Volume 1

Capítulo 9: Os dois apocalipses

Seis meses se passaram desde que iniciei meu “treino” com Godam. Infelizmente ainda não consegui cortar a maldita tora ao meio, mas depois de tanto empenho finalmente estou próximo de realizar tal feito e sinto que hoje será o grande dia.

Devo admitir, em vários momentos estive próximo de desistir, mas Alexandrina e minha irmã e meus pais deram o devido apoio para continuar nessa empreitada. Também não é como se o Godam não tivesse me ensinado nada. Em certa altura, aprendi com ele algumas poses iniciais e a como fazer uma estocada simples com a lança, e desde então, venho utilizando o que ele me ensinou nesse processo de cortar a tora ao meio com essa maldita lança.

Não sei se ele apenas interviu no processo e me ensinou algo porque sentiu pena de mim ou porque sou fraco e normalmente crianças não aprendem a manejar uma lança tão cedo. Se eu fosse adulto, por mais que não soubesse manusear uma lança eu já teria partido ela ao meio há meses.

De qualquer forma, isso não pode ser ajudado.

Durante todo esse tempo, tenho dividido meus esforços entre estudos de magia com Alexandrina, minha penitência de atacar uma tora com Godam e ajudar minha irmã em seus estudos.

Quanto a questão da Maria, devo salientar que inicialmente a ideia era o oposto, mas quando começamos a estudar, percebemos que quem precisava de ajuda era ela. Maria ainda se encontra muito abalada e traumatizada com a situação do meu aniversário, mas nos últimos dois meses ela teve uma melhora significativa e está saindo mais de seu quarto.

Aliás, eu estudei, revisei e memorizei todos os monstros do bestiário que a Alexandrina me deu. A situação que presenciamos no meu aniversário e os efeitos que isso causou na Maria agiram como um combustível para que eu me empenhasse em aprender mais sobre tais criaturas.

A realidade desse mundo é cruel e preciso ao menos me dedicar em saber como me defender. Aprendi que tais criaturas invocadas possuem pontos fracos, elementos nos quais são mais frágeis, métodos importantes de como sobreviver e como utilizar os seus sentidos contra eles mesmos.

Meu pai disse que me daria mais liberdade e permissão para conhecer outros lugares assim que o Godam visse sinais de progresso em minhas habilidades. Não preciso dizer que isso foi um bom estimulante para a minha vontade de vencer tal desafio que Godam me incumbiu.

Outra razão por meu pai estar confiando mais em mim é devido ao tal emprego que minha irmã conseguiria como escrivã. Infelizmente o tal nobre que tinha nos prometidos o emprego não pôde esperar a recuperação mental da Maria e eu temporariamente “peguei” esse emprego para trabalhar no lugar dela enquanto recupera sua saúde mental. O trabalho é bem simples e consiste apenas em redigir certos documentos oficiais na qual eu já tenho uma cópia oficial para usar como modelo.

Aliás, esse tal nobre é um ser humano, o que explica a sua impaciência em esperar a recuperação da Maria. Seis meses é um tempo considerável para nós humanos. Todas as espécies Demi-humanas e elfos afirmam categoricamente que os seres humanos são impacientes no geral. É possível afirmar que se tal nobre fosse de outra raça, com certeza ele esperaria o tempo que fosse preciso para a recuperação da Maria.

Por mais trivial que esse ponto possa parecer, mostra uma característica forte sobre os comportamentos e as interações sociais entre as espécies. Os seres humanos possuem um sentimento de urgência em concluir coisas como se possuíssem um lembrete constante de que não podem perder tempo devido a sua vida curta, ao contrário de algumas espécies demi-humanas e elfos que simplesmente possuem todo o tempo do mundo.

Isso é também um dos maiores causadores de conflitos entre os habitantes dessa colônia de povoamento.

As colônias do Leste, onde residimos, é uma colônia de iniciativa humana. No geral, sociedades humanas e demi-humanas não possuem boa diplomacia e não é incomum todos os anos recebermos relatos de escaramuças ocorrendo entre clãs demi-humanos e reinos humanos no geral por toda a pangeia continental.

Aqui é um caso bem atípico onde seres humanos e demi-humanos e elfos vivem em relativa harmonia. Digo “relativa harmonia” porque é constante os problemas que envolvem os estilos de vida entre várias espécies.

Desde espécies demi-humanas que entram no período no cio e espalham feromônios fedorentos à elfos que prometem entregar um pedido em dois anos para um ser humano.

Essa sociedade multicultural não-homogênea que foi ganhando forma aqui possuí esses problemas inerentes, mas mesmo apesar disso as pessoas gostam umas das outras e na medida do possível aceitam as características das outras espécies.

Mas acredito que isso seja uma questão meramente circunstancial. Quando parei para refletir sobre tais diferenças raciais e culturais, recebi uma epifania sobre política, geografia e outros assuntos acerca desse tema.

A primeiro momento nossa cidade e outras colônias podem estar dando seu jeito para sobreviverem apesar de nossas diferenças, mas por enquanto somos nada menos que um conglomerado de pequenas aldeias com pouquíssimos habitantes. Todos se conhecem e acabam adquirindo empatia, respeito e carinho pelo os outros. E se fosse numa cidade de dezenas de milhares de pessoas? Onde os habitantes já não se conhecem e uma grande parte da população são de completos desconhecidos.

Essa pequena e complicada harmonia poderia ser mantida? Eu particularmente acho que não, e meu pai me explicou que não existe nenhuma metrópole multicultural no mundo.

Humanos são escravizados em sociedades Demi-humanas e Demi-humanos são escravizados em sociedades humanas. Essa é a ordem natural das coisas, disse ele.

Os elfos possuem a menor população de todas e pelo o que eu pude ler sobre sua história, eles já foram uma civilização mais numerosa e com territórios próprios ao longo da pangeia continental. Historicamente, parece ocorreu um problema entre os elfos contra os humanos que é sentida até hoje através de preconceitos raciais e xenofobia.

Elfos são muito inteligentes e devido a sua força magica e conhecimento ancestral, a maioria de sua população reside em universidades e instituições de ensino como professores. A não ser que tu seja um elfo consagrado dentro desse círculo de mestres e professores, a maioria acaba se tornando escravo ou apenas vivendo afastado da civilização nas florestas, suportando a invasão de monstros.

Esse é o caso de Godam, que está de pé, como sempre, me observando estocar essa tora que está próxima de ser derrubada. Eu não conheço muito bem a sua história pessoal. Ele tem mais de 200 anos pelo o que eu sei. Viu muita coisa, presenciou muita coisa, tem experiência real de batalha em guerras e também é um pouco entediante com sua paciência absurda.

Posso compreender um ser humano taciturno e estoico, mas um elfo taciturno e estoico é cem vezes pior. Seis meses se passaram e ainda estou na primeira lição. Espero não terminar esse treinamento com 60 anos de idade.

Estou com a lança em minhas mãos e já não sinto dor em manuseá-las. Godam disse para evitar de usar magia de cura em minhas mãos para que eu não perca todo o progresso do meu treino. Parece que a mão ficar calejada é importante para fornecer o instinto e a pegada correta na hora de atacar, mas magias curativas acabam se tornando um problema.

Qualquer magia de cura aparentemente se baseia numa versão específica do seu corpo e qualquer alteração fora dessa "versão" é alterado para a "versão escolhida". Não definimos qual seria essa tal versão escolhida, mas ela existe. Possivelmente a sua versão mais saudável possível ou algo determinado por seus genes, eu não sei.

Então, mesmo que minhas mãos calejadas já estejam saradas, ao usar magia de cura nelas, meu corpo tenderá a voltar para o estado inicial como se nunca tivesse treinado minhas mãos. Aparentemente, os efeitos decorrentes de danos constantes são removidos, mesmo que tais danos tenham sido propositais.

Godam e minha mãe me explicaram que devemos evitar utilizar magia de cura em área em guerreiros desnecessariamente por causa disso. Claro, salvar a própria vida é a prioridade, mas se recuperar de certos danos causados pela a experiência pode acabar inibindo a habilidade de um espadachim experiente.

De qualquer forma, não fiz questão de utilizar magias de cura e busco me recuperar de forma natural.

Está chuviscando hoje. Minha mãe pediu para não treinar, mas eu estou perto demais de conseguir derrubar essa maldita tora. Já faz um bom tempo que está chovendo fraco que poças de lama já começam a se formar e gotas escorrem pelo o meu rosto e cabelo.

A cada estocada que dou na tora, percebo as gotas de chuva que escorrem pelo cabo da lança mudarem de trajetória devido a velocidade da estocada. Comparado há seis meses, meu ataque está muito mais forte e preciso.

O que eu levava o dia inteiro para remover apenas pequenas lascas de madeira, hoje um único ataque consegue arrancar uma lasca pelo menos. Não é nada demais comparado ao monumental poder absoluto que Godam demonstrou, fora que ainda levei mais de seis meses para estar perto de cortar tal tora no meio, mas é um progresso assegurado.

— Você está colocando muito peso na perna direita — interrompe Godam com seus equipamentos de jardinagem equipados.

Ele realmente leva a sério a jardinagem.

— Droga, você tem razão. Não é a primeira vez que você fala isso. — respondo num mais frustrado que o habitual.

Seis meses fazendo isso e ainda errando. Parece que não tenho vocação para isso.

— Sim, mas vícios de aprendizagem são coisas normais. São marcas do guerreiro, fazem parte de quem você é. Até mesmo eu carrego alguns. O importante é fazer desses vícios algo que favoreça seu estilo de luta. — diz Godam que estende a mão pedindo pela a lança e eu prontamente a entrego.

Ele se posiciona de forma ofensiva exemplificando seu pronto e continua: — Uma vez conseguindo estabelecer seu próprio estilo, ninguém será capaz de copia-lo. — concluí realizando uma estocada simples logo em seguida.

— Teoricamente, consigo entender o quis dizer, mas essa estocada que acabou de realizar é o modelo tradicional, certo?

— Sim, precisamente, Jovem Mestre. Você percebeu, pelo o visto. Esse é o jeito ensinado da maneira mais tradicional, mas eu realizo de forma diferente, pois adaptei ao estilo que utilizo. — Godam mais uma vez entra em sua posição de ataque e realiza uma nova estocada.

Diferente da primeira, nessa eu sinto uma pressão estupidamente maior. Há mais força colocada e uma rajada de vento atinge meu rosto, coisa que não aconteceu no primeiro ataque.

Os movimentos de Godam foram bem mais leves e maleáveis. Tão fluídos como se seu corpo se comportasse como água. É perceptível a discrepância de qualidade técnica que os dois golpes possuem.

Devo admitir, essa discrepância é maior do que eu imaginava. Não sabia que os estilos de luta poderiam mudar tanto assim de pessoa para pessoa.

— É como você disse, Godam. Parece que são estilos completamente diferentes.

Godam sai da sua posição de ataque, para e reflete por mais alguns longos e irritantes segundos antes de me responder.

— Não seria errado colocar dessa forma. Há várias escolas para vários estilos de luta. — diz enquanto devolve a lança para mim. — Podemos chamar isso de um estilo próprio que desenvolvi e você pode em partes absorver ele, mas você sempre tenderá a buscar seu próprio estilo. Mas o modelo tradicional é somente uma base, a maestria é superar e criar algo novo.

— Por isso que você está me ensinando a base e não seu próprio estilo?

— Exatamente, eu quero observar seu progresso natural e de que forma você tende a buscar seu equilíbrio próprio. A partir daí posso começar a mostrar mais do meu estilo de luta.

Faz todo o sentido. Então todo esse período de treinamento básico era apenas para aprender a base, mas o seu real estilo de luta ainda está por vir. Bom, eu preciso entender mais como funciona essas metodologias.

— Há muitos estilos de luta para aqueles usam a lança?

— Não, não existem escolas para lanceiros pelo o que eu sei. Pelo menos não atualmente. Alguém usar uma escola específica da arte da lança é bem incomum hoje em dia.

— Isso é estranho, ela parece ser bem funcional, por quê?

— Historicamente, apenas Elfos e Demônios usavam lanças como arma principal. Os humanos sempre utilizaram espadas e escudos. Esse estilo que possuo deriva de um estilo Élfico que aprendi quando criança.

Godam para por alguns instantes antes de continuar a explicação. Sinto que ele está contemplando seus velhos tempos numa outra era. Bom, eu sei que hoje os Elfos estão dispersos pelo o mundo. Talvez ele tenha perdido entes queridos.

— De qualquer forma, Jovem Mestre, tome cuidado com o que eu estou te ensinando. — diz num tom mais sério que o habitual e continua: — Você poderá sofrer um certo preconceito em utilizar a arte da lança publicamente.

Que? Por quê? Era só o que me faltava. Ele me avisou sobre isso somente agora? Ou seja, eu tenho risco de sofrer represálias só por usar uma lança? Será que eu morri na minha vida passada por um motivo fútil desses? Talvez eu devesse parar de treinar usando lanças.

Não, eu tenho uma oportunidade de ouro de ter alguém como Godam para me ensinar um estilo de luta praticamente inexistente e que se demonstra ser poderosíssima. Preciso entender mais a respeito disso.

— Interessante. Por quê?

— Entenda, uma coisa é usar a lança em si. Exércitos de humanos usam em algum grau lanceiros contra cavalaria, o problema é que esses lanceiros não são versados em nenhuma escola ou estilo de luta élfico ou demoníaco. — me alerta Godam, com um tom mais agitado que o normal.

— Qual é o grande problema de saber algo tendo tais origens?

— Uma arte élfica pode até ser aceita na maior parte dos casos, mas se você soubesse uma arte ou estilo demoníaco você seria caçado e morto. Tudo isso ocorre em decorrência das grandes guerras raciais do passado.

— Guerras raciais? — indago Godam. Nunca ouvi falar de tais guerras. Infelizmente não tenho muitos livros de história militar.

Godam faz uma expressão cansada, como se tivesse sendo puxado ao limite por ter que falar tanto assim. Eu entendo que por ser taciturno, ele tem feito o possível para me explicar com os máximos detalhes possíveis.

— Sim, você já tem uma ideia do que foi. Sua mãe cantava algumas músicas de ninar sobre tais eventos. — responde Godam num tom mais lento e sem ânimo.

Bom, realmente me lembro de tais músicas. Eram completamente fantasiosas ao meu ver e continham algum ensinamento moral. Eu não sei se o mais estranho é o fato de fazerem uma música de ninar infantil sobre uma guerra ou eu nunca ter ouvido falar sobre isso.

Espera, na verdade Alexandrina comentou sobre isso quando me explicou sobre o clero dos Heróis. Quando uma tal imperatriz da raça demoníaca tentou exterminar a raça humana. Será que é isso na qual ele se refere?

— Sim, me lembro de tais músicas, mas não fazia ideia. É sobre uma tal de Imperatriz Demoníaca?

— Lilith? Não, não tem nada a ver com isso. Você deveria depois conversar mais sobre isso com seu pai, ele estudou muito sobre essa época. — responde Godam que agora faz uma leve expressão engraçada enquanto coça a cabeça pensando na melhor forma de explicar tais acontecimentos históricos para uma criança de 7 anos.

Bom, eu não sabia que nossa conversa caminharia para esse lado, mas conhecer mais sobre o mundo é sempre bem-vindo. Ainda mais vindo de alguém com mais de 200 anos de idade.

— Me explica, Godam, por favor. — respondo com um rosto de uma simples criança de sete anos que quer aprender.

Isso é irrecusável. Preciso usar os artifícios que tenho a disposição.

Godam vendo que não tinha alternativa a ter que me explicar mais sobre a história, bufa e puxa mais ar do que o habitual e começa a explicar:

— Antes de Lilith surgir, os demônios já tinham sido expurgados e apenas existiam um punhado deles. Os Elfos também já tinham sido derrotados e largados a mercê em sua grande diáspora. E os Demi-humanos em sua larga maioria também já estavam sendo escravizados em massa pelo os humanos.

— Entendo, então tanto os Demônios e os Elfos tiveram países próprios?

— Sim, eram a potência mundial de todo a pangeia continental. Há mais de 1000 anos os humanos guerreavam praticamente numa guerra interminável contra os Elfos e Demônios que tinham formado uma Aliança. Se me lembro bem do nome... — Godam coça a cabeça tentando se recordar da história quando é agraciado por sua memória de 200 anos ainda estar funcionando e continua: — Eles se auto denominavam como “Coligação”.

— E mesmo assim os humanos venceram? Os Elfos e demônios parecem ser muito mais fortes que os seres huma... — sou interrompido pela a presença de alguém se aproximando de nós.

Olho para trás e vejo meu pai com uma xícara de café e um guarda-chuva vindo falar comigo e Godam.

— Ei, vocês. Como está o treinamento hoje?

— Indo bem como sempre, Senhor Sepphirus — responde Godam com um tom de respeito bem elevado, seguido de uma assente com sua cabeça.

— Está tudo bem pai, Godam estava me explicando sobre a história antes de Lilith. — respondo meu pai que ao ouvir minha palavras reage com um leve arregalar de olhos.

— Ah, verdade? Interessante. Bom, eu conheço um pouco sobre esse assunto. Talvez eu possa ajudar.

Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, Godam toma a dianteira e toca no assunto específico no qual estávamos nos falando.

— Estávamos falando sobre os países Demoníacos e Élficos e sobre como declinaram. — responde Godam.

— Sério? Você já explicou sobre a Coligação? — pergunta meu pai num tom eufórico, como se estivesse animado com este tópico em questão.

Godam responde com um simples assente. Acho que isso é um assunto que meu pai gosta de ler.

— Sim, pai. Estava a perguntar sobre como os Demônios e Elfos ruíram já que aparentemente são muito mais fortes e resistentes que os seres humanos.

Meu pai para pôr um mísero instante, esboça um leve sorrido de como soubesse tudo sobre o assunto e que está pronto para dividir sua sabedoria e diz:

— Sim, eles eram muito mais fortes. Um demônio equivalia uns 50 mil humanos no campo de batalha. O problema é que tanto demônios quanto Elfos possuem um problema crônico de reprodução. Os demônios eram praticamente imortais, mas não conseguiam gerar muitos filhos. Ou seja, a população total demoníaca era irrisória comparada a humana que consegue ter uns 10-15 filhos se quiser.

— Agora faz sentido. Os humanos conseguiram vencer superando numericamente.

— Sim, chegou num ponto em que os humanos eram tão numerosos que eles não puderam fazer nada a respeito. Ao longo dos séculos, o território da coligação foi sendo reduzido ao ponto que apenas a capital demoníaca sobrou no final. Ela ficava numa grande cadeia de montanhas que ainda é dominada pelo o sopro de Lilith.

— Foi totalmente destruída?

— De certa forma, não. — responde meu pai que agora olha para Godam de um jeito atípico.

— Bom... Não necessariamente. — completa o Elfo com seu equipamento de jardinagem de uma forma que não sabe como explicar os próximos eventos.

— O que aconteceu? — indago ambos, pressionando-os para que me deem todos os detalhes.

Essas informações são importantes eu acho. Acredito que eu possa abordar meu pai sobre esse assunto com o nível de confiança que estou conseguindo dele. Ele é um erudito.

— Bom, todas as antigas regiões Élficas e Demoníacas foram conquistadas e colonizadas pelo os humanos. Nessa altura, o domínio humano era absoluto. Foi quando um evento apocalíptico ocorreu. — diz meu pai.

— Evento apocalíptico? Não é o que a Lilith fez com o mundo?

— Também, mas antes disso a humanidade quase foi extinta também. Na verdade, não somente os humanos, todos os seres vivos.

Ou seja, tiveram dois eventos apocalíticos aparentemente. Seria cômico se não fosse trágico. Isso é confuso. Será que isso aconteceu mesmo? Extinção total da vida? Como isso seria possível. Eu não sei se consigo conceber a conceito de extinção em massa com nosso nível de tecnologia.

Recebo uma epifania sobre conhecimentos acerca de desastres naturais como tsunamis, meteoros e vulcões.

Talvez possa ser isso.

— Então ocorreram dois apocalipses? Isso realmente aconteceu?

— Sim, tivemos o azar de sofrer dois apocalipses. Bom, isso faz muito tempo, mas muito do ocorrido foi mantido ao longo das gerações e também através dos livros escritos acerca do evento antes da vinda do “Incidente de Lilith”. — explica meu pai que leva a sua xícara de café a boca para mais um gole e continua: — Hoje, tudo isso são apenas lendas distantes, mas realmente aconteceu.

Entendo. O que Lilith causou é chamado de “Incidente de Lilith”. É o nome dado ao seu apocalipse. Eu pude encontrar várias referências a esse termo nos livros que estudei e no Bestiário que Alexandrina me deu.

— E o primeiro apocalipse, como foi?

— Os antigos chamavam o evento de “A queda”. Esse evento foi parecido com o que a Lilith causou no mundo. Poderíamos dizer que Lilith se inspirou na “A queda”. Ou seja, através de uma invocação massiva de monstros. — responde Godam.

— Exatamente, os Demônios conseguiram desenvolver uma magia capaz de criar uma absurda invocação de monstros a nível que ocupou todo o mundo conhecido. A magia foi semelhante à da Lilith, mas diferente. Envolveu uma explosão colossal que obliterou todo o exército humano, o mundo ficou sem luz por alguns meses e fome proliferou. Foi um ataque final desesperado. Os demônios estavam sendo extintos e então usaram essa arma do juízo final.

— Realmente, soa inacreditável, pai. E isso ocorreu na capital demoníaca? Imagino que não tenha sobrado nada.

— Esse é o ponto, filho. Sobrou e ela ainda existe. Aparece a cada vinte anos e você pode presenciar com seus próprios olhos. — reponde meu pai, já prevendo minha expressão de dúvida.

— Ver com meus próprios olhos? Como assim? — pergunto enquanto vejo ambos com um leve sorriso devido à natureza de minha dúvida.

— Os Demônios usaram a própria capital como uma fortaleza instransponível para conjurar essa magia. Essa magia envolveu literalmente levitar toda a cidade para o céu e assim evitar o ataque humano. — afirma meu pai.

O que!? Levitar a cidade? Isso é simplesmente impossível. Minha mente recusa a ideia de uma cidade flutuante automaticamente e tudo na minha mente quer negar com todas as forças a sua existência apesar de achar bem legal a possibilidade de isso existir.

— Parece ser algo bem fantasioso. — respondo olhando para Godam que faz uma expressão de que tudo que meu pai acaba de dizer é a mais pura verdade.

— Sim, não há qualquer coisa parecida em nenhum outro lugar e essa magia foi perdida. Após todos esses anos, o castelo continua flutuando e circundando toda a pangeia continental.  Só que demora umas duas décadas para terminar todo um ciclo.

Incrível. Eu espero poder presenciar isso com meus próprios olhos um dia.

— Quando foi a ultima que passou por aqui?

— A última vez que passou você não era nem nascido. — Meu pai para por alguns segundos e fecha os olhos para fazer os cálculos mentais. — Quando você fazer uns dezesseis anos, possivelmente conseguirá vê-lo, apesar de que o castelo passa meio distante daqui. Conseguirá vê-lo de muito longe.

— Entendo, e há gente dentro desse castelo?

— Não sabemos. Mesmo se usarmos『fly』não conseguimos acessar o castelo. Há uma barreira contínua impedindo que qualquer um entre. — explica meu pai que joga o final da xícara de café na grama.

Fly? O que é isso? Uma magia talvez? É o que eu posso imaginar.

— O que seria esse tal de『fly』, pai?

— Ah verdade, você não conhece essa magia ainda, presumo. Ela permite que você voe. É considerada nível doméstica, já que não tem propriedades ofensivas, mas é dificílima de conjura-la.

Impressionante. É possível até para nós, humanos, voarmos. Hoje está sendo um dia de aprendizados.

— Impressionante. Você consegue, pai?

— Sim, mas apenas por alguns minutos. Tem Elfos que conseguem ficar horas voando. Podem viajar por toda a pangeia em poucos dias.

— E você, Godam?

— Infelizmente, não. Mas já tentei no passado.

— Sério? — indaga meu pai com um tom surpreso — Não fazia ideia.

— Foi há muito tempo, você era um recém-nascido nessa época.

A resposta do Godam faz com que meu pai esboce um leve sorriso. É engraçado ouvir de alguém com uma fisionomia tão mais jovem que meu pai ser tão mais velho assim do que ele.

Em tese, o dieal seria tratarmos Godam como uma espécie de senhor, mestre, erudito, idoso. Sua sabedoria, forma de agir e adereçar para alguém é muito anacrônico, diria.

— Jovem Mestre, acho que é o suficiente por hoje. Amanhã continuaremos com o treinamento. — Godam interrompe meus pensamentos com seus equipamentos de jardinagem já em mãos pronto para começar a trabalhar.

— Já? Só se passaram duas horas e sinto que hoje vou conseguir derrubar.

— Entendo.

...

Só vai responder isso!?

Meu pai finta para mim com uma expressão de “Não posso te ajudar com isso.”

Godam continua imóvel, não sei se aguarda alguma ordem minha ou está apenas refletindo sobre o que fazer. Bom, se depender dele, ficaremos a tarde inteira para decidirmos.

— Você pode ir trabalhar se desejar, Godam. Não tem problema. Eu continuarei aqui atacando a tora, se eu conseguir derruba-la, te chamo. — digo com um tom levemente autoritário, como filho de seu Mestre.

Godam reflete minhas palavras por alguns segundos, assente corporalmente com sua cabeça e diz: — Tudo bem, Jovem Mestre, estarei trabalhando enquanto pratica. — ao término de suas palavras, Godam rapidamente vai em direção ao ambiente de trabalho favorito.

Acho que ele está entusiasmado com alguma coisa hoje relacionado ao jardim.

— Bom, eu já vou entrando também — avisa meu pai que se vira para voltar para casa. — Tente não pegar muita chuva, filho. Você pode acabar ficando doente e não se esforce demais.

— Tudo bem, pai. Pode deixar.

Enfim, volto minha total atenção ao meu inimigo mortal e continuo a estocar a tora. Talvez devido à ausência de alguém me observando sinto-me mais livre para movimentar meu corpo da forma que eu ache melhor. Era estressante ter alguém olhando e julgando em silêncio cada movimento seu por horas a fio. É diferente da Alexandrina na qual já temos uma amizade e quando aprendo algo novo, ela se diverte observando esse processo sem me julgar cada movimento meu.

Após algumas estocadas e confiante de minha vitória triunfante contra uma tora de madeira ouço um barulho distante em alguns arbustos próximo das delimitações de nossa residência.

— Que som é esse? — penso em voz alta.



Comentários