Possessão Brasileira

Autor(a): Matheus P. Duarte


Volume 1

Capítulo 28: Passados

Durante a calmaria da noite, o som dos grilos foi cortado pelo barulho alto da moto que seguia a estrada coberta pela luz pálida da lua.

A distância, um letreiro anunciava o próximo local habitado, um posto de gasolina.

Parado perto dos banheiros, um homem alto com barba e bigode de estilo mexicano, fumava enquanto tentava combater a sonolência nos olhos.

Vendo o amigo de longa data dirigindo aquele veículo com uma gandola do exército brasileiro, um sorriso enorme foi aberto em seu rosto, lançando o cigarro para cima do asfalto.

— Dale, Teus, orgulho da tropa!

Sem delongas, ele deixou a moto para receber um abraço caloroso de boas-vindas.

— Mas bah, tchê. Quem te viu, quem te vê.

— É bom te ver também, Guilherme, ainda que não quisesse nessa situação.

— Imagina a gente montar uma MG34 ali no carona e sair metendo o logo que nem no BF, mano! Tá loco!

— Quem dera ter vindo pra isso…

Ele o levou para inspecionar os itens dentro da sacola. Os diversos itens de combate foram o suficiente para retirar sua expressão amistosa.

— Lembra do meu Rossi? — falou abrindo a roupa e retirando do coldre a pistola que carregava — Deixei em casa, pra alguém que pode acabar precisando mais que eu.

A cena fez Guilherme acenar positivamente, vestindo um olhar repleto de consideração.

— E como vamos encontrar ela?

Ao guardar a arma, retirou um celular do bolso com um aplicativo específico.

— Por precaução, guardava alguns dispositivos de rastreamento. Como mantinha as garotas sempre sob vigilância e tinha bastante confiança na Asashio pra cuidar delas; pra falar a verdade, até nelas, resolvi não usar, mas depois do último incidente…

— Entendi. Não dá pra perder tempo.

— Trouxe suas coisas?

— Só o suficiente pra lutar uma segunda vez na Venezuela — falou sorrindo.

— Então pega só o que conseguir levar escondido. A última coisa que precisamos é de alguém ligando pra polícia dizendo que têm 2 marmanjos brincando de GTA.

— // — // —

Na mesma estrada, um pouco mais cedo, uma figura encolhida caminhava cambaleante pelo acostamento, cercada pela quase escuridão da lua encoberta por nuvens.

Um caminhão passou diminuindo até parar ao lado dela, que permanecia quase indiferente.

— Ei, garota! Tudo bem com você?

Com a resposta fraca, mal chegando a olhar para seu lado, o motorista desceu com um casaco, colocando-o por cima dos ombros dela.

— Vamos, deve estar com frio.

Manipulada como se estivessem sem vida, ela foi levada para dentro da cabine.

— Sabe, é bem perigoso uma garota andar sozinha numa hora dessas — falou dando a partida — Vou te deixar mais adiante. Acho que posso conseguir um lugar pra você passar a noite.

Depois de olhar os retrovisores, manobrou de volta para pista e seguiu em frente.

— Não quer falar nada?

Novamente permaneceu irresponsiva.

— Quando era mais novo também não gostava de falar de problemas, principalmente com meus pais. O estranho é que com os outros costumava ser bem mais fácil. Não é como se a maioria te conhecesse suficiente pra falar alguma coisa.

Alguns instantes passaram, silenciosos como os outros, porém a voz dela veio a quebrá-lo.

— Briguei com meu namorado…

— Hum… Deve ter sido uma briga bem feia… Estava indo pra casa dos seus pais? Posso te deixar lá.

— Eles já morreram…

— Desculpe, sinto muito… Mas então para onde vai?

Novamente ela ficou muda, ao mesmo tempo que isto era uma resposta por si.

As luzes da cidade próxima começaram a iluminar o breu da estrada e a nuvens começavam a se dissipar para iluminar dentro da cabine.

— Estava demorando…

Quando virou para vê-la, algumas marcas antes ocultas ficaram visíveis.

O rosto dela estava sujo, os cabelos empoeirados, chamando a atenção dele, que baixou o olhar, só para descobrir o dedo inchado e extremamente enegrecido e as marcas em forma de cordas em volta do pescoço, timidamente escondidas por sua mão.

— Foi seu namorado quem fez isso? — falou tentando não subir o tom.

Mais uma vez sem resposta, continuou.

— Melhor te deixar na polícia, eles vão saber o que fazer.

— Não — respondeu com uma voz como se estivesse acordando — Não posso ir pra lá.

— Do que está falando? Ninguém pode fazer isso com outra pessoa seguir impune.

— Por favor! — esbravejou segurando seu braço.

— Cuidado, estou dirigindo.

Ela continuou a insistir, ficando gradativamente mais violenta, fazendo o caminhão começar a derrapar. Durante a luta entre os dois, passou a mão por cima da dele e puxou direção, tirando o pouco de equilíbrio que faltava para capotar.

O lado do motorista continuou raspando pelo asfalto com um som estridente da lataria amassando e dos cacos de vidros que voavam pela cabine.

O choque deixou o caminhoneiro atordoado, com algumas escoriações. Satsuki, por outro lado, ignorando alguns machucados adicionais, saltou rapidamente para fora e continuou com passo acelerado para a cidade em frente.

— // — // —

Mutsuki permanecia encarando sua outrora mentora, sem desgrudar do casaco onde estava enrolado o revólver.

— Não viria nada bom de uma conversa dessas… — falou desviando olhar.

— Está com medo?

Estás palavras a fizeram se voltar com uma expressão de dúvida, para descobrir um olhar neutro bem diferente da jovem que conhecia.

— Não dá pra vencer todas as batalhas sozinho, alias, diria que a maioria não dá.

Asashio permaneceu de cabeça baixa, pensativa.

— O que pretende fazer depois que te contar? — perguntou subindo o olhar.

— Só vou saber depois que fizer…

— // — // —

Nasci na pior época possível, bem depois o fim União Soviética, como a única filha de um casal que já tinha quatro filhos.

O preço da comida subia de um dia para outro, meu pai não conseguia emprego estável, pois as fábricas fechavam uma atrás da outra, e muitas vezes o que restava eram serviços pontuais que não pagavam muito bem.

Por sorte não chegávamos a passar fome, mas cansei de dormir apenas com um pãozinho e um pouco de sopa, me amontoando entre meus irmãos perto do fogo de gravetos que mantinham o fogão a lenha acesso.

Nas ruas sempre tinham os valentões que, mesmo sendo pobres, gostavam de se sentir melhores só porque tinham um teto sem goteiras ou uma roupa menos esfarrapada.

Era comum sair brigando com eles. Quando me dei conta, já tinha uma porção de inimigos declarados, que zombavam de mim até por ajudar meus irmãos a cortar lenha para o inverno.

Passava suja, com as mãos cortadas, ásperas, cheias de calos, cheirando a madeira e fumaça, sem condições de ter um cabelo grande que não ficasse sujo e ressecado. Parecia mais um garoto, tinha até alguns músculos, o que só fomentava mais o meu isolamento.

Com os anos, cada um de meus irmãos foi deixando nossa casa, fosse para tentar uma vida melhor em outro lugar, por ter arrumado uma mulher ou simplesmente querer viver sozinho. No fim, restou apenas eu me perguntando E agora?

Um dia enquanto voltava do mercado com compras, vi uma começão em frente a casa de um conhecido.

A mãe dele o abraçava, e seus irmãozinhos dançavam ao seu redor, que ostentava um uniforme militar.

Naquele lugar, no máximo conseguiria ser dona de algum boteco, isso no final da vida depois de trabalhar em algum trabalho rural, com alguma sorte uma lojinha no centro da cidade.

Tomei a decisão de me alistar, tentar a carreira militar, conhecer novas possibilidades. Meus pais retrucaram um pouco, mas sabiam bem das alternativas. Talvez tenham estranhado mais o fato da única filha mulher fazer isso.

Me adaptei muito rapidamente a rotina. Não era apenas familiar, também tinha um quê de entretenimento ao aprender coisas novas e uma sensação agradável de superar desafios. Era como estivesse evoluindo, servindo algo que de fato tivesse um significado e não apenas sobrevivendo.

Mesmo sendo mulheres, o tratamento carecia de qualquer moleza. Apanhávamos tanto nas aulas de combate corpo-a-corpo que muitas desistiam ou no mínimo desenvolviam uma raiva mortal pelas instrutoras.

Parando pra pensar, acho que só tinham nojo de não viverem em um mar de rosas e despejavam a frustração na primeira oportunidade que tinham.

Resolvia ficar quieta a maioria do tempo, o que acabou atraindo o apreço das outras colegas que desabafavam sobre tudo, porque sabiam que não iria respondê-las. Na verdade só não queria perder tempo fazendo parte de intrigas ou até da vida sexual delas, então deixar que falassem me poupava de responder, estender o assunto e quem sabe me tornar alvo do seu mau humor.

Eu era perfeita. Disciplinada, competente, pragmática e com o ego e os questionamentos postos em cheque, tudo que um soldado precisava ser.

Rapidamente fui subindo na hierarquia, primeiro como líder de pelotão, depois cabo, terceiro sargento…

Agora já conseguia arcar com as despesas de uma casa que aluguei em um bairro considerado nobre para meus padrões, começava a ter moveis que jamais seria possível em minha antiga cidade e podia me dar o luxo de experimentar comidas novas, ter um guarda-roupa diversificado, até mesmo começar a cuidar de minha aparência.

Além disso, foi através do exército que aprendi a mexer em computadores e sistemas eletrônicos tanto de veículos quanto armamentos, ainda que a maioria fosse para dar manutenção, instrução ou ocupar meus dias preenchendo relatórios.

No fim, era promissora demais pra pertencer a um batalhão mediano. Foi quando fui chamada pelas forças especiais, o que só podia significar uma coisa.

Eu iria para guerra…

— // — // —

Depois de passar 2 semanas tendo um treinamento específico para o local onde iria combater, me lançaram em um pelotão a poucas dezenas de quilômetros das linhas de frente

Quando entrei porta a dentro, encontrei o alojamento bagunçado, com meus novos colegas dispersos pelos cantos. Alguns bebendo, outros cantando, conversando com familiares e um deles, mais retraído, limpando o fuzil em uma mesa, me chamou sutilmente com o dedo.

Conforme fui entrando a vista dos demais, é obvio que foram soltando piadinhas, assoviando e fazendo gestos obscenos, mas isso era esperado, igualzinho ao que zombavam de mim quando criança.

— Você deve ser o novo sargento.

De repente os sons de escárnio pararam.

— Novo?

— Não te deram instruções? — perguntou soltando a arma.

— “Siga até a terceira rua e se apresente no segundo alojamento da esquerda”.

Ele balançou a cabeça e levantou.

— Deixe suas coisas e venha comigo.

Por entre os caminhos pouco iluminados do quartel, caminhamos em direção a um campo cercado por cercas de arame farpado.

— Qual a sua experiência?

— Em combate? Zero.

Ele estalou a língua e prestou continência ao soldado de guarda na guarita.

Haviam vários prédios de apenas semelhantes aos alojamentos, mas completamente cercados, com torres de vigia, atiradores e patrulhas com cães de guarda.

Nos aproximamos de um dos pavilhões. Quando entramos, precisamos ser revistados e passamos por mais duas guarnições até chegarmos em um corredor bem característico de prisão, com celas de ambos os lados.

Em frente a uma delas, aquele homem se virou para falar comigo.

— Nosso contingente está em farrapos, ao ponto de precisarem mandar gente crua como você pra cobrir as baixas — falou folhando um molho de chaves — Não tenho tempo a perder lhe treinando, vou precisar ser mais radical.

A porta abriu junto do ar gélido com cheiro forte de ferro e esgoto.

Um homem de cabelo e barba compridos estava encostado na parede, enrolado com as mãos sobre os joelhos, sem camisa e de pés descalços.

— Este é um dos inimigos de nossa nação.

Ao se aproximar dele, puxou-o do pescoço e gritou — De joelhos! — Arremessando-o contra o chão.

Ele tinha uma expressão catatônica, inerte até para fechar a boca, permanecendo quase do mesmo modo quando ficou caído.

— Já não tem mais serventia para nós — disse puxando a pistola da cintura e oferecendo para mim.

Normalmente situações como essa eram pra te trazer duvidas, nervosismo, reflexões morais e éticas, mas comigo foi diferente.

A doutrina militar pela qual passei se sustentava em um forte senso de nacionalismo, mesmo nos colocando acima de outras nações, crenças e raças. Era como fossemos messias salvando o mundo corrompido pela perda de valores tidos por nós como primordiais ou pelo menos era o que metade de nós acreditava.

Quando segurei aquela arma, senti como outro trabalho qualquer. Melhor, era um para o qual ansiava a muito tempo.

O som do tiro foi seguido do silêncio…

Com certo espanto, meu companheiro olhou para mim.

— Já matou alguém antes?

— Não, ainda que tenha tido vontade.

— Uma assassina nata que faz o que lhe é ordenado sem questionar… Parece que mandaram a pessoa certa pro trabalho.

— // — // —

Mutsuki permaneceu encarando sua mentora em silêncio, vendo o olhar distante dela.

— Foi por que estava cumprindo ordens?

— Não, eles tinham me dado uma oportunidade na vida, de mostrar que podia ser mais que uma garotinha pobre e sem futuro… Digo isso como se estivesse me justificando, mas a verdade é que não tinha remorso algum — falou olhando para as mãos — Havia encontrado algo em que realmente era boa…

— // — // —

A figura da garota encolhida dentro do casaco espaçoso caminhou pela rua escura de cabeça baixa, quase arrastando os pés. O som de sirenes podia ser ouvido a distância, abafado pelas devesas casas em volta.

Um rapaz sentado numa parada de ônibus mais a frente fumava um cigarro enquanto cuidava seus movimentos, assim como os arredores.

Quando a viu dobrar em direção a um beco, ele jogou o cigarro no chão e caminhou atrás dela, que desaparecia nas sombras.

Não demorou muito até se deparar com ela encolhida contra uma lata de lixo mais a fundo.

— Que isso mocinha? Tá se sentindo bem?

— Me deixa em paz… — falou quase sussurrando, encobrindo o rosto com os braços.

— Quem sabe a gente pode dá um rolê junto — respondeu chutando levemente a sola do seu sapato — Não precisa se fazer de difícil — disse tirando a mão do bolso e abrindo um canivete — gosto quando facilitam meu trabalho.

Satsuki levantou um pouco a vista para olhar para a mão com o dedo quebrado em um ângulo bizarro.

— Que porra é essa?!

— Quebrou na segunda falange. Amanhã vai esta inchado demais pra colocar no lugar sem cirurgia.

Ela o segurou e com um som muito semelhante a de ter sido quebrado, colocou de volta no lugar, sem piscar.

Aproveitando o segundo de choque daquele homem, chutou sua perna, fazendo-o cair no chão. Uma vez lá apertou seu pulso com o pé para fazê-lo soltar a faca, que tentou responder, levando a mão para agarrá-la, mas recebeu um segundo chute contra o queixo, ao mesmo tempo que ela concentrou todo peso na outra perna.

Quanto tentava se recuperar do golpe, a lâmina que havia soltado veio extremamente próxima do pescoço, só o suficiente para cortá-lo não muito fundo.

Tremendo de forma compulsiva, tentou instintivamente segurar o machucado. No que parecia um gesto de compaixão, a jovem o ajudou a chegar até a ferida.

— Aqui, pressione com bastante força. Se soltar, morre.

Entretanto, no instante seguinte, ela enrolou os pés a volta do outro braço e torceou até descolar seu ombro.

Os grunhidos desesperados dele foram acompanhados de uma contínua convulsão.

— Cortei o suficiente pra você não conseguir gritar. Sem os braços não vai conseguir se defender. Como você disse, também gosto quando facilitam meu trabalho…

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