Pôr do Sol Brasileira

Autor(a): Galimeu


Cidade Flutuante – O Orfanato

Capítulo 4: Então não se esqueça

Mark se arrumou devagar e sossegado, porém, ao chegar próximo à porta, Maria tinha a aberto antes de seus dedos encontrassem a maçaneta. 

— Fui mais rápido do que você, hihi — comentou Maria, com um sorriso no rosto. 

Devolveu o sorriso como um comprimento. Como no dia anterior, se reuniu com seu irmão e se preparava para ir à escola. Will, reclamava do porquê deveriam ir às aulas mesmo nos últimos dias: 

— Praticamente só vai à gente! — insistiu. 

O ouvia enquanto escovava os dentes, assentiu. Apesar de isso não ser verdade, queriam acreditar, afinal, seria divertido perambular por uma escola quase deserta.  

Com os dois perto do ônibus, entraram devagar ao cumprimentarem o motorista como sempre. 

— É... Vocês não faltam mesmo — Notou o resto dos assentos vazios. 

— Sempre foi assim, então hoje não seria diferente, né? — respondeu Will, inconformado. 

Sentaram-se no mesmo banco de antes e prosseguiram para a viagem que nunca iam esquecer. 

 

 

O trajeto foi confuso, transitava por várias casas e nunca recebia mais nenhum passageiro. O motorista fez sua última parada, decepção estava gravada no toque suave do volante. Suspirou e disse: 

Vish, pelo visto, fica só entre a gente mesmo. Não duvido de que tarde seja assim também. — Olhava para os únicos no ônibus. 

Não era o tempo, acidente, feriado, greve ou nem vontade que definia os dois garotos como os únicos ali. Todas as escolas enfrentavam momentos parecidos perto das férias ou durante o término do ano letivo, mas, mesmo assim, a expressão determinada dos dois persistentes mostrava a exceção viva. 

— Seu professor disse em qual dia vai entregar as provas? — perguntou Mark ao voltar-se para seu irmão. 

— Não… não disse. Ele já espera que quase ninguém vá nos próximos dias. — Mexia as mãos, nervoso. 

Will, preocupado, colocou as mãos no bolso, escondia sua falta de controle e continuou: 

— Quer saber! Não tem problema! Vou só esperar o boletim e encarar o meu fra… 

— Cara, eu já falei com você, vai dar tudo certo, ou melhor... já deu! Mesmo se você estiver mal, estarei aqui pra sempre tentar ajudar. — Deu peteleco na testa de seu irmão. 

As mãos inquietas se tornaram calmas. Somente o balanço do ônibus trazia a atenção dos dois à pista. Apenas tinham seus olhares inocentes, vidrados na paisagem. Sempre passavam por aquelas colinas. Tinham a visão de uma boa parte da cidade, observavam tudo com clareza.  

Nada havia para se preocupar, pelo menos… nada perceptível. 

Numa das colinas mais altas, um observador, que estava envolvido em um manto azul tinha passos pesados e lentos sobre a grama. O seu braço tinha um pano amarrado e, com a ligeira mudança dos ventos, deixou vazar sua blusa azul com listras brancas. 

No momento que a descida se tornou presente no trajeto, um chiado constante invadiu a paisagem. O som irritante se converteu a uma explosão de pura surpresa. 

— MERDA!  

Os dois retiraram seus olhares com o ímpeto. O equilíbrio do veículo fez seus queijos atingirem os bancos sem qualquer aviso. 

O pneu dianteiro direito explodiu. Viam o homem lutar contra o volante para manter o controle, mas, ao chegar perto da curva, o ônibus não virou o bastante. Bateu sobre as muretas de proteção de lado.  

O frio da barriga esfaqueou qualquer reação. Estava em queda livre, derivados pela variação da gravidade dos fatos. 

— APERTEM OS CINTOS! — gritou ao apertar um botão embaixo do painel. 

O coração dos dois dispararam. Mark estava novamente num turbilhão de pensamentos, quase rasgava o cinto com a pegada. O ônibus caiu de um dos morros mais altos da cidade. Para atentos de mais longe, o estilhaçar da carroceria coçava as orelhas. 

— Will! Segura esse treco…   

Bateram em uma árvore, causou um grande barulho com o impacto. O motorista teve sua a cabeça chocada contra o painel. As espinhas gelaram pelo absurdo, o líquido vermelho saia da cabeça do boneco no volante.  

Ficaram presos na mesma árvore num estado inconstante. O veículo ia deslizar e continuar a queda, mas, num ato impulsivo, seu irmão não ligou. O sinto foi jogado de volta e o correr desesperado estalou por cada nanômetro. 

— Não! Will! — Tentou agarrá-lo. 

A árvore entortou. Seu irmão ficou parado no meio do veículo, em pé, enquanto se segurava nos assentos. A visão embaçava e tudo ficava inconstante. A queda, enfim, se desencadeou de novo. Permaneceram no ar, até acertarem o chão com ainda mais força.  

Mark não acreditou. O jovem de cabelos bancos escorregou e  foi lançado pela janela da frente. O vidro quebrou e pode ouvir o seu corpo atingir o lado de fora. 

Sangue esquentou. Olhos arregalaram. Estendeu o braço, viu o chão chegar para atingi-lo em cheio.  

UaaH. 

A nuca acertou o seu banco.  

 

 

Vento gelado. Chão gelado. Roupas geladas. O ar fresco dava saudações, despertava o acidentado. 

— Will, cadê...  

As roupas estavam completas por sujeira. Neve. Neve? Sem entender como havia parado ali, olhou em volta. Estava de barriga pra baixo, apenas se levantou sem qualquer folego para processar.  

Aquele lugar. Sim, o mesmo de antes. “O... quê?” A cabeça provou existência. Dor aguda atingiu, sentia que seus olhos iam pular para fora. Nenhum ferimento grave, apenas a extrema e exagerada fadiga devido aos impactos. 

— Que diabos é... Ahrg! 

Caminhava devagar, com uma respiração tão funda e prolongada, piscava lento e... Um corpo. Tinha um corpo logo ali na frente. A percepção do ambiente se diluía mais e mais, entretanto, em um arrepiar de susto, suas mãos começaram a ficar geladas, e o branco se tornou tudo. 

Zumbido dos ventos invadiu o terreno. Em meio piscar de olhos, somente a Neve era o que notava. Claridade anormal que se estendia e cobria todo o morro.  

— Meu Deus... 

Arrepiou-se ao olhar para cima. O céu estava dividido em dois, noite e dia disputavam a ideia do tempo, violavam todo o sentido que conhecia como sanidade. Estava enlouquecido de vez? 

Ainda assim, se voltou para o corpo, naquele corpo que tinha medo de reconhecer. Se aproximou. Os joelhos vacilaram e o lábios se apertavam. Queria que fosse... Não, precisava aguentar. Precisava... 

O branco por perto derreteu em cor vermelha, sangue. Encarava o corpo que lutava pela vida com cacos de vidro adentrados por toda pele. Uma ferida enorme e aberta em na perna esquerda, onde deixava as partes internas à mostra sem delicadeza. 

Braço quase decepado, rosto marcado pela angústia e uma barriga que se movimentava para anunciar o fim tão sofrido. 

Mark tremeu, engoliu saliva e soluçou. As pernas não paravam de se mexer e perderam o equilíbrio. Acabou de joelhos, novamente. Aquela pessoa... congelava. 

A ligeira respiração cessou. 

— W-Will? Will? — chamava-o com a voz trêmula.   

Balançava o corpo com as mãos, mas só vinha sangue como resposta. As retirou, no mesmo instante, e as pôs sobre sua cabeça com força.  

"Reverta", comentou a voz gutural nos confins de seu pensar quase despedaçado. 

Onde? A ordem o fez saltar, mas não impediu as lágrimas que escorriam. Arbustos, árvores, o ônibus, o sol e lua no mesmo horizonte, e aquilo. 

A assombração, a sua própria assombração, espiava ao longe. “É. Você” 

Uma cortina de neve pairou e aterrissou perto, ficou presa no cabelo que pertencia ao seu irmão, selou o corpo que se disfarçava para ser um com a paisagem. 

Pegou um pouco de neve com as mãos e a aproximou do seu rosto confuso. 

— C-como? COMO! — questionava com desespero. 

Um paraíso gelado o cercava, o sol foi engolido por nuvens escuras que traziam tudo menos esperança. Algo mudou ali, Mark começou a notar isso com um ódio sem igual. 

Se atentava a tudo ao redor; o ônibus não estava mais ali, sua mente disparou. Não sabia o que aconteceu. Já bastou. Os lamentos chorosos ecoaram por tudo, e aquilo só observava. 

— Tô louco, louco, louco, louco... UaaaAH. 

Seus pensamentos queimaram. Gritou mais uma vez. O juízo foi incinerado. 

— ERA ISSO? ERA ISSO QUE EU TINHA SENTIDO? Argh! 

Se lembrava do que o fez perder o sono, perdia o fôlego ao ter lembrado dos sinos.

Arrancou um pouco de seu cabelo ao tentar raciocinar mais uma vez, mas, em um choro, fechou os olhos.  

Tentar sempre, tentar sempre. Sempre tentar, sempre tentar. 

Sinos... Sinos tocaram ao seu redor. Levantou um rosto surpreso. Havia lágrimas escorridas, e a pele estava suja pela neve. Ainda não conseguia enxergar os sinos. 

Olhou ao redor, girou com rapidez e angústia até que, enfim, olhou para o seu irmão de novo. O som produzido aumentou com clareza. Seus olhos arregalaram e perdeu o equilíbrio por um instante.  

Os sinos estavam quase a deixá-lo surdo. Tampou os ouvidos com as mãos com brutalidade sob a dor intensa, que o fez vacilar em deixar seu corpo livre para a queda. 

Tudo girava junto, os olhos estavam para explodir, o cérebro, braços, pernas, orelhas... tudo. Sua barriga tentava capturar o ar. Seu irmão estava lá, os sinos, o zumbido, o frio, a solidão, o medo e os... Sim, os passarinhos. 

Antes de tocar no chão, um soar incomum veio dos barulhos que ensurdeciam, finalizaram a melodia de tortura em um tom alto. 

Tentar nunca, tentar nunca. Nunca tentar, nunca tentar. Nunca. Tentar. 

Por reflexo abismal, os braços foram ao chão, e ele não caiu, a neve voou com a agilidade momentânea. O reverberar de seus gritos foram reduzidos a ecos que destacam fraqueza e nada mais. O paraíso gelado ria dele.  

Retomou o equilíbrio ao se levantar sem mais nenhum alarme, então... Os sinos pararam. 

Ficou ali ao olhar para cima, observando o céu nublado e... Seu semblante mudou de repente. 

Olhava para tudo, árvores, arbustos, plantas e, novamente, para o seu irmão.  

Estava calmo, seu rosto ficou estático. 

Ergueu suas mãos para a frente do corpo com o rosto sério e tão frio quanto tudo ao redor. Uma eletricidade veio de seus olhos e fluiu até suas mãos, onde se intensificaram. 

Ferva — sussurrou. 

Chamas de cor ciano surgiram em seus braços, trocaram de lugar com as descargas de eletricidade azul. Tocou ele com elas sem hesitar, mas não o queimaram, invés disso, começaram a curá-lo.  

Os ferimentos fecharam, seu sangramento parou e os cacos de vidro foram expulsos. Ele... não tinha nenhuma reação. A mudança brusca de agir tomou lugar. E a alma bisbilhoteira não estava lá. 

— Então não se esqueça, meu puro — comentou baixinho ao voltar-se novamente para o céu. 

Suas pupilas dilataram de forma inimaginável. Num instante um quarto de piscada, a visão escureceu e o sono perfurou o pensar. 

O céu foi limpo como sabão em gordura, e o observador do manto pode contemplar atentamente o evento que apreciava pela sombra do capuz. 

— Obrigado, mãe.   

 

 

 



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