Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 44: A Origem

— … Ah.

Olhava para os braços que seguravam o corpo de uma jovem garota no auge de sua juventude, cujo sorriso era mais caloroso que o sol e a energia se espalhava por onde andava.

— … Bella?

O murmúrio cheio de choque e dor escapou de sua garganta, mas nenhuma resposta veio. 

Ryota implorou para ao menos ouvir aquela risada maldosa, mas nem mesmo isso chegou aos seus ouvidos.

O sangue fresco se espalhou e manchou suas roupas, escorrendo do ferimento onde uma faca se aprofundou, arrancando uma vida com grande facilidade. Os dedos tremeram conforme o entendimento chegou ao cérebro e Ryota desabou no chão do beco ainda segurando o corpo sem vida.

Eu matei ela.

Sua visão embaçou com as lágrimas que emergiram de seus olhos arregalados.

Eu matei a Bellatrix.

Apesar de ter visto inúmeros cadáveres, agora um deles fora criado com suas próprias mãos.

Eu a matei.

Aqueles pensamentos se repetiram quando o aperto na garganta a fez incapaz de respirar, arfando alto e soluçando. Apesar do vermelho escuro que as envolvia como um cobertor quente e das íris esverdeadas sem o brilho da vida, Ryota não conseguiu soltar o corpo da amiga que gradualmente esfriava.

Eu fiz. Eu matei. Eu matei. Eu matei. Eu matei.

O pânico atordoou seus sentidos e o mundo ficou escuro. A mente relutou para permanecer consciente apesar de tudo chacoalhar, seu sangue fervendo ao ponto de seu coração bater violentamente no peito, querendo explodir.

— … Bella.

Seus dedos trêmulos tocaram o rosto de pele macia quando as lágrimas escorreram, roçando no sangue fresco.

— … Me perdoa.

Mas Bellatrix nunca a perdoaria, pois estava morta. E mortos não falam, sorriem ou patinam por corredores. Mortos não estudam, choram ou contam histórias.

E Ryota nunca iria se acostumar em segurar o cadáver de entes queridos nos braços.

Os soluços das lágrimas ecoaram pelo beco vazio, alheios ao mundo e sua passagem de tempo. Sequer teve a coragem de retirar a lâmina que ainda rasgava a carne de Bellatrix, sentindo-se tão suja, impotente e fraca. Tocar a arma do crime era como conscientizar-se ainda mais dos pecados que cometera, incitando-a a uma culpa que pesou como chumbo em seu interior.

Eu a matei. Eu a matei. Eu. Eu. Eu. Eu, eu, eu, eu. Eueueueueueueueueueueueueueueueu—

Ryota engasgou com um soluço e sentiu a própria garganta rasgar com as lágrimas que escorriam desesperadamente por seu rosto. Um calor que deveria estar ali e não estava mais. A sensação pegajosa do sangue fresco banhando seu corpo como uma chuva de morte e dor. As memórias de cadáveres de pessoas preciosas ao seu redor lembrando-a do quanto era incapaz, egoísta e inútil.

O cheiro do fim da vida era como um veneno viciante que corroía seu peito, o aperto no coração tornando impossível à mente encontrar qualquer pensamento lógico que correspondesse às necessidades da realidade.

Mas qual realidade?

Àquela em que tomou a vida de alguém com as próprias mãos? Onde nem mesmo pensou duas vezes ao atravessar a lâmina pela carne fresca cuja existência que residia se esvaiu? 

Eu… Eu não mudei nada.

Ainda sentia o mesmo desespero de quando tomou uma vida pela primeira vez, e conscientizou-se disso. Vidas que apesar de terem tomado outras, agora mancharam suas mãos com o sangue de um ciclo infinito de perdas e ódio. 

A vingança sem sentido, que apenas queria defletir a própria culpa em um alvo próximo para suportar a dor. A morte por necessidade gerada pelas influências de uma voz que soava como o próprio demônio aos ouvidos.

Ambas foram as vezes em que suas mãos mancharam-se com o sangue de outrem; e em ambas as vezes encontrou o arrependimento, a reflexão e a culpa.

A culpa descontada apenas gerou mais culpa. As ações impulsivas buscando um objetivo de bem geraram montes de corpos ao seu redor, cada um deles encarando-a com aquelas íris sem vida, apontando dedos em sua direção.

Uma responsabilidade contada, arcada e jamais lidada.

Um luto e dores que se acumulavam como uma bola de neve, preparando-se para afogá-la em mágoas que nunca se foram.

Eu…

Não houve tempo para que chegasse a uma conclusão quando mais passos surgiram no beco. Mas dessa vez, Ryota demorou um longo instante para erguer a face cheia de lágrimas na direção da pessoa que atravessou as ruas silenciosas e frias da cidade.

Com o sol se pondo gradualmente, as paredes lentamente escureceram, acompanhando cada movimento da mulher que era como a sombra encarnada. Cabelos negros e vestimentas escuras que a permitiam se camuflar como um animal em busca de sua presa desenharam na escuridão, com apenas uma íris brilhante irradiando.

Tão vermelha, quente e vibrante quanto o sangue.

Ryota nada disse quando Amane parou os passos silenciosos a uma distância segura da cena ensanguentada que manchou Urânia. Uma garota jazia nos braços de outra, cuja expressão de desespero eram palpáveis o bastante para tornar o ar do beco ainda mais raso. Mas apesar da visão que faria pessoas comuns vomitarem as entranhas em um instante, a mulher nada disse ou fez durante longos segundos.

Sua observação ascendeu do cadáver banhado em sangue até Ryota, cujas mãos ainda insistiam em segurar aquele corpo como se sua própria vida dependesse disso. Quando trocaram olhares, dessa vez, havia uma emoção indecifrável naquele olho carmesim.

— Desista.

A voz deslizou por seus ouvidos, que até então pareciam surdos de qualquer som mundano, e Ryota sentiu os lábios tremer quando o sussurro alto demais de Amane a atingiu como um soco.

— Não pode salvá-la, agora.

— … Ah.

— Caso ainda não esteja claro, essa moça está morta.

Talvez bastante consciente das esperanças minúsculas que ainda tentavam conter a sanidade, a assassina sequer hesitou em pisotear o devaneio de Ryota. 

Morta.

Em resposta ao fato, tudo o que conseguiu expressar foi um vazio suspiro. Se antes as íris de Ryota eram como um oceano escuro, agora o azul transpareceu como o próprio preto do fundo do mar. Profundo, sombrio e quase assustador. 

Mas ainda assim, as mãos trêmulas não soltaram Bellatrix.

Observando aquela reação, Amane fechou o único olho visível, como se concentrasse sua atenção em outra coisa, e então suas pálpebras se moveram novamente para que pudesse voltar a sussurrar.

— Ao que se presume, meu tempo similarmente se encerrará em breve.

— … O que quer dizer?

— A contagem de indivíduos diminuiu. Restam apenas… Três. E o terceiro se aproxima.

Quando Amane mencionou uma informação que pareceu chamar sua atenção, Ryota ergueu o rosto para a assassina cuja expressão jamais se alterava. E tão fria quanto possível, ela respondeu a pergunta da garota cuja voz fraquejou como um vidro rachado.

— Eu… Falhei?

— Exato.

A auto-indagação recebeu outra resposta, e Ryota franziu a testa, baixando os olhos para o chão do beco escuro. Sua consciência fraquejou outra vez, mas ainda não havia cedido totalmente.

— Entretanto, a provação não se encerrou. Enquanto permanecer viva, ainda há esperança.

Era quase estranho ouvir palavras como “esperança” vindas de Amane, mas Ryota nada disse. Sequer teve forças para erguer o rosto na direção da assassina outra vez.

Com as sombras do beco, era difícil definir, mas certamente manchas como as que cobriam Ryota podiam ser reparadas em Amane. 

Mas antes que pudesse definir se o sangue era dela ou de outro alguém, a assassina sussurrou outra vez.

— Ceder à pressão é o primeiro passo para o fracasso. Os indivíduos mais fracos serão os primeiros a tropeçar, e portanto a morrer.

A palavra morte fez Ryota apertar o corpo frio um pouco mais contra si. 

— Aos que cedem à pressão, nada se pode fazer. Então, desista de tentar salvá-los.

Ryota sentiu que Amane estava tentando lhe passar alguma informação importante através daquelas palavras, mas não encontrou qualquer força em si para se compreendê-las.

Ainda assim, a assassina continuou a sussurrar, tão distante e fria quanto o crepúsculo no horizonte que banhou a cidade em escuridão.

— As mentes dos fracos vão se corromper, mas aqueles cuja origem for especial, permanecerão. Nosso trabalho é dar aos fracos um fim digno e repassar a mensagem para os remanescentes de que devem prosseguir.

— E-Eu não entendo…

— Encontre a Origem, senhorita…

Talvez foi a forma de Amane se referir a ela que gerou em Ryota a necessidade de erguer o rosto outra vez. Apesar das pernas fraquejarem no chão, da tristeza e do arrependimento, algo dentro dela a fez voltar a atenção para a face nas sombras de Amane.

— … Não, permita-me corrigir. A senhorita, neste momento, já a encontrou. Resta-lhe apenas tomar a decisão crucial.

— … O quê? Decisão?

— Finalize a Origem. 

Os sussurros eram tão baixos que passariam despercebidos por quaisquer ouvidos ao redor, mas por qualquer que fosse a razão, Amane e Ryota eram capazes de compreender perfeitamente bem uma à outra.

Ainda assim…

— Finalizar?

— … Aparentemente, meu tempo chegou.

— O quê?

As perguntas balbuciadas dela jamais ganhariam respostas, mas ainda assim Ryota tentou encontrá-las. Com o pouco que lhe restava, focou toda a sua atenção na assassina cujo olho escarlate desviou-se da garota no chão para a entrada do beco.

Por o que pareceu um instante, sua respiração falhou, e um leve e cínico riso escapou por sua garganta.

— Não cederei. Ainda que corrompam, não cederei. Não permitirei. 

Foram palavras murmuradas para si mesma — não, para alguém que não estava ali. Era um juramento cheio de uma determinação impressionantes para uma mulher misteriosa como Amane. E, ainda assim, apesar do brilho afiado e quase insano que surgiu em sua íris carmesim — ela não cedeu.

— Escute, senhorita.

Ryota não desviou sua atenção de Amane por nem mesmo um segundo. Apesar dos questionamentos, da exaustão e da dor, atentou-se a ouvir.

Foi o bastante para um discreto sorriso surgir nos lábios da assassina, cuja mão deslizou para dentro da abertura do próprio vestido. Os dedos encontraram algo cuja atenção de Ryota não captou a princípio, pois a voz da mulher de preto continuou a soar.

— A Origem apenas deve ser encontrada e finalizada por si mesma. Não permita que outros tentem tomá-la de si, pois não a pertencem. 

Quando os novos passos soaram ao fim do beco e a última figura surgiu, a assassina havia finalizado. E tão lentamente quanto pôde distinguir a silhueta de um garoto áureo se aproximando, Ryota testemunhou o suicídio de Amane ao envolver o próprio pescoço com os fios transparentes. 

O corte aprofundou e fez sangue derramar-se, mas com uma lentidão quase gentil ao perfurar a carne. Com uma habilidade digna de uma assassina e sem qualquer meneio de incerteza ou fraquejo, Amane tomou a própria vida e tombou no chão do beco.

E, assim, os dois remanescentes restaram com espreitar das estrelas ao anoitecer.



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