Volume 1

Capítulo 10: Monstros

Será que foi o som da chuva ou apenas a força do vento?

Acho que não. Não pareceu ser um barulho usual, eu o teria ignorado, mas meus instintos apitaram como se eu precisasse alocar todo o meu foco nisso.

Em todos esses meses aqui fora eu nunca ouvi som como esse, mesmo treinando com dias de forte ventania.

Será que estou pensando demais? Por que estou tão eufórico por causa de um som?

Meu corpo reagiu de uma forma automática e nem consigo entender o que sinto. Agora estou aqui, com a minha lança empunhada em posição de ataque apontada para um arbusto distante.

Essa situação me faz lembrar da tal criatura que invadiu minha casa. É uma possibilidade real. Pode ser algo baseado nas epifanias que liberei naquele fatídico dia também.

Se aconteceu uma vez, pode acontecer outra vez.

Depois daquele episódio e com o Bestiário de Alexandrina consegui identificar seu nome e suas características físicas. Celeritas Aranea, o seu nome. Significa “Aranha Veloz” na antiga língua. É um monstro de categoria D-6.

O critério de definição dos monstros me pareceu ser bastante funcional. Com as letras designando o seu tamanho e os números a sua “letalidade” por assim dizer.

Entre a definição dos tamanhos, temos de A até F. Onde A é, segundo eles, uma criatura “colossalmente grande” e F um monstro de dimensões minúsculas.

Já com a definição de “letalidade”, temos classificações de 1 até 9. A definição de letalidade por si só é muito subjetiva, mas aparentemente há todo um universo de forças discrepantes entre os monstros. Onde 9 são monstros fracos e frágeis e 1 são aqueles fortíssimos que podem exigir o trabalho de vários exércitos para derrota-los.

Entretanto, há uma classificação além do 1, usado apenas em raras exceções. Tais monstros são considerados como titãs que podem devastar cidades inteiras antes de serem derrotados. Nesse caso, eles não utilizam números, mas a leta “S” para classifica-los.

Ou seja, se existir um monstro A-S a única opção é correr.

Aparentemente não há consenso na classificação dessas criaturas, até porque, não é como se pudessem adestra-los ou captura-los, eu acho.

De qualquer forma, preciso pensar sobre como reagirei em caso de aparecer um na minha frente aqui e agora. Não há ninguém por perto e se eu gritar posso chamar a atenção da criatura para mim. Li que os monstros são muito sensíveis a sons.

Com a lança empunhada, dou rápidas olhadas para trás, na esperança de encontrar Godam ou meu pai.

Tudo em vão, não há ninguém por perto.

Preciso recuar e voltar para dentro de casa e pedir para alguém averiguar. Ainda não confio na minha capacidade de luta e eu tenho apenas 7 anos. Começo lentamente a andar para trás, dando um passo por vez. Tentando aproveitar a chuva como forma de me camuflar e não expor minha localização.

Os sons se intensificam, como se o que está causando tal som estivesse se aproximando gradualmente e é questão de tempo até sair dos arbustos. Penso em simplesmente correr, mas não sei é o caso para isso. Se ele for rápido posso ser atingido pelas as costas sem chance de me defender.

Li sobre inúmeros monstros que são extremamente rápidos. Alguns praticamente invisíveis ao olho humano. Eu não teria a menor chance se fosse o caso disso. Mal consegui acompanhar o ataque do Godam. Me falta muito treino ainda.

Alcanço a metade do caminho até minha casa e percebo que o som estranho que vem do arbusto parou. Ao mesmo tempo interrompo meu recuo e fico de prontidão esperando algum tipo de reação.

Um leve som fino, difícil de compara-lo a algo que eu já tenha ouvido, começa a ecoar alto em minha direção. E saindo dos arbustos, lá estava ele, tal criatura da noite em cor azeviche que lentamente fixa sua atenção em minha direção.

— Essa aparência... será que é... — penso em voz alta, sem medir o som de minhas palavras ao tentar me relembrar que criatura é essa.

É do tipo insectoide, com uma carapuça que lembra um besouro. Pequeno, um pouco maior que um cachorro, talvez. Ele está há uns 80 metros de distância e se aproximando numa velocidade lenta.

A cada passo que monstro dá e se aproxima de mim, mais começo a ter certeza de qual criatura em especifico ela é.

—  Um Bruchus OpificemBesouro Opérario, definitivamente.

Uma criatura E-9, uma das mais fracas de todo o bestiário. Pelo o que eu pude ler sobre tal monstro, até mesmo uma criança consegue derrota-lo.

Bom, parece que me preocupei por nada. Antes que eu tente ataca-lo por conta própria, seria interessante chamar apoio, pelo menos para observar.

Todo cuidado é pouco.

Agora posso gritar por ajuda, porque sei que os Bruchus Opificem não voam nem andam rápido. Eles mantêm sempre essa velocidade lenta constante.

— Godam! Pai! Socorro! — grito no mais alto tom possível.

Em menos de 2 segundos sinto a pressão de uma onda de vento me atingir pela as costas. E antes que eu possa olhar para trás, sinto mais uma onda de vento, mas dessa vez menos intensa.

Quando finalmente viro-me para trás, vejo Godam e nossa inestimável Maid atrás de mim e em posição de ataque.

Eles olham em direção ao monstro e imediatamente saem de sua postura ofensiva.

— Ah, é apenas um Bruchus. Não há com o que se preocupar, Mestre Lucy. Posso resolver isso. — diz Jennifer ao caminhar lentamente em direção ao monstro com seu vestido típico de empregada e com um facão em uma de suas mãos.

Devo admitir que achei tal cena atraente.

Godam que está com seu avental de jardinam sujo, olha pra mim com um olhar empático, por achar que estou com medo desse frágil monstro.

Godam não poderia estar mais enganado e nem poderia imaginar que não os chamei porque estava com medo, mas sim porque queria que testemunhassem eu derrotar um monstro e com isso conseguir mais a confiança deles e do meu pai, que ficaria sabendo do ocorrido em primeira mão, para quem sabe, conseguir sair mais de casa, no melhor das hipóteses.

— Não faça isso. — interrompo Jennifer, que para seu trajeto e olha para mim esperando explicações.

— Aconteceu algo? Nós precisamos destruir ele, Jovem Mestre. — indaga Jennifer.

— Posso destruí-lo por conta própria? — pergunto olhando para ambos alternadamente.

Jennifer e Godam se fitam e entreolham numa espécie de diálogo silencioso e por um momento olham para a janela da nossa casa, na esperança de encontrar meu pai nos observando, mas sem sucesso.

Não é como se pudessem colocar a vida do filho de seu Mestre e patrão em risco desse jeito, por menor que ela seja.

— Pense que é para meu treinamento! Por favor! — peço mais uma vez, de forma mais enérgica que o habitual.

Jennifer olha mais uma vez para o monstro, que ainda está vindo em nossa direção, expelindo toda irrisória intenção assassina em nós, em uma velocidade muito lenta, o que deixa a situação um tanto cômica.

— Bom, acho que por ser um Bruchus Opificem não tem problema — diz Godam, que continua com sua lança pessoal em mãos.

— Por mim tudo bem também, Mestre Lucy, mas estaremos aqui perto. Se sentir medo, não há problema.

Ótimo, era o que eu esperava. Se eu conseguir realizar um ataque decente com a lança posso conseguir um pouco mais de confiança da Jennifer e Godam, pelo menos.

Imediatamente entro em posição de ataque e avanço em direção ao inimigo. Tento não demonstrar fraquezas nem incertezas em meus movimentos. Não quero que eles me vejam oscilando e percebendo alguma insegurança por parte de mim.

Eu até consigo prever Godam fazendo seus comentários lentos e arrastados sobre eu ainda ser inexperiente no caso disso acontecer.

Jennifer e Godam me acompanham, com suas armas em punho, analisando meus movimentos e do monstro ao mesmo tempo. Chego a uma distância de três metros da tal criatura e me posiciono na única pose que o Godam me ensinou e aguardo o monstro entrar na área de alcance.

Tal monstro não possui estratégias de combate, não usa magias ou habilidades. Ele apenas anda em linha reta em minha direção. Poderíamos dizer que é o monstro ideal para se treinar enquanto ainda sou inexperiente.

— Agora. — digo em voz baixa no momento em que percebo que tal criatura está em minha zona de alcance.

Trabalho em minha respiração como Godam me instruiu em um de seus treinos e coloco toda a minha força nessa única estocada desesperada contra a cabeça do Bruchus Opificem. Sinto a lança entrar alguns centímetros em sua cabeça, que se assemelha a de uma formiga, mas do tamanho de um punho fechado.

Jennifer e Godam permanecem em silêncio, apenas observando meus movimentos e a monstro atingido.

Removo a lança de sua cabeça e a criatura caí imóvel, como se tivesse perdido a capacidade de locomoção.

— Eu o derrot... — antes de terminar a minha pergunta, sou interrompido por Godam.

— Observe. — diz Godam num tom seco, um pouco mais frio que o usual.

Quando volto a olhar o monstro, percebo que Jennifer me observa constantemente. Decido relevar e volto a minha atenção a criatura que começa a perder sua tonalidade azeviche, alcançando um tom levemente cinza.

O que está acontecendo? Que fenômeno mais estranho. Isso é normal? Preciso entender

— O que é isso? Isso é normal? — pergunto em voz alta, sem tirar minha atenção do monstro.

— É o processo de destruição dela. — responde Jennifer que não se importa com o besouro, mas continua olhando para mim.

Alguns segundos depois, o besouro começa a se desfragmentar em incontáveis pedaços, como uma areia e se espalha por todo o chão.

— Veja, Jovem Mestre. Quando você derrota um monstro, ele se desfragmenta dessa forma. Eles sempre deixam essa areia escura quando são destruídos. — continua Jennifer, tentando me explicar o que acabara de acontecer.

— Foi uma boa estocada. Parabéns — congratula Godam, que se agacha para olhar a areia negra de perto.

Isso me lembra do meu aniversário. Me lembro de ter visto uma areia preta logo após a destruição daquela aranha. Naquela época eu não tinha dado muito atenção para isso, mas agora faz o sentido.

Mas ainda falta algo. Algo que eu li no bestiário e que foi uma das coisas mais confusas que pude ler. Cheguei a perguntar isso para Godam e Alexandrina, mas tudo que disseram foi que isso realmente acontece após você derrotar um monstro.

— Cadê a semente? — pergunto para ambos que já demonstram uma cara de confusão.

— Semente? — pergunta Jennifer sem entender nada, com uma de suas mãos na cintura e o facão na outra.

Ela realmente fica atraente dessa forma. Droga, não posso me distrair dessa forma agora.

O que eu vi constantemente no bestiário, sempre no final de todas as páginas, um termo que me pareceu ser sem significado, mas que está sempre presente. Não me gerou epifanias, o que me deixou mais confuso, ainda mais por soar como ilógico e sem sentido.

Eu preciso saber.

— É... Onde está o Drop? — pergunto num tom levemente desengonçado, sem saber se estou falando besteira ou não.

Jennifer e Godam olham para mim e então para a areia negra amontoada no chão.

Será que falei besteira? Quando li o bestiário, eles sempre afirmaram sobre um tal de Drop, que seriam itens que os monstros deixam quando são destruídos.

O Bestiário é bem detalhado sobre isso. Há certos monstros que dropam minérios raros e até mesmo madeira maciça em forma de cubo.

Isso não faz o menor sentido para mim. A ideia de uma criatura vida, quando morta, fornecer madeira me soa totalmente fantasioso. Minha mente renegou isso completamente, apesar das constantes aulas de Alexandrina e Godam, afirmando que isso era real.

Há até mesmo uma tabela com todos os possíveis Drops e sua probabilidade de aparecimento. Também parece que os itens “Dropados” são específicos a cada monstro a certa maneira e possuem um certo grau de raridade entre eles.

O Bruchus Opificem, se me lembro bem, dropa apenas uma semente. Apenas essa semente e nada mais. Não sei do que se trata essa semente, mas é o que diz o Bestiário. De qualquer forma, conseguiu meu interesse.

Nosso Elfo Jardineiro começa a passar a mão pela a areia negra, como se estivesse procurando por algo.

— Encontrei. — diz Godam após alguns segundos com seu ânimo fúnebre. — Aqui, a sua semente, Jovem Mestre. — estendendo sua mão enquanto ainda olhava para a areia negra no chão.

Imediatamente pego a misteriosa semente em meio a alguns grãos de areia negra. Olho diretamente para ela e realmente é uma semente. Possui um tom levemente roseado.

Realmente intrigante, preciso saber mais.

— Essa semente. Para que serve? — indago, totalmente interessado em saber o que poderia vir desta semente enigmática proveniente de um monstro.

— Cenoura. — responde Godam, que olha para Jennifer e a mesma responde com uma leve expressão de riso.

Cenoura? Apenas isso?

Olho para ambos que fazem um rosto de pena ao tirar todo o brilho de uma descoberta com uma resposta não muito interessante.

— Isso... foi meio decepcionante. — respondo de forma cabisbaixa perdendo total interesse na tal semente enigmática.

Bom, não é como se fosse um caso totalmente perdido. A partir dessa semente posso tentar tirar algumas conclusões interessantes.

É sempre a mesma semente? Como uma cópia exata ou são sementes genuinamente diferentes?

Sem falar sobre a tal areia negra. Do que ela é feita? Tem utilidade prática?

Quando tiver a capacidade de fazer esses estudos, o farei. Isso pode me levar a entender mais sobre esse mundo.



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