Torneio da Corte Brasileira

Autor(a): K. Luz


Volume 1

Capítulo 35: O Frágil Afiado

O chão em que se apoia está caindo em alta velocidade, os arredores são inundados por rajadas vulcânicas e fragmentos de rochas maiores se soltando. As bordas do corpo do Kaon aquecem, brilhando enquanto liberam grandes laços de energia. Mesmo que lentamente, seu corpo segue se movendo na projeção do ataque.

A lava esfria, indo de vapor para a forma da água; o ambiente muda para o dentro de um mar. Pedaços de gelo tampam o alto, seus fragmentos caem continuamente para o fundo abissal refletindo a pouca luz que os alcança.

Kaon se encontra enrolado em correntes no meio daquelas águas, que o puxam para baixo. As bolhas de oxigênio param de subir; seu corpo está congelando. Seus olhos endurecem até ficarem opacos.

Ele prossegue com o ataque, rachando-se na movimentação lenta.

A cada centímetro da sua movimentação, uma eternidade se passa. É sentida na pele as ventanias, o calor, o frio, os estouros, o aperto e a refrescância; fica seca, trincada, rasgada e recuperada. Ciclos sem fim.

Está tudo claro, não há chão — nem céu — apenas Kaon e um ruído que lembra o vento. Seu corpo continua projetando o ataque, mesmo que esteja lhe faltando partes, manchado pelos danos de todos os cenários que passou. O olho que lhe restou mal se mantém aberto.

Aura, impulso, chão, rotação, articulações, relaxamento, enrijecimento  e agressividade. Me pergunto se Omnislai havia usado ao menos metade desses fatores.”

Seu braço cai, despedaçando-se igual porcelana, desaparecendo no nada junto de um pedaço do rosto.

Dor, estresse, delírios. O corpo fará de tudo para impedir de continuar, afinal esse não é um mundo em que os humanos deveriam estar, ainda mais alguém como eu. Apesar disso, me deu vontade, então eu vim, pois, quero estar aqui… a qualquer custo.”

Ele racha por completo; ele se recupera por completo, afinal está de volta a realidade, vendo o punho do adversário parado em frente ao seu rosto. Um círculo de poeira os rondam, desfazendo-se em pouco tempo.

O pé do Kaon está ao lado da cabeça do Traçal, se encontrando entre ela e o braço estendido rival. Ambos estão parados, o robusto fica incrédulo.

“O golpe mais forte do mundo…”

Kaon bate de leve no queixo do oponente, fazendo-o se desequilibrar ao ponto de dar um passo para trás. 

“...não passa de uma técnica de exibição, algo decorativo. Fútil, sem encaixe real. Resultado: demasiado complexo igual a ruim.”

Murmúrios se espalham, os narradores voltam a comentar. Kaon restaura sua postura, ficando em pé sem nenhuma postura de luta, dizendo:

— Vamos fazer isso direito, Traçal.

— Hã?... 

— Vantagens só iriam manchar meu propósito. — Seu pé esquerdo desliza à frente, ele retoma à postura de luta. — Vamos lutar até um cair de vez.

Os cochichos são convertidos em empolgação. Traçal fica irritado com a barulheira, estalando a língua.

 — Certo! — Suas mãos saem dos bolsos, encobertas pelo brilho esbranquiçado da aura, que as contorna como chamas fundidas à carne.

Lorde está de volta ao seu quarto no andar VIP, batendo o indicador no braço do assento.

— Agora leve a sério, Traçal… senão você vai se arrepender.

Traçal inspira fundo, segundos se passam; o mundo deixa de girar, apesar de ser só por um instante: o chão explode, sucedendo dele aparecer na frente do rival, liberando um soco desde atrás com um tufão o acompanhando na liberação, mas nenhum resultado em acertar o alvo. Kaon vai ao lado.

Um punho de direita atinge o robusto no rosto, porém não causa dano. Traçal balança o outro braço num ataque, passando reto para o alto sem encontrar nada; Kaon aproveita a abertura para o chutar no pescoço, porém mais uma vez sem resultados.

Um bastão de madeira batendo em um muro de concreto, o quão fútil isso pode ser?

Traçal range os dentes, atacando com um cruzado, errando e sendo atingido no queixo por um gancho do oponente, que está abaixo, numa postura recém levantada para o acertar com todo o corpo agindo.

Uma circunferência surge na barriga do robusto quando ele avança para pressionar o rival com o corpo, estando o borrão que é Kaon logo à frente, recuando em alta velocidade, que é rapidamente alcançada pela arrancada do Traçal.

O círculo de vapor está marcado na parede; Kaon avança contra a corrida do adversário, virando o tronco e ombro na impulsão de um soco alto, encarando-o com o lado do rosto inclinado. O punho tampa a visão do robusto, que vira os braços em um preparamento para agarrar o adversário enquanto aceito levar o golpe, mas, a pancada acontece no centro do seu estômago, não no rosto — uma mudança súbita de realidade cai sobre sua consciência — seu corpo curvado pelo impacto.

Seus braços atravessam a imagem falsa do Kaon, que está abaixo de onde passam. Os pés do robusto deixam o chão, encurvado mais ainda pelo avançar do punho. O público, independente do andar ou arquibancada, fica embasbacado.

Laços de poeira se formam com a passagem do acertado para o lado, movido pela força residual do impacto, pensando neste tempo:

“Era só uma suspeita, mas meus instintos estavam certos! Esse cara…! Ele pode me ferir! Mesmo que tenha só uma maldita gota de aura!”

Kaon repõe sua postura de luta, as pontas da faixa em seu braço balançam. Sua presença escurece, rodeado por um brilho laranja que confronta o breu, mas não clareia o emissor. Traçal o olha de longe, nervoso.

“Como é possível?!”

 

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O grupo de lutadores no andar VIP está paralisado, destinados a jamais tirarem os olhos do telão.

— O que está acontecendo?! — fala Humine. 

— Esse desgraçado! — exclama Kimai. — Ele estava ocultando a sua aura o tempo todo?!

—  Errado — responde Shinsai. — Sua aura segue sendo 2 II

Os rapazes ficam aturdidos com essas palavras. Unsai abaixa a cabeça, desacreditado; a expressão do Holpos aperta em irritação; Omnislai faz uma careta, como se tivesse comido algo estragado.

— Então como foi possível o que ele fez com o Traçal?! — questiona Humine.

— Os que o enfrentaram devem ter entendido tudo agora, pergunte a eles.

Kimai e Humine se viram para eles, relutantes em dizer algo.

— Ele simplesmente tem muita força — diz Unsai.

— Sim… — concorda Holpos. — Se resume a isso. Mal dá para sentir rastro de aura quando se luta contra ele, é difícil achá-lo quando some dos olhos, e seu punho fica pesado do nada, ridiculamente! Não faz o menor sentido!

— Ah! Não estou entendendo nada! — reclama Kimai, bagunçando o cabelo com as mãos.

Shinsai sorri.

— Esse é o passo que Noorbio não deu — diz Shinsai. — Vocês já ouviram histórias semelhantes à: “uma mãe levantou um carro para salvar sua criança presa”, ou, “um homem ficou preso por horas numa parede, agarrado fortemente para não cair de um precipício”?

Um assombro percorre todos os cinco lutadores.

— Os dois casos que contei possuem em comum o fator de hiperatividade do corpo humano, respectivamente força e persistência incomuns no cotidiano.

Traçal leva um chute lateral na sua guarda de dois braços, ouvindo um estrondo enquanto é jogado para trás.

— Essas coisas seladas e proibidas pelo subconsciente humano… Kaon as dominou.

 

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O robusto soca à frente, amassando a forma do oponente, com o verdadeiro batendo na lateral do seu corpo, dobrando-o parcialmente.

Um círculo de vapor aparece no tronco do Traçal, seu adversário vai para longe, evitando uma colisão proposital, mas sendo alcançando rapidamente pela investida.

Kaon o atinge na face, não tem efeito; no fígado, não tem efeito; na virilha, não tem efeito. Ele esquiva abaixando e subindo de três balanços consecutivos do Traçal, mandando um chute reto contra sua barriga, subitamente se tornando um chute para o alto, que atinge o queixo, jogando a cabeça dele para cima com um estrondo.

“Aaaaaah!! Isso não faz sentido!!”, considera o robusto, notando o oponente tomar distância. “Ele bate com a força de um frango e depois, do nada, com muita força! O que há com esse aumento de poder?! Tá tirando isso de onde?! Do…” Seu corpo se move sozinho ao ver o rival se aproximando, investindo.

Por mais que esteja usando socos compactos que superam a velocidade do Kaon, ele não consegue acertá-lo, atravessando apenas formas de luz. Entre as aberturas dos seus atos, recebe pancadas que em maioria não o causam dano, mas o irritam. Há um cessar súbito quando tenta forçar uma curta distância, pois é pego de surpresa pelo rival escapar com os impulsos.

Traçal muda a abordagem, fingindo que vai dar um soco para mudar no caminho para um chute. O adversário vai para baixo na esquiva, estourando a terra no fim do trajeto em queda… à frente. Os músculos da perna do Kaon endurecem, sendo usados num chute baixo contra o joelho do rival, travando-o junto do espalhar de poeira à volta.

O pé gira, a pele do oponente é torcida. Ao usar essa área como plataforma, Kaon dá um chute reto com a outra perna, atingindo o centro da garganta do inimigo. Traçal solta saliva com sangue para o ar, sentindo uma repentina falta de ar, com sua consciência ameaçando apagar.

— NÃO ME SUBESTIME!!! — braveja enquanto rouco. Com o estremecer do seu corpo, consegue afastar Kaon.

Vendo que o adversário está sem muito equilíbrio, ele avança. Kaon responde jogando uma perna para cima em um preparo para o chutar, surpreendendo-o.

O rapaz desce o calcanhar como um machado, Traçal reage focando aura na face, sentindo apenas uma miragem passar no que deveria ser o impacto; as cores do ambiente são invertidas para tons negativos, ele sente a colisão pela parte de trás do seu joelho. Dúvidas o preenchem junto da amarga dor.

Apesar do impacto, o robusto não cai e nem descansa por muito tempo, voltando a balançar os braços na busca de um acerto qualquer, mas que seria fatal para o outro.

“Já suspeitava, mas agora tenho a porcaria da certeza! Essas imagens residuais não são criadas pela sua velocidade ou agilidade! É a sua aura medíocre!!”

Um corte largo surge na face do Kaon, o que atrai a atenção dos seus olhos; acaba de desviar de um soco. Ao ver outro se aproximando, ele dá um passo para trás, acontecendo neste meio tempo de um pequeno brilho percorrer sua pele em alta velocidade, a “clonando” enquanto tal se move, criando uma falsa impressão da sua distância para o oponente, um vão pelo qual a ofensiva percorre.

Traçal fixa seus olhos nos pés do adversário. Lança mais um direto de direita devastador, sentindo seus traços se juntarem aos do vento, o que se torna uma confusão no seu aumento repentino de velocidade — esse deveria ser o desfecho. Nota o punho do Kaon vindo por baixo do braço, no tempo certo, e, no rumo da sua face.

Em um reflexo óbvio de defesa, aura se reúne em sua cabeça.

O golpe alto de Kaon se prova falso no espalhar da dor pelo fígado, onde realmente afunda. Apesar disso, Traçal ri, ignorando a sensação — dor já esperada —, estendendo uma perna à frente, a usando como alavanca para lançar seu corpo numa cabeçada; um círculo de vapor é marcado no lado do seu peitoral, Kaon tenta fugir com a força do salto, mas sua rapidez é superada num instante: é atingido em cheio, encoberto numa chuva de faíscas, aura e… seu sangue.

Terra, parede, arquibancadas e holofotes; os borrões deles passando num ritmo instantâneo é a realidade que os olhos do Kaon captam enquanto ele gira. Está rodando até o outro lado da arena, seus braços e pernas enquanto colidem continuamente no chão. Com alguns movimentos sutis consegue frear, parando com os joelhos e braços inclinados pela terra. 

Traçal corre em sua direção, atravessando uma nuvem de poeira — ao menos, é o pouco que distingue com sua visão conturbada. Sem opções, levanta tomando uma postura de luta, e, é neste momento que sua consciência cede: os olhos perdem o brilho.

Vendo que o robusto está quase alcançando o oponente desacordado, o juiz enche sua boca de ar.

Um punho enrijece, esquentando a área à volta pelo acúmulo de força e circulação sanguínea. Kaon o usa para um ataque pesado, chocando-se contra a guarda de um braço do Traçal, entortando-a no soar do estrondo. O robusto é jogando para longe, seus pés deixam o chão.

Todos ficam embasbacados.

A pele do punho de Kaon se foi, expelindo sangue ao redor. As pernas do oponente abrem para o pouso, emitindo um som pesado ao se firmar no chão com tanto peso.

“Só pode ser brincadeira com a minha cara! Hahahaha!” Ele olha para Kaon, vendo que está congelado na pose de pós-ataque. “Esse maluco tá lutando inconsciente!!”

O brilho retorna às íris do rapaz, mexendo-as para ver a posição do oponente e, em seguida, a condição do seu punho à frente. Ele inspira fundo, girando os braços à volta bem devagar, expirando antes de refazer a postura de luta. A situação é entendida.

— Tch! Você não sente dor?! — pergunta Traçal. — Está usando uma droga que nem os irmãos pirados, não é?!

— Lutar desprovido da dor? Que medíocre.

— Hã? 

— Não abdiquei de nada no meu “caminho”, isso seria o equivalente a se tornar um humano incompleto, um humano inferior. Raiva e paz; tristeza e felicidade; pressa e calma; angústia e satisfação… Ou o que seja. Todas são peças importantes para se tornar forte, são equipamentos da alma.

— Hahahaha! Fala isso, mas seu sangue tá cheio de adrenalina, secando na velocidade da luz! Aposto que sua cabeça também está lotada de endorfina! Se for verdade o que diz, você é um gerador de drogas ambulante!

Kaon tira a faixa do braço, amarrando-a na testa para conter o sangramento que escorre da nuca, ouvindo o oponente dizer:

— Enfim! Eu concordo com a parte de não ter frescuras!

— Traçal.

— O quê?!

— Faz algum tempo que me adaptei a sua velocidade. Vamos elevar isso a um novo nível. Não abaixe a guarda, mantenha os olhos abertos e use toda sua força, senão, o farei sentir o gosto da terra.



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