Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 12: Entre Sentimentos e Previsões

Quando o trio se reuniu na velha estação de trem, a tarde já começava a dar as caras com o aumento de temperatura e ventos fortes – estes que Ryota percebeu tardiamente estarem rachando seus lábios, a fazendo lambê-los.

A garota estava sentada no banco de concreto, grudada a Jaisen, que ainda se encontrava num sono profundo. Para sua tranquilidade, ele respirava devagar e não tivera nenhuma outra reação preocupante.

Ela ergueu o rosto na direção da pessoa a quem devia muita gratidão e disse, com um sorriso suave no rosto:

— Obrigada de novo, Sasaki. Você fez um monte pela gente, e olha que eu nem pude retribuir de alguma forma... — Ela baixou os olhos, torcendo os lábios. — No final, você só ficou trabalhando de graça...

Sasaki, voltando sua atenção à ela, sorriu de volta e balançou a cabeça devagar.

— Imagine. É, sim, meu trabalho curar pessoas, mas desta vez foi por puro capricho. Além disso, vocês não me deram trabalho algum. E você já me recompensou o suficiente.

Ao ato de lhe estender a mão e afirmar, Ryota apertou os olhos e apontou para si mesma, confusa.

— Eu? Quando e onde que não tô lembrada?

— É, Sasaki. Nos conte um pouco mais sobre isso... Como foi que ela te retribuiu, mesmo?

Antes mesmo que o curandeiro pudesse dizer algo, foi impedido por uma voz grave e com uma aura intimidadora. Ao seu lado, Zero o olhava por cima do ombro e cruzou os braços, parecendo muito interessado no assunto. 

Isso, se ele não parecesse pronto para matá-lo de forma impiedosa. Uma pequena veia saltava de sua testa.

— Eh... Bem, foi... Digamos assim, palavras de consolo, é claro.

— Oi? Não me lembro muito disso, não... Mas se você tá falando, né? Quem sou eu pra negar... — Ryota inclinou a cabeça e assim disse, sem entender direito onde ele queria chegar. Sasaki não parecia querer prosseguir com o assunto, no entanto. Então, sem mais nem menos, a garota chutou o tornozelo do garoto de cabelos violeta, que reagiu com um grito.

— Ô! Que foi?!

— A culpa é sua por ficar intimidando os outros com sua cara feia! Daí quando precisa de alguma coisa, as pessoas se recusam a falar ou fazer por isso. Se for pra pedir, pelo menos dá um sorrisinho.

— Há, há, há, hááá! Ele? Sorrindo? — Sasaki tapou a boca e abafou a risada, se dobrando um pouco. Ao seu lado, Zero soltou um grunhido irritado para a reação exagerada do outro. — Pfff, não, ai calma... Estamos falando da mesma pessoa?

— Aaah, Sasaki... Eu sei que é difícil de ver, na real é quase uma raridade, mas até mesmo o Zero consegue sorrir às vezes, sabe? É só uma questão de força de vontade dele.

— ...Impressão minha ou vocês se juntaram contra mim?

Ryota e Sasaki trocaram olhares, então abriram um sorriso largo e exagerado, como duas crianças que planejavam uma travessura. Ficou na cara pro rapaz que eles haviam pensado em algo e tentaram só disfarçar quando um pigarreou e a outra respirou fundo, ainda fazendo bico com os lábios:

— Aaaaaah, Zero. Para, né? Imagina fazer algo do tipo com meu grande amigo?

— Você é a pessoa mais suspeita pra falar isso. E nem tenta virar a cara que eu tô vendo esse sorriso descarado.

Sasaki riu com o nariz e passou um dos braços nos ombros do garoto, o fazendo comprimir os lábios.

— Relaxa, amigo...

— Eu não sou seu amigo. — disparou ele enquanto se desvencilhava do abraço de lado, fazendo o curandeiro dar de ombros e erguer as palmas das mãos, suspirando.

— Além da cara assustadora, sua língua é afiada, né? 

— É o que vivo falando pra ele, sabe? Mas o Beterraba não me escuta...

O complô entre os dois pareceu funcionar muito bem. Mesmo que não tivessem combinado absolutamente nada, era fácil demais ler Zero e saber o que o deixaria irritado, mesmo que não o ofendesse de verdade. Sasaki tinha noção que provocá-lo era perigoso, mas Ryota falar a palavra proibida foi além do esperado. Em um instante, Zero puxou as bochechas dela, sem se importar com os grunhidos de dor que saíam de seus lábios estreitos, num sorriso torto e claramente desconfortável.

Sasaki gargalhou da situação, recebendo um olhar afiado do garoto. Quando estreitou os olhos, pareceu ainda mais ameaçador. O homem apenas abanou as mãos no ar, como se estivesse se rendendo e deixando a punição pra garota, que lutava contra as risadas e a dor.

Ele observou a dupla durante algum tempo, e suspirou. A visão era de um mandando o outro implorar por perdão, com a menina choramingando, incapaz de resistir ao riso. Olhando assim, de fora, não pareciam as mesmas pessoas de algumas horas atrás, cheios de sangue e ferimentos - tanto físicos quanto emocionais. Ryota, em especial, parecia ligeiramente alegre e normal. A mesma de antes do atentado. Com o mesmo tom de voz, o mesmo olhar sereno e brilhante, as mesmas brincadeiras… Embora tivesse esperado uma reação um tanto diferente dela no dia seguinte, ficou internamente contente por sua expectativa não ter ocorrido.

Estava ciente de que, mesmo depois de presenciar um genocídio em massa das pessoas que mais amava, precisou de alguém para lhe confortar. E Zero era a pessoa ideal para o papel. Sasaki não conseguia imaginar o que teria acontecido ao psicológico dela caso o rapaz tivesse morrido no combate contra a Insanidade.

E, agora, ali estavam eles: rindo, beliscando-se e trocando provocações infantis. 

— Vamos lá... De novo! Implora, mais uma vez.

— D-Disghulpa... Mhe solta... Aai… Háá!

Sasaki sorriu. Talvez, no fundo, ela fosse tão boa em mentir quanto ele ou Zero. Mentir para si mesmo… O quão fraca uma mente precisa estar para se render a uma alternativa dessas?

— Mhaaa... Nhan... Minhas bochechas doeeem...

Zero fungou o nariz, satisfeito em como aquilo acabou. Então, dando outro cutucão de cotovelo na garota, voltou sua atenção ao curandeiro. O garoto enrijeceu o rosto por um momento, antes de arquear a sobrancelha e inflar o peito.

— E lá vem ele.

Ouviu-se um som agudo chegar aos três pares de ouvidos. Jaisen se remexeu nos braços de Ryota. Então, uma densa e negra fumaça começou a surgir sobre as árvores, locomovendo-se na direção da estação. A garota apertou o olhar, então puxou da melhor forma que conseguia o dedo mindinho de Zero, que estava um tanto distante dela.

Ela sentiu que ele tremeu de leve ao toque, olhando-a por cima do ombro.

— Como vamos fazer com... — Então indicou Jaisen com o queixo.

Ryota estava preocupada com o fato de acordá-lo e acabar incomodando seu descanso. Ele parecia tranquilo – algo raro – e respirava lentamente. O garoto, que entendera o que a amiga queria dizer, soltou o dedo dela com cuidado antes de dizer:

— Vai ficar tudo bem. Vamos acordá-lo somente para a inspeção da digital, e ele pode voltar a dormir. Não acho que ele vá ficar tão incomodado estando sóbrio de sono.

A garota assentiu, sorrindo. A locomotiva vinha se aproximando rapidamente, então ela se colocou de pé, apoiando o homem inconsciente. Sasaki estendeu a mão, percebendo que ela havia cambaleado um pouco na hora.

— Consegue fazer isso sozinha?

— Sim. É só um pouco complicado por ele ser mais alto... Mas eu dou conta, valeu.

O trio aguardou em silêncio a chegada do trem. Ele veio grunhindo alto desde longe, com o som dos freios estalando alto. Fazia um bom tempo desde que Ryota havia visto um de perto, e um arrepio lhe subiu quando este parou bem à sua frente. Seus cabelos dançaram em seus ombros, e Sasaki quase colocou o queixo dela de volta no lugar de tão boquiaberta que estava.

— É a primeira vez que vê um trem?

Ela negou com a cabeça, sorrindo como uma criança.

— Mas é a primeira vez que vou entrar em um.

A sobrancelha dele se ergueu, ao mesmo tempo que outro som agudo altíssimo soou, quase os ensurdecendo. Era o apito da locomotiva, que abria a porta automática e aguardava a entrada dos passageiros.

— De novo, muito obrigada por tudo. Não tenho como retribuir agora, mas espero poder fazer isso no futuro.

— Imagina. E torço por sua busca. Ah, não esqueça de nos visitar em Celestia uma hora dessas. Tenho certeza que minha graciosa e bela chefe poderá lhe ajudar.

Ela riu, balançando os ombros, e fez um cumprimento em respeito ao homem. Colocou a mão no peito e inclinou o rosto, de olhos fechados. Sasaki a imitou, antes de lhe dar uns tapinhas na cabeça. A garota informou à Zero que estaria entrando e colocando Jaisen num local confortável.

O rapaz, então, se aproximou a passos lentos do homem com cabelos negros. Os dois observaram Ryota acordar Jaisen com cuidado, que piscou algumas vezes e parecia atordoado. Ela rapidamente pareceu dizer algo que o acalmou, de forma que ele assentiu.

— O que farão daqui pra frente?

— Não é da sua conta... É o que eu queria dizer. — Ele riu com o nariz. — Vou levá-los para uma das casas de minha mestre, e de lá poderemos decidir o que fazer. 

— ... Entendo. Bem, espero que as coisas voltem a se ajeitar.

— Sim. E você? O que vai fazer?

Sasaki fechou os olhos por um momento antes de suspirar. 

— Seguir meu caminho, assim como vocês. Mas pegarei um trem que parará na estação intermediária antes de seguir para a capital real. Meu destino não é pra lá.

A resposta saiu séria e direta, e Zero acreditava que Sasaki estava dizendo a verdade. Não tinha interesse no que o curandeiro faria dali pra frente, na verdade, mas esperava que ele não viesse a causar problemas no futuro. Seria algo desagradável. 

Tendo ciência desse pensamento, e considerando os sentimentos da amiga, Zero estendeu a mão na direção do homem, que arregalou os olhos com o ato. Então, sorriu:

— Nos vemos por aí. 

Sasaki apertou-lhe a mão.

— Sim, com certeza.

Assentindo com a resposta, o rapaz de cabelos violeta se afastou a passos largos e correu para dentro do vagão. Sasaki se afastou um pouco a tempo de ver Zero interagir com o maquinista, pressionando o dedão no sistema que avaliava sua identidade nacional, antes de seguir até os fundos. Ryota e Jaisen já estavam acomodados num dos bancos marrons de couro, confortáveis. A locomotiva estava completamente vazia, e a garota parecia ansiosa pela forma que olhava para os lados e piscava rapidamente.

Jaisen se remexeu quando Zero sentou-se à esquerda deles. Então, o apito do trem soou novamente, e ele começou a se mover. Sasaki riu sozinho ao ver as caretas e a forma como Ryota parecia falar sem parar, talvez perguntando a respeito de algo ou dizendo que estava meio emocionada. Para sua surpresa, a mesma menina sorridente acenou para ele da janela, antes do trem desaparecer no meio da floresta, realizando todo o contorno pelo terreno antes de se dirigir à capital real.

Finalmente sozinho, Sasaki deu um suspiro alto. Seus olhos se ergueram até o céu completamente azul.

— ... Quem diria que nos encontraríamos tão cedo, não é?

Foi o que sussurrou, abrindo um frágil sorriso. Sasaki quase deu um salto quando outro apito soou vindo pela direita, indicando que o outro trem se aproximava, rumando na direção que queria ir. Ele viria pela mesma trilha, pois havia somente uma estação, então o homem se posicionou no lugar de embarque. 

Não sabia o motivo de continuar pensando no que acontecera dentro daquelas vinte e quatro horas, apesar de ter sido gratificante e um tanto doloroso também. Sentiu um aperto no peito ao pensar no rosto iluminado de Ryota e na cara emburrada de Zero. Duas pessoas que estariam marcadas em sua mente agora, e durante um bom tempo.

— Ah, ah... O quanto será que a senhorita Sofia previu?

***

— O quê?! A duquesa Minami? Tá zoando com a minha cara?!

— ... Não grita desse jeito. Sim, estamos indo ver a duquesa.

Ryota estava boquiaberta. Era a primeira vez que ouvia algo assim vindo dele, e estava completamente chocada pela revelação. Piscando rapidamente, ainda tentando processar a informação, disse por cima de Jaisen, que dormia em seu colo:

— Então... Então... Eu vou conhecer ela? Sério mesmo? Cara a cara?

— Tipo isso.

Ela comprimiu os lábios e então os mordeu, sem saber direito como reagir. Seus olhos azuis brilhavam intensamente com a notícia. Eram muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas essa era a notícia mais inesperada que ouvira até então.

— Mas, por quê? O que tem a ver uma coisa com a outra? Não estamos indo pra capital?

— A duquesa... A mestre Minami está ciente da situação de Aurora e pediu para que fôssemos até ela. Aparentemente, ela vai nos receber em sua casa principal.

— Tipo, na mansãozona dela?

— Tipo isso.

Zero achou que Ryota fosse começar a chorar de tão emocionada e ansiosa que estava. Ela puxou as bochechas e se beliscou, dando um gritinho de dor e então de felicidade ao perceber que era real. As caras e bocas que fazia consigo mesma eram adoráveis, e o rapaz assistiu aos seus delírios individuais com um sorriso de lado. 

De repente, ela piscou algumas vezes, como se pensasse sobre algo, e voltou-se para ele de novo:

— Por que ela nos receberia em sua casa?

— Agora que pensou nisso? — Ele riu com o nariz, antes de erguer o dedo indicador. — A mestre tem seus próprios motivos, mas basicamente ela está acostumada a lidar com os atentados há muito mais tempo e quer nos ajudar. Bom, ela vai dar mais detalhes depois.

— ... Sei.

Não tinha certeza do que deveria esperar. A duquesa Minami, uma jovem mulher da nobreza, a receberia em sua casa. Ao mesmo tempo que uma emoção inexplicável a atingia – talvez por sentir estar indo conhecer uma espécie de princesa, como se fosse uma personagem saída dos livros -, algo não lhe parecia certo.

Levando a mão ao coração, sentiu-o pesar quando olhou para Zero. Ele parecia distraído olhando para outro lugar. Uma dor inquietante pulsou ao pensar com calma nas palavras dele, então entendeu. 

Era culpa.

Estava sendo levada direto para alguém que estava disposta a lhe dar apoio, sem sequer conhecê-la, e provavelmente tendo compaixão de sua situação. Mais uma vez, estava sendo carregada de um lado para o outro, de forma dependente. Isso ficava ainda pior quando sabia que era Zero o responsável por isso. Um misto de gratidão com pesar não lhe permitia ficar exatamente feliz com o rumo das coisas. 

Ryota sacudiu a cabeça. Estava sendo egoísta e imatura. A duquesa não tinha nada a ver com seus sentimentos pessoais, então era sua obrigação agradecê-la por isso. Deveria somente retribuir o favor, algum dia... Assim como devia muita gratidão à Sasaki, Jaisen e Zero. Principalmente Zero.

Ela fechou os olhos e deitou a cabeça na janela do trem, que tremia de leve. Seus olhos refletiram a paisagem bela e harmônica da natureza, que entrava em contraste completo com seu conflito interno bagunçado e sombrio. Embora tivesse certeza do que queria fazer, ainda não sabia como fazer, mas seguiu a viagem esperando que sua “eu” do futuro descobrisse o mais rápido possível.



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