico.

Foi então que passei pelo local onde, um dia, repousara a estátua de um anjo. Agora, em seu lugar, erguia-se a figura de um leão vestindo uma coroa dourada. Suas mandíbulas cravavam em um Sol sangrento.

Aqua Regia et Aurum.

Por fim, cheguei à macieira de ouro. A seus pés, entre as maçãs caídas, repousava um envelope branco, levemente amarelado. ... Que estranho. Ninguém além de mim passava por ali.

Atravessei o cercado do jardim artificial e os recolhi com cuidado. Assim que os abri para verificar o conteúdo, um arrepio percorreu minha espinha, e uma lágrima silenciosa se formou no canto do meu olho.

Sem pensar duas vezes, me apressei na volta para casa, apertando contra o peito aquele presente especial.

Obrigado. Obrigado por não ter se esquecido de mim.

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