Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1: O Castigo do Céu Sombrio

Nas nuvens negras, o grande avião sobrevoava as águas agitadas do oceano furioso. Os revoltados ventos locais e a intensa pressão atmosférica tornavam-o inquieto. Tanto ele quanto os tripulantes.

Apesar do voo ter sido no período da tarde, os céus estavam escuros como uma longa noite. Das janelas, era possível apreciar um magnífico — ou tenebroso — espetáculo de luzes das exuberantes descargas elétricas. 

A aeronave tremia feito cidades em terremoto. Os passageiros fechavam seus olhos e seguravam fortemente no encosto para os braços. Alguns ousavam bradar como se não houvesse o dia de amanhã.

— Nós vamos morrer!!!

Dos equipamentos alto-falantes, os pilotos pediam incessantemente para manterem a calma. A frente do pára-brisa, a dificuldade de prosseguir era iminente. Além do breu infinito, a supernova de raios ofuscava o extenso trajeto.

— Contornar essa situação não será nada fácil — disse o co-piloto.

— Pois é! Ainda mais quando esses estudantes cagões ficam nos tensionando! — resmungou o piloto.

A maioria dos indivíduos presentes no avião eram estudantes universitários. Junto com eles, haviam dois professores: Sagna e Vion Ruster. Ambos eram conhecidos além da sua profissão: pertenciam à mais renomada classe de arqueólogos de Voda, respeitada mundialmente.

Mesmo que fosse uma adulta professora, Vion vociferava para os aviadores irem com cautela. Cada vez que os clarões iluminavam até a mais funda camada dos seus olhos, o corpo arrepiava como se estivesse a escutar alguém a raspar as unhas em uma lousa de sala de aula.

Durante o voo, diversas vezes foi entrever o que acontecia do lado de fora. Nem que tivesse que passar por cima dos assentos de seus alunos, o desejo de sanar sua dúvida sobre o que poderia advir era maior que seu lado racional. Em contrapartida, seu oposto estava no fundo da aeronave, alguém que ria na cara do perigo.

— Vamos aproveitar, família! Esse é nosso moment! — comemorou Lauren Nerual, a abanar o grande cabelo liso e fazendo sinal de rock ‘n roll.

Lauren não se deixou abater pelo temor coletivo e fez questão de animar a todos, até mesmo aqueles que não conhecia. No entanto, o incômodo causado por suas atitudes diante de uma conjuntura catastrófica era compartilhado por seus colegas, que se empenhavam em acalmar seus corações aflitos.

— Vamos, pessoal! ‘Tamo indo para another country! É hora de ficar animado e celebrar os poucos segundos que temos!

— O que você está insinuando? Que temos pouco tempo de vida? — Um colega olhou para ele.

— Não, mano! Eu quero dizer em relação a vida toda que passa rápido like a thunder!

— Não é um bom momento para você dizer essas coisas…

— O que é “like a thunder”? — Um amigo interpelou.

— É “como um trovão” in english!

— “In english”?

— Ai, my God…

— Fica quieto, Lauren! Desse jeito, você vai mais atrapalhar do que ajudar! — reclamou uma companheira.

— Não enche! Ôhhh! Chatona!

Enquanto Lauren falava infindavelmente, Vion amedrontava o curioso rasgo celeste: uma fenda formada por um vortex em meio às nuvens sem luz. Confusa, encarou-a fixamente para entender o que via.

— São muitos trovões! Espera… O que é isso? — Ela olhou para um ponto fixo nos céus.

— Sai daqui, ‘fessora! ‘Cê nunca viu um céu na sua vida 'pra ficar enchendo meu saco e ver da minha janela?! — reclamou Luiz Ziul, ao ajeitar a gola do seu luxuoso casaco.

— Cala sua boca, moleque! Eu sou autoridade aqui! — Ela nem se deu o trabalho de fitar o aluno.

— Como é que é?! — gritou Luiz.

Luiz rangia os dentes diante da mais insignificante atitude com a qual não concordava. Sua mandíbula permanecia tensa como um torno, expressando sua frustração e irritação latentes. Era uma reação que ele nunca quisera controlar, sempre mantendo-se firme no pedestal de sua certeza inabalável. No entanto, Vion era demasiadamente totalitária para aguentar até a minúscula repreensão de seus subordinados. 

No centro do vórtex, trovões começaram a se convergir em um único ponto, a formar uma esfera luminosa que expandia drasticamente. Nesse momento, a arqueóloga arregalou os olhos; sua intuição pressentiu que o fim estava próximo.

— Meu Deus… Essa coisa vai nos obliterar! — gritou Vion.

Ao sair da janela, pisoteou os pés dos universitários que estavam sentados. Os pisantes caros foram carimbados pelo coturno deslumbrante e, os pés, foram esmagados pela rígida sola tratorada.

— Cacete, Vion! Toma cuidado! Sua louca! — Os estudantes gritaram.

— O que é dela ‘tá guardado… — asseverou Luiz.

No abundante corredor do avião, Vion virou corredora profissional em questão de segundos. A linha de chegada era o local que permitia acesso à cabine dos comandantes; o prêmio, era uma porta rigorosamente metálica.

— Por que ela ‘tá correndo assim? Aconteceu alguma coisa?! — estremeceu Lotus Sutol, ao arregalar seus olhos de cores divergentes.

— Essa mulher não tem jeito… — murmurou Sagna.

— Ei, seus cretinos! ‘Cês não tão vendo a bola ultra mega gigantesca se formando nos céus? — Ela dava coronhadas com as próprias mãos na porta dos pilotos. — Desviem disso antes que seja tarde!

Quando se depararam com um som semelhante ao de um animal furioso a dar a vida para sair da jaula, o co-piloto e os comissários de bordo foram imediatamente intervir. Policiais à paisana e adultos passageiros seguraram seus braços. Entretanto, não foi o suficiente para interromper a arqueóloga a continuar com a agitação e teimosia. 

— Senhora, peço encarecidamente que você se acalme! — suplicou o co-piloto, com um tom de ordem.

— Fica quieta! — Os policiais tentavam segurá-la sem hesitar. — Você não vai resolver nada desse jeito!

— Me solta!!! — Ela olhava para os policiais. — Vocês não tem ideia do que está por vir!!!

As pessoas deste voo observaram todo o drama com expressões perplexas. Os comentários pejorativos que pairavam no ar levaram à conclusão geral de que a arqueóloga era considerada uma pessoa excêntrica.

— Senhora, peço que siga as ordens dos condutores aéreos — pediu educadamente a aeromoça, após ver o olhar desesperado de Vion e as juntas das mãos a sangrar. — Mesmo nessas circunstâncias, o avião é preparado para aguentar o impacto dos trovões e lidar com turbulências. 

— O problema é que não é um simples trovão!!!

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KABOOM

Uma súbita claridade tomou conta do cenário enquanto o avião girava de cabeça para baixo. A partir da fenda nos céus, um relâmpago devastador envolveu a aeronave, seguido por um estrondo de explosão que veio da asa.

Aargh…!

O clamor ensurdecedor dominou o veículo e o estrondo da descarga elétrica despencou no ouvido de cada indivíduo.

— Não consigo acreditar que vamos morrer bem quando estávamos tão perto! — gritou Lotus.

Os compartimentos de bagagem de mão se abriram bruscamente, que liberaram as malas volumosas e deram uma investida poderosa nos passageiros. Jarras de suco e refrigerantes abertos, junto com copos de plástico, foram no embalo e despejou todo seu conteúdo sobre eles. 

— Meu braço! — gritou Lotus.

Holy shit! ‘Tá chovendo orange juice! — entusiasmou Lauren.

— Que saco!!! Vou morrer todo sujo! — reclamou Luiz.

O alarme de segurança retumbava como uma sirene de uma cidade prestes a sofrer um ataque nuclear; luzes vermelhas se acenderam por todo o canto. Em instantes, perdeu-se o controle e o avião começou a precipitar-se na direção do revoltado oceano. O fogo que emanava da asa soltava uma fumaça preta que se camuflava com o ambiente escuro do lado de fora.

Sem demora, todos os ocupantes foram lançados em direção à parte frontal do avião. Os que estavam mais para trás, mergulharam a barriga nos bancos. O tsunami de refrigerantes fundido com suco de laranja banhou-os da cabeça aos pés.

— Co-piloto Jairo, ativa o Voptech! — ordenou o piloto.

— E se outro raio nos desolar, assim como fez com a asa? Nós temos que abandonar o avião, nem que tenhamos que nos jogar no oceano! — retrucou Jairo.

— Faça o que eu estou mandando! 

— Isso não foi um trovão qualquer, comandante Ricardo!!! Estamos na área de um periculoso Vital! — Ele olhou para o piloto.

— E por que o Vital nos derrubaria, seu louco?! Faça o que eu falei agora!!!

A aeronave é equipada com um sistema de restauração de componentes caso haja a perda ou a destruição dos mesmos. O sistema é conhecido como Voptech — Voquinity Picotechnology —  Restauration System.

A tecnologia utilizada para o reparo — a picotecnologia — oferece altíssima eficiência para realizar tal tarefa uma vez que, em uma escala em picômetros, os átomos e moléculas estariam mais próximos, o que permitia com que ocorresse uma montagem mais precisa, competente e drasticamente acelerada de estruturas materiais.

— Isso não vai dar certo… Os bancos possuem dispositivos de neutralização de dano de queda! Ninguém perderá a vida! Repense sobre sua decisão!

— Droga, Jairo! Segura esse botão logo! Já estou segurando o meu e preciso que você faça sua parte para a gente sair vivo daqui! — Ele encarou furiosamente Jairo.

— Maldição… ‘Tá bom!

Então, com uma pancada vigorosa no botão de ativação, o sistema entra em ação. Uma espessa camada de aço galvanizado começou a abranger a estrutura externa, que garantia proteção contra qualquer eventual calamidade que pudesse perfurar o avião. 

Para lidar com a matéria-prima, o utensílio ostentava uma qualidade de proficiência em picotecnologia que superava até mesmo a nanotecnologia mais avançada. Durante o processo, o som metálico do choque entre as peças adicionava um toque de terror ao que se desenrolava no interior. Logo, rapidamente a asa começou a ser reconstruída.  

— Voptech ativado. Por favor, fiquem sentados em seus respectivos acentos e apertem os cintos — disse uma voz eletrônica feminina através dos alto-falantes — Voptech activated. Please, remain seated in your seats and fasten your seatbelts.

— Como a gente vai ficar sentado em uma situação dessas?! — resmungou Lotus.

— Ah, não… — reclamou Sagna, a segurar-se em um dos bancos para não cair — Não terá o efeito esperado ativando esse sistema nesse momento! O trovão claramente não era algo normal e não sabemos se irá vir outro.

— Se não ativar agora, como sairemos vivos daqui?! É nossa única esperança! — afirmou Lotus.

— Não, Lotus. Isso não é uma circunstância de desastre natural ou falha sistêmica convencional! — Ele ficou de frente para Lotus. — Você sabe com o que estamos prestes a lidar…

— Sei, sim! Mas, a restauração e a armadura de aço é justamente para nos proteger de qualquer outra coisa! — afiançou Lotus, com um tom de superioridade.

— Essa segurança que o sistema traz é eufórica, ainda mais nessa situação. Se isso for um golpe do Vital, estamos correndo um sério risco!

— O que?! — Ele se surpreendeu. — Se realmente isso tiver acontecendo, é muito zica e também muita zica!

— Não, Lotus! Isso pode matar a gente! Não tem nada de legal nisso! — Flora Badawi advertiu, a balançar seus cabelos compridos.

No decorrer da conversa, os olhos de Sagna transformaram-se em olhos cibernéticos que enxergavam além do alcance: um mundo virtual no qual só ele poderia ter acesso. Mesmo com a dificuldade de manter-se focado, foi persistente e preparou uma alternativa apenas com a movimentação dos seus globos oculares.

— Seja lá qual for o desfecho dessa situação, salvarei o máximo que eu puder. — propugnou Sagna.

A aptidão do Voptech se provou e metade da asa estava reformada em questão de segundos. A inalcançável velocidade na qual o sistema atuava, lhes suplementava a falta de um elemento crucial para um voo seguro.

— Ufa… logo mais, estaremos seguros — disse Ricardo.

— Eu espero que sim… — Jairo pôs as mãos no painel de controle. — Vamos reerguê-lo!

— Não existe tecnologia que possa superar a velocidade da luz! — abonou uma voz misteriosa, diretamente dos auto-falantes.

Neste mesmo instante, uma destruidora cintilação irrompeu das sombras e assolou por completo a cabine dos pilotos. Um gigantesco rombo abriu-se na parte frontal e expôs o avião à parte externa.

Os corpos dos aeronautas foram reduzidos ao pó absoluto, castigados pelos céus por subestimar as forças da natureza; pulverizados pelo calor e choque inigualável dos relâmpagos raivosos. A reação dos viajantes foi instantânea: cederam aos mais horripilantes alaridos e aceitaram seus lugares a sete palmos abaixo da terra. 

Os ventos incrivelmente vigentes invadiram a aeronave e atingiram firmemente a todos. As roupas e os cabelos voavam presos em um corpo vulnerável; parecia que o rosto iria congelar e os olhos se recolheriam para dentro. O fluxo de vendaval vinha contra o trajeto de queda, o que literalmente levitava vários dos tripulantes que estavam para projetar do avião. Os gritos e o ruído do vento eram o suficiente para criar a definitiva ópera de terror.

— Estamos flying! — gritou Lauren.

— O meu dever é proteger todos os vodarianos! — assegurou Sagna.



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