Ronan Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini

Revisão: Marina


Volume 1

Capítulo 27: Sombras do Império (1)

Com o fim da Conferência de Antares, a companhia da imperadora Triss Loboprata permaneceu duas semanas na Cidade Livre. Nesse interim, todos os encabeçados trabalharam dia e noite na organização da unificação dos reinos e principados, no que viria a ser o segundo império a surgir no continente. Quando a data do casamento entre Triss e Henrique Belfort fora marcada e, todos os demais detalhes resolvidos, eles partiram de volta à Lincevall, a capital do antigo reino de Lince, mas futura capital do império de Antares.

No meio do trajeto, após uma semana de viagem, a comitiva parou numa cidadezinha localizada entre vastos campos de trigo, plantados e cultivados pelos esforçados camponeses da região. Apesar de pequena, a cidadezinha contava com uma estalagem luxuosa, reservada para as figuras importantes que por ali passavam, como: aristocratas, comerciantes, estudiosos da Ordem dos Magos e até mesmo, a realeza.

Como de costume, Eric e Ivar cavalgavam muito à frente do resto. Mais uma vez eles contemplaram o muro da cidade. Apesar da aposta para adivinhar o tamanho da construção defensiva ter sido feita no caminho de ida, Ivar veio com uma ideia.

— Chefe, e aquele moinho? — apontou o indicador da mão direita para a construção na margem do rio, em direção leste.

— Não me recordo dele na ida, mas vou chutar que… deve ter uns… oito metros de altura.

— Um bom palpite, você não recorda dele, pois perdemos nosso tempo vendo esse muro horroroso.

— Pra mim aquilo é mais uma cerca — Eric zombou arqueando as sobrancelhas e esboçando um sorriso.

— Pensa bem chefe, para que eles iriam querer uma muralha se não tem gente para defender? É bem mais fácil se esconder na floresta e rezar para que os invasores só queiram roubar algumas sacas de trigo.

— Talvez você esteja certo Ivar, mas você fugiu do seu palpite. Então diga logo, quantos metros de altura tem aquele moinho sem graça?

— É verdade! Então vou arriscar uns… — tentou raciocinar seu chute. — Sete metros!

Com mais uma aposta em curso os dois Corvos da Tormenta cavalgaram sem pressa até a entrada da cidade, onde guardas munidos de lanças e cobertos por trapos faziam a segurança da cidadezinha. Eric rapidamente lembrou que não recordava o nome do local e, junto do amigo, se aproximaram dos destemidos cavalheiros.

— Uma boa tarde senhores. Eu me chamo Eric Tormensson. Não sei se recordam, mas estivemos aqui há algumas semanas atrás.

Um homem sobrancelhudo e narigudo com o cabelo sujo em formato de cuia se aproximou, deveria ser o líder do bando.

— Nóis lembra sim, vocêis vão fica aqui de novo? — Sua voz era demasiada aguda.

— Sim senhor. — Como estava de bom humor, Eric quis soar educado.

— Podem entra então — disse a figura medonha como se tivesse alguma autoridade sobre o assunto.

Mas os dois aguardaram o resto da comitiva os alcançar para entrarem na pequena, mas bela cidade de Verdigo.

Após estacionarem as carruagens, amarrarem os cavalos e planejarem toda a logística, Edmundo ficou responsável por organizar e checar o lugar onde a imperadora passaria a noite. Na cidade de Verdigo, apenas uma alternativa poderia ser cogitada, a estalagem Orvalho do Campo.

Como era o mesmo local escolhido no caminho de ida para a conferência, a rotina do capitão da guarda terminou mais cedo. Porém, dessa vez, reuniu-se em frente à estalagem com os membros mais importantes da comitiva, fora Triss e sua feiticeira Tricia, que deveriam estar conversando dentro da carruagem real.

Para a infelicidade de Eric, o capitão Edmundo informou que o local contava com poucos quartos vagos para esta noite, o que significava que os Corvos da Tormenta teriam de arranjar outra estalagem, ou até mesmo uma taberna para passarem a noite, mas para a felicidade geral dos presentes, alguém surgiu com uma solução.

— Não precisa de todo esse incomodo querido Edmundo, nossos guerreiros não se importam em dividir os quartos com seus colegas — interveio a rainha que se tornou imperadora.

Assustados com a majestosa intervenção, os pertencentes à Lince curvaram-se em saudação. Quando o ritual terminou, Eric virou-se para a soberana do novo império.

— Vossa… — Hesitou confuso, sem saber como referir-se ao novo título.

— Alteza! — corrigiu incomodada. — Você já devia saber disso, Tormensson…

— Me desculpe. Só queria dizer que eu e meu pessoal não nos incomodamos em lotar os quartos, podemos abarrotá-los com quantos guerreiros neles couber.

A imperadora esboçou um sorriso, mas Edmundo parecia não concordar.

— A cidade pode ser pequena, mas a estalagem é administrada por gente influente, eles verão isso como uma ofensa ao seu estabelecimento de luxo.

Nervosa por ter de perder tempo com tamanha futilidade, Triss interveio com um meio termo.

— Podemos então colocar apenas os Corvos mais experientes e condecorados nos quartos, os recrutas podem dormir onde quiserem. Eu insisto Edmundo, tente convencer o velho a deixar o máximo que der em cada cômodo. Podemos não alocar a unidade inteira, mas não quero todos os meus guerreiros longe de mim.

— É claro Triss, como quiser — disse em tom solene.

— Se isso fosse verdade nós teríamos lotado esta espelunca com meus soldados. E criados também.

Para a surpresa dos rapazes, a silenciosa feiticeira Tricia apareceu. Ela usava um vestido verde e havia deixado o cabelo castanho avermelhado solto. Ela juntou-se à roda de conversa. E pelo olhar, parecia ter algo a dizer.

— Sempre estarei ao seu lado minha Rainha — disse com um tímido, mas belo sorriso que acentuava seus lábios finos.

Os rapazes estranharam aquela frase. De alguma forma Triss não se importou que ela a chamasse pelo título antigo, algo que não compartilhava com os demais presentes. Esta intimidade atordoou o pobre Eric, que inutilmente tentou raciocinar como aquilo funcionava.

— Eu sei querida. Saber disso traz paz a minha mente e tranquilidade às minhas preocupações — replicou Triss enquanto acariciava o rosto da jovem amiga e conselheira.

O grupo entrou na estalagem. Ao passarem da porta da frente os fregueses saudaram entusiasmados a imperadora e seus bravos cavaleiros. Já devem saber sobre a unificação, imaginou Eric. Todos comemoravam algo que sequer compreendiam. Talvez odeiem o império, talvez apenas imaginem que a unificação dos reinos fará os impostos caírem, as colheitas serem fartas e as chuvas generosas.

Tolos!

No fim, a negociação entre o capitão da Guarda Real e o dono da estalagem, permitiu que vinte, dos cinquenta Corvos pudessem passar a noite no Orvalho do Campo. Não era muita coisa, mas ao menos Triss Loboprata se sentiria mais segura dessa forma.

A noite chegou e as mesas logo se encheram de clientes se divertindo com as atrações ali disponíveis. No Orvalho do Campo, até os funcionários vestiam-se com elegância, os trajes cinza de linho fino, tecidos sob medida eram cedidas pelo dono, mas cada um ficava responsável por mantê-las em bom estado, caso contrário: deveriam ressarcir.

Algumas mesas foram apinhadas por assíduos jogadores e apostadores. Ocupando o palco, uma banda itinerante tocava uma melodia das terras do leste. E numa mesa perto da escada, localizada na lateral esquerda, três figuras conversavam com os ânimos exaltados.

— Você é péssimo nisso, é a quinta vez seguida que perde — Ivar zombou dos palpites de seu chefe.

— Pura sorte. Você fala como se conseguisse adivinhar as coisas só de olhar — Eric retrucou cruzando os braços.

— Você errou por um metro e meio, caro guerreiro viajante — disse o terceiro integrante da mesa, um morador com a cara redonda, careca e com um bigode fino e pontudo.

— Estou achando essa brincadeira cada vez mais sem graça — Eric reclamou como o péssimo perdedor que era.

— Você só fala isso porque é terrível em analisar a altura de construções — Ivar retrucou dando um generoso gole naquela deliciosa cerveja repleta de espuma.

O morador se levantou, pôs a mão na barriga, levantou o caneco vazio numa saudação, para agradecer:

— Obrigado pela cerveja soldados, mas tenho de ir para casa ouvir a velha reclamar. Adeus e boa viagem — despediu-se como se fosse um verdadeiro amigo dos dois.

Ivar repetiu o gesto do sujeito, mas sem se levantar.

— Ficamos honrados pela sua companhia. Agradeça ao capitão pela bebida.

O morador virou-se prestes a acenar para Ivar, mas Eric puxou a camisa de um rapaz desconhecido que passou muito próximo de onde estava. Incomodado polo gesto mal educado, ele virou-se em protesto, mas antes que pudesse falar alguma coisa, Eric perguntou com toda educação:

— Com licença, eu gostaria de saber quanto de altura tem aquele moinho na margem do rio — indagou com um olhar apologético.

A expressão de ira do rapaz se esvaiu, ele levou a mão direita ao queixo e colocou sua memória para funcionar. Pensou por alguns segundos enquanto coçava o cavanhaque marrom até se lembrar.

— Oito e quarenta e três — respondeu feliz por recordar. — Engraçado você perguntar, eu e os rapazes daquela mesa ajudamos a construí-lo anos atrás. — Ele apontou para onde seus amigos sentavam e bebiam.

O convidado de bigode pontudo que bebeu de graça à custa de Eric correu porta a fora, derrubando um funcionário da estalagem, sujando e rasgando a manga direita do traje de linho cinza fornecido pelo dono.

O estilhaçar e espalhar do vidro de meia dúzia de copos chamou a atenção de todos os sóbrios que ali bebiam. O rapaz interrogado pelo líder dos Corvos disparou para ajudar o coitado a catar os cacos.

Eric apoiou os cotovelos na mesa e encarou seu amigo picareta.

— Não sei adivinhar o tamanho das coisas, não é?

Ivar se encolheu no banco da mesa, envergonhado pela trapaça vir à tona de forma tão patética.

— De agora em diante você paga as rodadas.

— Sim chefe — suspirou admitindo a vergonhosa derrota.

Quando terminaram suas bebidas, o capitão acompanhou Ivar até a estalagem onde os Corvos de patente menor passariam a noite. Ela ficava no fim da rua, a uns 200 metros do Orvalho do Campo.

Ao entrarem a primeira coisa que lhes atacou foi o mau cheiro dos litros de álcool derramado na madeira encardida. Os ouvidos não foram poupados, no palco que se resumia a um espaço ausente de mesas e cadeiras, uma dupla com chocalhos e tamborins tocava uma melodia impossível de ser discernida no caos auditivo que era o estabelecimento. Berros e resmungos graves e guturais contrastavam com os gritos e risadas agudas e estridentes. As batidas nas mesas eram frequentes, em grande parte vindas das pancadas dadas nas mesas com os canecos podres e repletos de farpas, que ameaçavam os dedos dos seus manuseadores já acostumados a terem a mão espetada.

Mas para sorte dos Corvos da Tormenta, o local era relativamente próximo do suntuoso Orvalho do Campo, dava até para vê-lo das janelas do segundo andar, mais especificamente, a do quarto de Ivar.

Quando Eric despediu-se do colega e saiu da taverna xexelenta que fazia questão de esquecer o nome, já era tarde da noite e as pessoas sensatas já descansavam para o próximo dia. Na escuridão da noite as ventadas frescas eram um agrado quase divino, mas ao longe, algo lhe chamou atenção. Eric jurou ter visto gente entrando no Orvalho do Campo.

E eles pareciam estar armados.

Preocupado com o pior, Eric tentou raciocinar. A adrenalina proporcionada fez o álcool remanescente em seu sangue, evaporar. Aos poucos a sensatez voltou a si até conseguir traçar um plano. Correu de volta à taverna, ignorou o cheiro e o barulho insuportável e subiu as malditas escadas que rangeram como uma porca dando cria. Dois corredores foram percorridos às pressas até a porta do quarto surgir em seu campo de visão. Não havia tempo para ser cordial. Tomou distância, cinco passos para trás foram suficientes. Eric avançou e desferiu uma ombrada na porta, escancarando-a para dentro.

O ocupante do quarto saltou para trás, quase caindo na cama.

— Caralho! Mas que porr…

— Ivar! Reúna todos os Corvos que estiverem aqui, o mais rápido que puder, armem-se e assim que estiverem prontos, corram para o Orvalho do Campo.

— Que? O que? Hã? Pra onde?

— A estalagem da rainha Triss, ó seu cabeça de vento! — retrucou bravo por ter de perder tempo explicando trivialidades quando coisas mais importantes poderiam estar em jogo.

Atônito, Ivar compreendeu e adiantou-se para reunir quem encontrasse pela frente. Eric saiu em disparada, não trajava sua armadura, mas sempre andava armado, justamente para situações como essa.



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