Sonhos Cruéis Brasileira

Autor(a): Andrei Issler


Volume 1

Capítulo 26: Novos Ares

Seus longos cabelos dourados balançavam contra o vento e a camada de poeira, que levantava do solo, parecia propositalmente ocultar sua beleza, como se o próprio destino tramasse para esconder aquela deslumbrante imagem dos olhos comuns. Diante de uma trilha de chamas ardentes que dançavam e oscilavam em contraste contra os detritos que impediam a visão da grande maioria, estava Turcarian, a regente de Vespaguem e dona do título de Senhor da Tempestade, como o Demônio mais forte do império. Contudo, essa cena inestimável, que ainda se mantinha viva na memória de Esfer, foi prejudicada pela onda de choque que impediu a visão de muitos.

Maravilhado com a cena, sentia-se pequeno ao se recordar de tamanho poder. Tinha a sensação que de alguma forma um desejo oculto tentava empurrá-lo para que procurasse uma maneira de vê-la mais uma vez, não pensava possuí-la, mas sim em segui-la. Sabia que isso estava fora de seu alcance e que divergia com sua tão sonhada fuga de Vespaguem, porém nada o impedia de delirar com essa possibilidade.

Ainda deitado, imerso em seus pensamentos, não percebeu a chegada do colega de ordem.

Era o início da manhã seguinte ao ataque dos Sombrios, a maioria das criaturas foram sobrepujadas e exterminadas, com sucesso, pelo exército imperial, liderado por Turcarian e Vedrak, dos Sete Guardiões.

O acontecimento virou o foco das atenções e agitou a cidade, era esse cenário que Esquerdo havia visto. Ele entrou no dormitório a passos rápidos, se apoiou sobre uma das mesas, respirou profundamente e com um tom receoso começou a falar:

— Lá fora está um caos, todos estão assustados, bem… eu até entendo o lado deles, mas as ruas estão um inferno.

— Claro que ficaram assim, quando surgiram os primeiros relatos de Sombrios avistados nos arredores da barreira, as notícias já causaram espanto, tendo em vista que esses eram episódios raros. Pelo que sei uma horda como essa não via-se há anos. — Bolor soltou a própria mochila no chão, como se tentasse jogar todos os seus problemas para longe.

— Talvez eles estejam começando a sentir o mesmo gosto do medo que sentimos quando deixamos a muralha. O sentimento de estar diante de um destino que não podemos mudar.

— Eu não ficarei aqui para escutar seus devaneios outra vez — falou Bolor ao sair.

Nesse meio tempo no qual os dois conversaram, Esfer desceu as escadas e foi ao encontro do colega.

— O que exatamente você viu nas ruas?

— Alguns estão com medo, outros adorando ainda mais a imperatriz e também há aqueles que fecham os olhos para tudo que está acontecendo.

— Entendo o lado desses últimos, é difícil acreditar que algo seja capaz de ultrapassar a Grande Barreira.

— Como já disse, a maioria lá fora não está pensando bem, seja pelo medo ou fanatismos. Turcarian é o pilar para a existência da ordem dos Oradores, são eles que estão acalmando a população. — Ele soltou um longo suspiro antes de continuar. — Aquela mulher desafia a compreensão de qualquer um, não é de menos que ela seja adorada dessa forma pelos Demônios.

— Essas paredes apertadas nunca cansam de me surpreender.

— Parece que teremos… — Um moderado e contínuo temor começou a abalar as estruturas da construção, logo uma sequência de intensos e estridentes estrondos passou a ser ouvida.

— O que está acontecendo? — perguntou Esfer enquanto se apoiava sobre uma das pilastras em busca de abrigo.

— E você acha que eu sei? — Esquerdo levou as mãos aos ouvidos.

Bolor, com todo o alvoroço, retornou dos fundos do dormitório.

— Parem de fazer perguntas e se recomponham! Isso tudo logo cessará.

Como afirmou o colega, instantes depois, gradualmente os tremores ficaram mais suaves, até alcançarem um tom quase imperceptível, porém, os estrondos seguiam em um ritmo crescente.

— Não vou ficar parado aqui — disse Esfer, antes de sair.

— Espere. Eu também vou. — Esquerdo pegou seu manto e partiu atrás do companheiro.

Assim que deixaram o interior do casebre, perceberam que os estrondos vinham da superfície e se assemelhavam a raios. Sons estes que soavam e ressoavam pelos dutos do Fosso em curtos intervalos.

Esfer deu um soco amigável no ombro do colega.

— Ande, quero entender o que está acontecendo aqui.

Ao retomarem sua caminhada, ultrapassaram as extensões do esquadrão até alcançarem a sala de recreação, ponto que normalmente era o mais movimentado do esquadrão, chegando lá, perceberam que Kairom recebia o retorno de Teslan e Barock, ambos exaustos, com roupas sujas e desalinhadas, que exibiam algumas ranhuras.

— Apareçam seus imprestáveis! Rápido! Não percam tempo.

— Vejam — apontou Esfer.. — Eles estão vivos.

Barock continuava a esbravejar, quase nos ouvidos de Teslan. Seu companheiro estava tão exausto que poupava as palavras para não gastar o fôlego em vão.

— Se mexam seus idiotas e nos ajudem  — ordenou Teslan.

— Seus malditos, como escaparam daquele caos? Duvido que tenham dado cabo deles sozinhos — falou Galezir ao entrar na sala, indo ao encontro dos companheiros que haviam sumido durante o ataque dos Sombrios.

— Tivemos um caminho difícil, pelo que vejo bem diferente do trajeto que alguns molengas tomaram. — Teslan dispensou o apoio de Barock e trombou, de propósito, com Galezir, enquanto avançava para o interior do esquadrão, mais precisamente para os aposentos de Latrev.

— Desgraçado! — Ele virou-se para os outros colegas. — O que deu naquele infeliz? Devia ter morrido naquele inferno — resmungou Galezir.

— Você também não está calmo, é melhor esfriar a cabeça, será melhor assim — alegou Esfer.

— Pare de dar sermões, seu Impuro nojento. — Galezir levantou um dos braços ameaçando agredi-lo.

— Chega de perder tempo. Não estão ouvindo a agitação lá fora? Se não se apressarem, perderão o espetáculo. — Barock tentou regressar até a entrada do esquadrão, mas acabou cambaleando no percurso, somente não caiu porque Kairom se antecipou e ofereceu o ombro.

Esfer viu da entrada uma intensa movimentação que crescia do lado de fora e seguiu em direção aos portões que davam acesso para a unidade.

— Não se afobe, estou indo. — Esquerdo também foi ao encontro dos demais.

No momento em que cruzavam o pátio, notaram como as passagens estreitas e sinuosas que conduziam até a superfície pareciam ainda mais apertadas com a agitação dos moradores do Fosso que se apinhavam pelo caminho.

— O que diabos está acontecendo aqui? — perguntou Esfer para os colegas de ordem.

— Você ainda não entendeu? Seu lerdo — respondeu Olfiel que já deixava a sede para acompanhar a multidão de curiosos. — Vespaguem está prestes a se mover.

— Está falando sério comigo?

Ela revirou os olhos, desapontada.

— Todos querem acompanhar tudo bem de perto. Se apressem ou ficarão para trás.

Movidos por impulso e pela pressa que a situação exigia, a dupla acompanhou os Caça-contratos que se aventuravam pelas tortuosas passagens se empurrando e trombando com indivíduos, em sua grande maioria, suados e malcheirosos, em busca de espaço. O costumeiro caos se transformava em um grande labirinto de passagens intransitáveis.

A jornada seria muito mais longa, caso Olfiel não tivesse planejado pegar um atalho desde o início.

Guiados pela Demônia, o grupo venceu a confusão que se instaurava pelo Fosso, por passagens que lembravam as curvas de um rio caudaloso, até alcançarem um armazém situado nos arredores das Casas Baixas. Lá um grande elevador de carga era desocupado para conduzir à superfície os curiosos que operavam diariamente os mecanismos. Olfiel foi recebida de forma amistosa e garantiu, sem dificuldades, aos colegas, espaço na lotação que logo ganhou as alturas.

Antes de avistarem a Cidade Alta, Esfer levou uma das mãos acima dos olhos, quando uma forte ventania passou a soprar e assoviar pela passagem.

No final do túnel, com os olhos para o alto, todos se encantaram ao enfim avistarem os raios amarelados que dançavam e iluminavam o céu, como se tecessem os fios revoltos de uma grande teia elétrica que se expandia pelos ares em um ritmo crescente.

As almas que deixavam o elevador de carga passaram a buscar um espaço para agasalhar-se. Lutavam contra as adversidades para acompanhar o desenrolar dos eventos.

Sabiam que aquilo não era um fenômeno natural. Qualquer ser que analisasse o episódio com cuidado poderia constatar que os trovões seguiam um padrão, saiam do solo em direção ao céu, mais precisamente do coração da cidade.

— Vejam. — Olfiel apontou para o centro da cidade. — Agora falta pouco, em breve acontecerá, fiquem espertos.

Esfer e Esquerdo olharam rumo às Casas Centrais, que estavam abaixo do epicentro da cadeia de raios, porém seus olhos não conseguiram alcançar o castelo da imperatriz.

Pouco depois, um pilar de energia se formou em direção ao céu. A eletricidade que emanava um brilho fosforescente se alastrou e o habitual azul perdeu espaço para o amarelo da teia de trovões que cobria Vespaguem.

A luminosidade era intensa, quase cegante. O clarão que ofuscava a visão de todos foi se apagando devagar, na mesma proporção que sumiam os tremores. Antes que percebessem, a temperatura passou a cair e uma neblina começou a cobrir as ruas da cidade. Vespaguem acabava de viajar até uma nova posição.

— O império inteiro realmente foi teletransportado? É até difícil de acreditar. Não consigo ver muita diferença, apenas esse nevoeiro infernal — falou Esfer, tomando cuidado para não se separar entre a aglomeração.

— Quase posso cortá-la com uma faca de tão densa — disse Olfiel, observando tudo ao seu redor.

— Essa atmosfera não inspira muita confiança, ainda mais depois do recente episódio com os Sombrios — comentou Esquerdo que se enrolava no próprio manto em virtude da pequena queda de temperatura.

— Chega de ficar parado, o espetáculo acabou, encontrem algo útil para fazer. Trabalho não deve faltar por aqui — ordenou Olfiel.

— Tipo o que? A cidade está uma bagunça — alegou Esfer.

— Mais tarde, quando os ânimos estiverem mais amenos, certamente nosso serviço será dobrado — contou Esquerdo.

Apreensivo sobre o que o futuro lhe aguardava, Esfer sabia que precisava fazer algo para sair dessa vida de frequentes perigos, mas todas suas ideias foram logo refutadas. Por mais que ponderasse, não encontrava uma saída para escapar da sua situação atual. Imerso em pensamentos, admirou novamente o horizonte que começava a ficar opaco conforme o nevoeiro tomava a cidade. Curioso, se perguntou sobre o que ocorria atrás das imponentes paredes e no interior das elevadas torres que compunham a maior construção do império, o castelo da imperatriz.

 

☼☼☼☼

 

Da sacada de uma das várias e imensas torres que davam forma ao incomparável castelo de Vespaguem, um imponente guerreiro de pele morena e olhos verdes também cedia a curiosidade, deslumbrado com um verdadeiro espetáculo que percorria o céu, porém que agora, aos poucos, desaparecia.

Esse espadachim era Vedrak. Nos últimos dias estava com o peito apertado, a cena que acabava de acompanhar foi um breve refresco para sua melancolia. Ele, como membro dos Sete Guardiões, era o principal responsável pela caçada ao último Maker e estava intrigado com a sigilosa operação que logo organizaria, sob as ordens de Turcarian.

Vedrak, que via o ritmo dos trovões diminuir e o céu voltar à normalidade, resolveu deixar a sacada e caminhar até a sala de criação, local onde esperava encontrar a imperatriz.

O trajeto percorreu corredores luxuosos, adornados com decorações rebuscadas, douradas em sua maioria, que se destacavam nas paredes cinzentas. O final do percurso foi marcado pelo cessar dos raios e pelo declive formado por uma sequência de degraus que o levou a uma grande e densa porta de madeira com finos acabamentos.

A porta se abriu sozinha, ao reconhecer automaticamente o símbolo no ombro de Vedrak, resultado do seu pacto de sangue feito com Turcarian. Todos os Sete Guardiões possuíam uma marca semelhante.

Ele começou a falar antes de ultrapassar a porta:

— Vejo que tudo ocorreu sem maiores imprevistos.

— Se algo acontecesse, empalariam minha cabeça em uma estaca. Nossa rainha não tolera erros — respondeu um Demônio, que trajava uma túnica branca, com detalhes em dourado e costuras bem mais justas que as comuns. Com as mangas arremangadas de forma grosseira, ele averiguava se tudo estava em ordem após todos os preparativos realizados para mover a cidade.

Neste momento, o recém-chegado observou com mais calma as novas dimensões da sala de criação, que se assemelhava a um caldeirão. O segundo nível desse curioso laboratório estava coberto por um gigantesco vitral, cujo interior era preenchido por linhas douradas que se estendiam para longe, através de extensos tubos que se perdiam dentro das densas paredes do castelo. Reflexo de uma recente reforma.

O espaço era responsável por toda a prosperidade do império e há poucos minutos acabava de teletransportar todas as extensões de seu território para uma nova área. Tal feito não foi um passe de mágica, mas também desafiava a compreensão de qualquer ser vivo. Nesse espaço, era possível extrair os poderes de Calavis, cetro, em posse de Turcarian, conhecido como uma das treze centelhas que alimentavam esse mundo em ruínas.

— Onde está Turcarian?

— Parece que nossa soberana ouviu você chegar e fugiu na companhia de Faenis — desdenhou Norquer, o maior Orador do reino. Sua pele era negra e possuía um porte físico avantajado, alguém imponente que treinava tanto o corpo quanto a mente. Imagem que contrastava com sua personalidade ácida e provocadora, que beirava a infantilidade em certos momentos.

Vedrak não conseguiu esconder seu olhar de decepção. Levou uma das mãos ao rosto e estudou a postura do colega.

— Um dos Sete Guardiões não deveria se reduzir a um mero lacaio brincando com fios, tubos e espelhos.

— Isso soa de uma forma irônica vindo do capacho, número um, de nossa soberana. Como Turcarian gosta de os chamar? Cachorrinhos… Enfim, não lembro agora, só sei que você é a última pessoa para dar esses sermões, mas… — Seu colega o interrompeu.

O Guardião forçava um sorriso no rosto, para disfarçar seu ego ferido.

— Alto lá, sabe que não é assim. Da sua protegida você nem ousa comentar.

— Você e Faenis estão na mesma situação, dois capachos que seriam marcados a ferro de bom grado se lhe fossem ordenados. Não somos, nem de perto, escravos dela. Sua raiva só comprova que estou certo. — Ele se aproximou despretensiosamente, sem se importar com as justificativas do colega. — Mas confirmo que nos últimos tempos não foram poucas às vezes em que me convocaram até esta sala. Infelizmente são os ossos do ofício.

— Talvez tenha um pouco de razão, isso só costuma me causar problemas. Agora não é diferente.

— O que você quer dizer com isso?

— Digamos… que os homens de confiança são aqueles que se encarregam dos serviços mais sujos.

— Imagino que os Sombrios que trucidou ontem pensariam do mesmo modo. Já ouvi o suficiente para saber que a imperatriz está escondendo seus próprios segredinhos. Não culpo ela, primeiro a febre do demônio, depois esse ataque dos Sombrios, com certeza Solenaris não gostará disso e meterá seu nariz onde não é chamado.

Vedrak olhou torto para o colega, porém não discordou.

— Tempos nebulosos se aproximam, o início de uma guerra é uma ameaça real.

— Bem… ainda não sabemos o que acontecerá, mas vou aproveitar o tempo livre que tenho enquanto posso. — Norquer deixou a sala de criação, olhando com desdém para o companheiro que atravessava o vasto salão.

No meio do caminho, Vedrak percebeu a chegada de Faenis.

— Estava mesmo procurando por você e a imperatriz.

— Isso facilita as coisas, ela deseja vê-lo imediatamente. — A Demônia reduziu a distância entre os dois para algo mínimo. — Vedrak, está na hora, Turcarian lhe espera em sua sala, para finalizar os preparativos necessários para a incursão que ocorrerá nas próximas horas. Mostre a ela do que são feitos os Demônios que ganham a honra de se tornarem um Guardião.

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