Volume II – Arco IV
Capítulo 57: O Reino
Nesse dia, eu presenciei.
Um bloco de ouro bruto queimava em meio a faíscas e sons agudos. O processo de fusão o transformou em um rio fervente, que escorria por tubos e máquinas até um molde, onde resfriou e endureceu.
O vovô, cujo rosto era tão alto que eu não conseguia ver com clareza, usou uma ferramenta para cinzelar folhas de loureiro na superfície do objeto. Assim que finalizou, buscou uma joia vermelha que guardava na gaveta e a encaixou no centro da peça.
Foi então que ele se ajoelhou diante de mim e pendurou o presente no meu pescoço.
Lembro-me de termos deixado o estúdio e partido em direção à luz que vinha da entrada da fábrica, mas eu não conseguia parar de olhar para trás. Havia alguém esperando por mim, além daquela visão preciosa, e eu prometi que iria encontrá-lo.
Por isso, larguei a mão do vovô e corri até a vastidão de escuridão e neblina. Tive tanto medo. Eu não fazia ideia de qual direção seguir. Mas podia sentir que o menino anjo estava próximo, em algum lugar daquele universo.
— Está procurando por alguém? — perguntou um moço alto, de cabelos alaranjados. Ele tinha cicatrizes nos braços e nas pernas. Num pique, fui até ele e puxei sua roupa
— E-Eu preciso de ajuda! Não consigo achar meu amigo!
— Seu amigo? — Ele se agachou, colocando-se na minha altura. — Como ele é? Pode descrevê-lo pra mim?
— Ele tem a pele marrom e... e olhos azuis! Cabelos pretos e lisos... Ah, e asas! Ele tem asas!
— Asas? Hmmm... Eu acho que já esbarrei com uma pessoa parecida. Vem comigo. Eu vou te levar até lá.
Com um sorriso, ele me tomou pela mão e me guiou.
Conforme caminhávamos, o breu clareava, e o chão se tornava visível. Aquele moço era bonzinho e simpático. Apesar de tão diferente das pessoas que conheci, andar de mãos dadas com ele me fazia sentir seguro.
Atentei-me ao seu rosto mais uma vez. Ele tinha uma expressão... nostálgica. Não só isso — seus dedos também eram grossos, quentinhos e cheios de calos. Parecia até que eu já os havia segurado alguma vez.
— Ei, moço.
— Hm?
— Eu acho que eu te conheço.
— Jura? De onde?
— De onde...? De onde era mesmo?
Era um lugar enorme... cheio de coisas bonitas. Mas não ficava no Japão. Ou ficava?... Eu não conseguia me lembrar. E olha que minha memória não era tão ruim.
— Chegamos.
Ele apontou para um caminho iluminado que levava até um palácio de ouro. Mas aquele não era um palácio comum. Estava no alto dos céus, sobre as nuvens, como se flutuasse com elas.
— Siga essa trilha e você vai encontrá-lo. Eu não posso passar daqui, então você tem que ir sem mim, Teru. Toma cuidado, tá bom?
— "Teru"? Como você sabe meu nome?
— Oh, erm... Como eu posso explicar?
Antes que ele respondesse, envolvi-o em um abraço apertado, pegando-o de surpresa.
Ele deu um riso suave, hesitante, antes de corresponder ao gesto. E, no momento em que suas mãos tocaram minhas costas, minha estatura já havia crescido, e os contornos infantis deram lugar ao meu verdadeiro eu.
Minha voz mais grave, meus longos braços e pernas, e também as vestes cerimoniais do Filho de Trismegistus... retornaram em um piscar de olhos, junto às memórias arrancadas de mim quando deixei o Kunstkammer.
Contudo, algo do meu eu criança ficou. Dentro de mim. E eu não teria encontrado isso sem a ajuda daquele rapaz.
— Obrigado, Thes. Muito obrigado.
— Eu queria te ver. Fiquei com saudade.
— Eu também. Muita saudade.
— Teru... Desculpa. Por não estar lá no momento em que você mais precisou.
— Não diga isso. Nunca mais me peça desculpas pelo que não é culpa sua — eu disse, apertando sua camisa ainda mais. — Nunca mais, ouviu bem?
— Hehe. Tudo bem... Descul— Ah! Eu quase fiz de novo!
O riso espontâneo escapou de nós ao mesmo tempo, e eu escondi meu rosto em seu ombro, deixando que o tecido absorvesse as lágrimas.
— Thes, eu descobri uma forma de sair do labirinto.
— Verdade?
— Sim.
— Haha... Que bom... Então parece que o meu desejo se realizou. Estou feliz.
— Mas você virá conosco.
Ele se sobressaltou.
— Nós vamos te trazer de volta — continuei. — Há um jeito. Eu e a senhorita Circe cuidaremos disso. Eu prometo.
— Ei. Fique tranquilo — ele interrompeu com um olhar sereno. — Eu não estou sozinho aqui. Mas tem alguém precisando muito, muito de você agora, não?
Ele se afastou um pouco e deu um beijo em minha bochecha úmida, dizendo:
— Vou deixar minhas orações e o meu amor com você. Entregue-os a Kosmo e Circe. Lembre-os de que eu os amo.
Assenti, tentando gravar cada segundo daquele momento dentro de mim. Eu queria ficar só mais um minuto. Quando menos esperei, nossos dedos deslizaram uns pelos outros, até restar um espaço entre nossas mãos.
— Agora vá, depressa — pediu. — E no dia em que nos vermos de novo, eu quero ver esse mesmo sorriso. Tá legal?
— É claro.
— Até lá, Teru.
— Até, Thes.
Engoli o aperto no peito e dei meia-volta, correndo o máximo que minhas pernas permitiam. No entanto, antes de atravessar o último limiar, me permiti olhar para trás uma única vez.
Lá estava ele, ao lado de Patroclus, Ganymede e da senhorita Pollux. Eles acenavam, dizendo algo, mas a distância tornara suas vozes inaudíveis. Foi quando o senhor Patroclus usou as mãos para gesticular:
"Estamos torcendo por você."
Eu havia encontrado algo muito mais duradouro do que o ouro dos alquimistas.
Algo que, mesmo nas separações que o destino pudesse me impor, continuaria a florescer com o fluir do tempo, e da minha vida.
Eu não precisava mais me esconder do luto pelo vovô e pela vovó. O amor deles permanecia comigo, intacto. Não era apenas uma lembrança, mas uma presença viva no meu coração. Era a prova de que eu nunca estivera verdadeiramente só.
Não havia mais razão para temer nada — nem mesmo a minha própria morte. Isso porque eu, também, continuaria a viver no coração das pessoas que me amavam, e nada podia alterar esse fato. Isso me encheu de paz.
Eu corri, e corri, mas o castelo ainda estava distante. Ele só parecia se afastar.
De súbito, meu pé encontrou uma pedra. Perdi o equilíbrio e escorreguei, caindo de bruços aos pés de um portão.
Era um portão largo e suntuoso, trancado com ferrolhos fortes. Estava entre dois muros altos, entrelaçados de videiras e espinhos. Aquela era... a entrada para o Jardim de Rosas da Sabedoria. E, a poucos passos de mim, jaziam as ombreiras trincadas de Hector.
Logo, eu ouvi. Grasnados terríveis. Um coro dissonante que ecoava pelo ar rarefeito. Levantei o rosto, seguindo a origem do som — até que, de um instante para o outro, o ar me faltou, e meus olhos se esbugalharam.
Pássaros disformes, feitos de profunda escuridão, se empoleiravam sobre Hector, rasgando-o como se fosse feito de papel. Eles o devoravam como a um chamariz indefeso, incapaz de se mover, incapaz de reagir.
Congelado no lugar, eu gritei por seu nome.
Nenhuma resposta.
Era um sacrifício. A última oferenda às Mãos do Mundo. Mas o objeto de martírio deveria ser o Filho de Trismegistus, ou seja, eu. Então, por que ele estava ali? ... Foi isso o que ele quis dizer com “me salvar”?
Sem mais nem menos, lancei-me contra os portões. Minhas mãos se fecharam sobre as maçanetas, puxando-as até sentir os tendões dos meus pulsos prestes a se romperem.
— Hector, aguente firme! Eu vou te tirar daí!! ... Aagh—!
O Amaranto reagia aos meus batimentos acelerados, mas não fazia diferença alguma. A suposta chave não abria o caminho. O jeito... era arrombar aquela porta com estes braços finos.
— Por que não o deixa morrer? — Um sussurro me alcançou.
Baixo às escadarias, o senhor Castor me observava, na companhia do senhor Achilles.
— Esta foi a escolha que ele fez — continuou, com um olhar imperturbável. — O vazio de uma pessoa não pode ser preenchido por outra. Se tentar ocupar esse espaço, ele só crescerá, cada vez mais, até que nada o sacie.
— F-Fica quieto, seu...
— Não adianta. Nada do que fizer por ele o fará feliz de verdade. Nós perdemos algo fundamental.
Minha respiração falhou.
— Cala a boca, seu filho da—!!
O carmentino deu as costas, arrumando as luvas do traje com elegância.
— Tamanha é sua tolice. Bom, aprenderás uma hora ou outra — disse. Em seguida, dirigiu-se ao príncipe de Angerona: — Creio que já viu o que queria, meu camarada.
— Sim — respondeu.
— Aqui nos despedimos, Filho de Trismegistus.
Os fantasmas se afastaram em direção a uma passagem sombria entre as cortinas. Mas Achilles, antes de ir, disparou um último olhar, para a curiosidade do outro.
— Achilles?
— ... Abram-se — ele murmurou, com hesitação em sua voz.
— Hm?
— Abram-se de uma vez.
Minhas mãos doíam. Os dedos tremiam e formigavam, a pele avermelhada pelos puxões incessantes. Não estava funcionando. Nada funcionava.
— ... O que você estava pensando, Hector? Que isso me faria feliz? Não passou pela sua cabeça que eu me culparia pelo resto da vida?! — minha voz quebrou no meio da frase. — Eu não pedi para você sangrar até a morte por mim. Isso... isso é tudo o que me faria mais triste! A minha felicidade... minha felicidade era—
Certa vez, sonhei com um campo de amarantos vermelhos.
Hector caminhava por ele, e o vento do entardecer roçava seus cabelos. Com os olhos semicerrados, ele respirava fundo e sorria. Era como se o céu inteiro estivesse o abraçando.
Foi uma visão tão curta e simples, mas eu soube, no momento em que a vi, que era parte do que eu imaginava ser a "felicidade", e talvez por isso eu quisesse ser um deus.
Porque, assim, eu teria o poder de manufaturar um mundo maravilhoso como aquele. Um recanto seguro onde Hector pudesse descansar e curar as feridas de seu coração.
Mas eu neguei o ser onipotente dentro de mim. A felicidade não precisava ser um paraíso inatingível.
— Te achei.
Minha voz soou baixa, e a luz da vela projetou a sombra do meu eu criança estendendo a mão e afagando a dele.
Sua pele suava frio. Suas mãos, encharcadas de sangue, não paravam de tremer, mesmo quando seus olhos desacreditados encontraram os meus. Ele parecia tão frágil, como se, a qualquer momento, pudesse se desfazer em cera.
Sem nem saber seu nome, puxei-o para perto de mim e o envolvi em meus braços. O medalhão que o vovô me deu cintilou suavemente, rodeando-nos com uma luz que fechava todas as feridas e o ajudava a guardar as asas.
— Uhh... Uaaahhh! Uwaaaahhh!! — Quebrou-se em um choro bem alto. Um choro de alívio.
— Eu tô aqui com você — eu dizia. — Está tudo bem. Já passou, já passou.
— E-Eu não quero ter asas! Eu não quero!!
— Você não as quer?
— Dói! Elas machucam! Machucam muito!! Uuuhh!!!
Eu nem soube o que dizer. Se eu realizasse seu desejo, não seria o mesmo que roubar-lhe o único meio de voar?
— Hector!! O que está fazendo?! — gritou uma silhueta carregando uma lanterna, em uma memória ainda mais profunda.
Era uma noite sem Lua, e um dos sacerdotes nomos, à frente de outro garotinho de cabelos brancos, encontrou Hector encolhido no canto de um dos quartos, segurando um alicate.
Penas espalhadas, manchas de sangue escurecendo o mármore. Suas asas... Ou melhor, o que restava delas... ele as arrancara, pedaço por pedaço. Era terrivelmente doloroso de se ver.
— D-Desculpa... Me desculpa...
— Kosmo, chame o nomo Rhabeh! Vamos tratá-lo, rápido!
O Chrysós Lapulia fez o possível para que suas asas despedaçadas fossem restauradas, mas Hector teve que suportar os sintomas autoimunes: febre, dores insuportáveis, espasmos que o faziam se debater na cama.
Os meses e anos se passaram. Suas tentativas de se "libertar" fracassavam. Ele cresceu, tornou-se um homem grande, mais forte e alto do que eu, e, ainda assim, o peso de suas asas nunca deixou de atormentá-lo.
Eu já vi isso antes. Foi em uma exposição de arte que visitei com o vovô quando criança. Havia um quadro enorme ilustrando o senhor do tempo — Saturno — tosquiando as pequenas asas de Eros, o deus do amor.
Enfim, eu pude entender tudo. Agora, eu via tudo, Hector.
Obrigado por me mostrar. Eu sei o quão difícil foi para você me permitir chegar até aqui, no fundo desse mar.
Enquanto ouvia seu soluçar, eu pensava no quanto gostaria de dizer que a cerimônia acabou. Que ficaria tudo bem, e que ele não haveria mais de sofrer. Mas o tempo desse menino tão pequeno era diferente do meu tempo.
Não havia como mudarmos o passado, muito menos as dificuldades e perdas que ele e eu enfrentaríamos no futuro. Doía admitir que não possuíamos o poder para nada disso. Apenas continuei a abraçá-lo e acariciar seus cabelos.
Um dia, nos tornaríamos como as bolhas que subiam à superfície e desapareceríamos, deixando este mundo para trás. Mas, até lá, eu ficaria ao seu lado. E eu lhe asseguraria que nem a mais sombria das tempestades, nem a mais forte das correntezas era eterna.
Os muros quebradiços rangeram. Cadeados se destrancaram, um a um, e os ferrolhos desmoronaram.
Diante de mim, os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria se abriram; seu interior foi revelado. Um sol de dez mil raios afiados brilhava no alto, queimando tudo sob sua luz implacável. Abaixo dele, um cálice sustentava uma chama inextinguível.
Sob a sombra de uma romãzeira apodrecida, meu melhor amigo se lamentava, segurando nos braços um garoto com a mesma aparência que eu. Era um cadáver, o líquido vermelho-escuro em suas roupas já ressecado.
— ... Teru? Você está vivo?
Como se agarrado a um último fiapo de esperança, seus olhos marejados me encararam com uma alegria que beirava a histeria.
— ... Como eu previ, você veio para concretizar os Mistérios da Conjunção comigo! — Ele se levantou, a emoção recaindo em cada palavra. — Ou será que... estou enganado?
Dei um passo adiante. Mas, ao fazê-lo, sua expressão se desmanchou em pânico. Seus dedos puxaram o cabo de sua adaga. Num gesto instintivo, ele a apontou para mim.
— A-Afaste-se, impostor! Você... você não é o Teru! Quem é você?!
— Meu querido amigo, eu vim te devolver algo.
Com delicadeza, beijei meu medalhão e o sustive à frente.
— Eu não sou o seu salvador, nem o deus que você adora. Na verdade, nunca fui nenhuma dessas coisas. O meu preciosismo te confinou nesta coisinha aqui. Mas ela significa muito para mim. Então, não é um presente. O que eu estou te devolvendo... é a sua alma humana.
— A minha alma humana? ... Hahaha! Não me faça rir. Olhe para mim! Eu sou a Correnteza Eterna! Eu não tenho alma. Pelo contrário, arrebatei milhares e milhares delas ao longo da história!!
— E nada disso fez cessar o seu tormento.
Ele piscou, surpreso.
— O meu... tormento?
— Os Mistérios da Conjunção não nos darão “completude”, nem apagarão a dor e a tristeza que sentimos. Eles apenas perpetuarão o ciclo de desespero. Eu e você já somos dois inteiros.
Sua fachada fraquejou. Ele deixando a adaga escorregar e cair no chão com um som seco.
— ... Não. Não! Isso não apagará os meus crimes, Teru! — exclamou, cobrindo o rosto com as mãos. — ... E-eu abusei de você. Causei a morte dos seus amigos. Causei a sua morte! Nós estamos mortos!! Somos cadáveres vivos! Não há mais nada lá em cima, para nenhum de nós dois!!
Cerrei o punho e o abri em seguida, acalmando a tempestade que se formava dentro de mim.
Então, disse:
— Nós enfrentaremos tudo. Tudo, inclusive as consequências das ações do humano conhecido como “Tsubasa Miyashita”. Eu estou pronto para aceitar isso com você. E, se você não é mais Tsubasa, aceitarei qualquer que seja o seu novo nome.
Boquiaberto, perdido entre a dor e a dúvida, ele deixou uma última lágrima escorrer.
Com uma poderosa reação alquímica advinda do Amaranto, a chama do Sol Sagrado se extinguiu. A romãzeira se esfarelou, renascendo como nova — uma bem maior do que era antes —, e dela nasceram não dezenas, mas milhares de frutos.
No limite de seu poder latente, a joia vermelha rachou e quebrou.
Bastava de imolação. Naquele momento, o deus adormecido e as outrora inabaláveis Mãos do Mundo foram vencidas. Os pássaros carniceiros guincharam de desespero, sendo afugentados para o abismo de onde vieram.
A plataforma celeste estremeceu. Os portões do Jardim, o triângulo de pedra e as correntes que encarceravam o sacrifício — tudo desmoronava e se desfazia antes de tocar o chão. Nisso, Hector despencou, seu corpo ileso das bicadas.
Sem hesitar, me lancei atrás dele, saltando além das cercaduras, deixando tudo para trás.
O vento batia em meu rosto, meus braços estendidos ao máximo. Ele estava tão, tão perto... Meus dedos vacilaram no ar, tentando agarrá-lo. Mais um esforço... mais um... E então, finalmente, toquei sua mão.
Foi como se eu mergulhasse com tudo em um lago quieto. Eu o segurava firme em meus braços, e o chamava, de novo e de novo.
Hector! Hector...!!
A breve quietude me assustou, até que suas pálpebras espasmaram, abrindo-se devagarinho, revelando o azul inconfundível daqueles olhos. Nada no mundo me trouxe tanta alegria quanto vê-los novamente.
Hector se reposicionou no ar, voando comigo por aquele céu arruinado até aterrissar em um jardim de amarantos vermelhos que crescia sobre os remanescentes do campo de batalha.
Assim que caímos sobre a grama fofa, suas asas se desfizeram em um milhão de pétalas de ouro, dispersando-se sobre a vida verdejante que cobria os arredores.
— Você está bem? Não está ferido? — perguntei, debruçado sobre seu tronco.
— Me sinto leve. É tão estranho. É como se minhas asas-... T-Terumichi, os seus olhos. Eles estão... dourados.
— Hector, de agora em diante, você está liberto do seu destino. Tudo foi selado neste medalhão. Isso inclui suas asas. Mas, se um dia precisar delas...
— Fique com elas.
— Huh?
— Você está se despedindo de mim. Tem que voltar para a sua terra natal, não é? Guarde-as como lembrança.
— Está bem. — Com um breve tiritar nas pálpebras, eu sorri.
— Não vai se esquecer de mim?
— Como eu poderia esquecer?
Nos levantamos e pusemo-nos de joelhos, dando as mãos e encostando nossas testas.
— Eu vou até você. Te visitarei, em Agartha — disse Hector.
— É uma promessa?
— É a nossa promessa. E você estará lá para me receber.
— Sim.
Hector, eu... não sei se poderei cumprir minha parte da promessa.
Mas quando a hora chegar, você me perdoará, não é? Eu sei que sim. Você, e a minha família também. O papai, a mamãe, e o Teruki. Todos vocês estiveram comigo até o final, então... está tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Foi quando uma ventania avassalante balançou as flores e a nós. A hora de nos separarmos se aproximava, mas eu precisava que ele me prometesse outra coisa. Só mais uma coisa.
— Diga a Kosmo e Circe que Theseus os ama — e traga-o de volta! Os desafiantes ainda estão aqui! ... Hector, eu te amo! Eu te amo muito, pra sempre!! Nunca se esqueça disso!! Nunca, está me ouvindo?!
— O que disse?! Terumichi, suas palavras... eu não consigo entendê-las!!
De repente, sua feição entristecida turvou. Era a mesma imagem embaçada do meu astigmatismo. O feitiço que corrigia minha visão e anulava as diferenças entre nossas línguas perdia o efeito.
Para que minha mensagem chegasse até ele, eu avancei. Encostei meus lábios nos dele, oferecendo-lhe um último beijo.
Nisso, desfiz-me em uma revoada de penas branquinhas. Pequenas partículas de mim escapavam pelos dedos de Hector. Ainda que algumas pousassem sobre seus ombros em consolo, ele continuava a chorar.
No leito do fosso, para onde desciam mais das minhas plumas, despertou de seu sono um rapaz de asas assimétricas. Depois, foi a vez da mulher corajosa com quem ele estava abraçado. A suave luz da manhã caía sobre ambos.
Uma das penas voou mais longe, rodopiando na brisa até repousar na palma da estátua de um guerreiro gentil, reclinado sobre lençóis tingidos de vermelho. E então, sem som ou aviso, ela desapareceu.
O que eu concedi não foi um milagre.
Eles sempre foram merecedores do futuro. Estes eram apenas os prelúdios de suas histórias.
ᛜᛜᛜ
EMBLEMA L
O Dragão mata a mulher, e ela o mata, e ao mesmo tempo eles são banhados em sangue.
"Cave uma cova profunda para o dragão venenoso,
em cujo abraço uma mulher está firmemente pressionada.
Enquanto ele colhe os prazeres do leito conjugal,
que ela morra, e que o dragão seja enterrado com ela.
Assim, seu corpo é entregue à morte e manchado de sangue.
Este é o verdadeiro caminho para o seu trabalho."
ᛜᛜᛜ
Reescrevi esta carta incontáveis vezes. Nenhuma versão expressava tudo o que eu queria transmitir.
Eu tenho tantas coisas para te contar. Nunca me pareceu certo reduzir a um pedaço de papel o que deveria ser dito face a face, mas é o que está ao meu dispor, no agora.
Após os acontecimentos no Anfiteatro, o mundo de fora nunca mais foi o mesmo para nenhum de nós. A verdade crua que os ministérios ocultaram por tanto tempo nos deixou temerosos quanto a voltar.
Apesar da relutância, das discussões e feridas abertas, eu e meu irmão nos reconciliamos com a ajuda da bruxa de Apollodorus. Enquanto conversava conosco, ela tinha um jeito bem parecido com o seu.
Mais do que nunca, era hora de permanecermos unidos. Caso contrário, não seríamos capazes de lidar com o quão diferentes as coisas seriam a partir dali. Foi o que ela disse. E ela tinha toda razão.
Cerca de três semanas após sua partida, descemos por uma gôndola automatizada até a superfície.
Na saída da Torre, fomos recebidos por multidões. Alguns celebravam; outros lamentavam a ausência de alguém que não retornou. Havia alegria e dor misturadas. Sentimentos conflituosos.
Meu irmão, em particular, era alvo de olhares feios, como se fingissem que ele não existia, por causa de seus cabelos brancos. Isso me causou asco.
Quis dar um fim definitivo ao mito do Messias, dizendo a todos que quem deteve o Declínio não foi um salvador. Que não éramos deuses, santos ou heróis — e que o mérito da vitória era daqueles ao meu lado.
Kosmo de Vertumnus e Circe de Apollodorus. Um casal de humanos, como todos ali presentes. Isso os chocou.
Recusei qualquer oferenda em dinheiro, joias ou terras que excluíssem meu irmão. Ninguém nunca mais o trataria como inferior a mim na minha frente. Eu jamais os perdoaria por isso.
A bruxa me corrigiu. Em memória de você e de Theseus de Salacia, ela declarou que cada um dos humanos mandados à Torre teve parte na concretização daquilo que, por três séculos, não foi mais do que um devaneio.
Sim, não era de um salvador que este mundo carecia.
E mesmo sem a maldição, a desigualdade e a discriminação permaneciam arraigadas em nossa sociedade. Os problemas estavam longe de acabar.
O ouro que um dia fora uma praga passou a ser explorado como recurso. Plantas e restos de animais se tornaram objetos de cobiça e lucro. O metal ainda era valioso e desejado por sua alta qualidade. Pagavam bem por ele.
A limpeza das áreas contaminadas para a criação de campos de cultivo se tornou uma disputa de interesses políticos e econômicos, o que dificultou ainda mais a luta contra a fome e a seca — em especial na região norte do continente.
Para enfrentar isso, Circe renunciou à herança e reuniu representantes das oito cidades, desafiando os ministérios, bem como os dogmas clericais enraizados em nossas culturas.
Assim nasceu a Aliança da Verdade, cujo propósito era responsabilizar aqueles que perpetuaram a farsa do abutre e os contínuos crimes contra a integridade humana.
Por via disso, a verdade sobre o Ministério das Profecias de Vertumnus, sobre o Declínio e o Chrysós Lapulia, foi revelada ao mundo.
A libertação dos vertumnitas encarcerados e a devolução de seus direitos tem sido um processo árduo. Você não gostaria de testemunhar isso. Nem eu consigo ler os jornais sem sentir um embrulho no estômago.
Embora tenham recebido o apoio de entidades governamentais poderosas, como a do Rei das cidades de Salacia e Juno, essa luta não se resolverá da noite para o dia. Levará tempo e resiliência.
Como pode ver, não tem sido fácil por aqui. Recebemos boas e más notícias — vez ou outra, mais más do que boas —, mas eu acredito no poder que o tempo tem de nos surpreender e propiciar algo frutífero.
Se um dia Arcadia se tornar um mundo melhor para as próximas gerações, terei orgulho de dizer que eu e você participamos disso.
Ah, e não se preocupe. Minha vida não se resume a isso. Pelo contrário, passo longe de conflitos e coisas políticas.
Foi reservado para mim um sítio em Apollodorus — agora uma província — próximo a um forte. Também tem um lago onde pesco e me banho. É um lugar tranquilo, com ar fresco e espaço de sobra para suas quarenta rãs.
Estou cuidando bem delas. O senhor Kaeru ficou grande e pançudo, mas o levei para ser examinado, e ele está em boa saúde. Não sei nem se deveria chamá-lo de "senhor". Ele trocou de sexo, por alguma razão.
Comecei a buscar algo que me desse significado além de lutar. Aprendi a ler, escrever e até a tocar flauta. Dou aulas de música para as crianças de um centro comunitário próximo. Eles pagam bem e me dão comida boa.
Nunca pensei que teria um cotidiano tranquilo assim. Anos se passaram, e ainda é difícil me acostumar. Porém, tenho para mim que isso é algo que você gostaria de ter. Sempre penso em como seria se você estivesse aqui.
As metades da Torre se conectam uma vez a cada poucos meses. Descobrimos precedentes de outros agarthianos que viveram aqui antes de você. Como e quando chegaram, não sabemos ao certo.
Investigamos e encontramos vestígios de documentos em diferentes línguas — diários, livros, álbuns. Uma coleção extensa de manuscritos. Circe e Kosmo, com seu brilhantismo, conseguiram decifrá-los.
Se você foi capaz de ler esta carta, significa que foi capaz de decodificar nossa “quimera linguística”, como Circe chamou. Eu confiei que seria, pois você é inteligente e perseverante. São qualidades que aprecio em você.
Uma vez ao mês, visitamos o Anfiteatro para deixar flores.
Nessas ocasiões, as lembranças de você retornam com força, e percebo o quanto sinto sua falta.
O coração do meu irmão também precisava de cuidados. Há coisas que nem o tempo, por si só, pode curar. Nada substitui aqueles que perdemos, seja neste mundo ou em um anterior. A saudade fica conosco para sempre.
Mas posso garantir: ele não estará desamparado. Confie em mim.
Assim como ele está lutando para manter a esperança viva, torço para que você também não a tenha perdido. E isso também serve para mim. Afinal, assumi a missão de trazer Theseus e os outros heróis de volta do ouro.
É cedo para dizer se conseguiremos. O Declínio cessou, mas nunca houve precedentes de alguém retornando dos mortos. Se essa possibilidade se tornasse pública, teríamos mais um obstáculo a enfrentar.
De todo modo, tenho boas notícias. Os estudos com as joias de granada que seu poder transmutou a partir dos topázios imperiais mostraram reações semelhantes às do Amaranto. Não entendo como funciona, mas devemos estar mais perto do que imaginamos.
Guarde minhas palavras: quando eu for te visitar, será porque isso se realizou. E então, eu lhe mostrarei o homem que me tornei.
E é bom que me ajude a me acostumar. Além de eu não saber sua língua, ainda não gosto de usar camisas. Mas desejo conhecer todos os tipos de lugares e descobrir coisas novas ao seu lado. Por favor, espere por mim.
Rezo para que esteja bem, e que estas palavras encontrem um caminho até você.
Para minha pessoa mais amada, Terumichi Kinjō.
Hector Kaskades
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