Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Desembarque na Comunidade

Semelhante a um míssil teleguiado para atingir o país almejado, o avião despencava incontrolavelmente para o litoral de La Esperanza, o país das “nuvens-redemoinhos”. A corrente de ar local ressoava para os céus e os passageiros vivenciaram uma experiência em um grande túnel de vento. O volume do fluxo do vendaval ensurdecia quaisquer tipos de rangidos metálicos e clamores de desespero.

— Está quase lá! — Sagna preparava a última esperança para salvar a todos.

Mesmo nas condições adversas que o professor careca estava a enfrentar, Sagna conseguiu manter o foco e determinação para garantir a sobrevivência do coletivo. O movimento dos seus olhos era tão rápido quanto o balançar de seu sobretudo azulado. Um feixe de luz de cor esmeralda começou a envolver seus braços como uma cobra a enrolar-se em sua presa.

Então, ergueu-os para frente e lutou contra os ventos. Logo em seguida, bradou:

— Círculo de neutralização, proteja-nos!

No centro da divisória de suas duas mãos, uma orbe verde se expandiu como uma bexiga inflada por uma bomba de ar, e absorveu todas as vítimas da catástrofe. Dentro do globo, era possível sentir-se como se estivesse a mergulhar profundamente.

— O que é isso?! Por que estamos flutuando? — Flora fitou vários dos tripulantes que estavam imersos.

— Estamos dentro de uma bolha? — Lotus olhou para suas mãos enquanto pensava. — ‘Tá bem quente aqui dentro!

— Agora estamos diving! — Lauren nadou o estilo borboleta.

A égide globular que passou a abrigar os passageiros possuía um mecanismo de defesa eficaz contra a mais destruidora pancada. Um finíssimo escudo anti-prana envolvia sua parte externa, enquanto as águas termais na parte interna relaxavam os corações dos amparados da situação crítica.

A brisa cortante já não mais incomodava os vodarianos; a trilha sonora de terror que assolava seus ouvidos estava abafada pela pressão interna. No entanto, o perigo iminente nunca fora esquecido, a submersão temporária só resultou em dúvidas: “O que aconteceu?”.

A poucos segundos de explodir em uma plataforma de pedra, o avião desmantelava suas partes restantes, que arruinaram as areias com a força de um meteorito. Próximo a colidir com o solo, um idoso que estava na área gritou:

— Saia! — O homem realizou um movimento da direita para a esquerda com seu braço, que emitiu um trovão que impactou com a esfera e a empurrou para a aldeia não distante.

Logo em seguida, o escudo redondo disparou como uma bala de canhão, e o que restou da aeronave tornou-se a mais insignificante poeira. Os habitantes da comunidade próxima puderam apreciar um eclipse fora de época.

Óh! Enguia misericordiosa! Guarde-nos em seu refúgio para servirmos eternamente às suas ordens incontestáveis! — suplicou o morador.

As pessoas carentes deste local acreditavam que o fenômeno do 'Eclipse de Amochiom' estava a acontecer, onde a terceira lua de Voda descia dos céus chuvosos com a missão de levá-los ao 'Refúgio de Amochiom' — ou 'Refúgio dos 6 braços' —, lugar destinado aos vodarianos fiéis ao pranamentarismo para tornarem-se servos eternos do deus Amochiom, 'a Enguia de 6 Braços'.

O problema é que a queda do pseudo-cosmos estava a todo vapor para ser algo divino. No entanto, a devoção do povo era absolutamente maior que seu lado racional. Ajoelharam-se perante o gigante círculo e esperaram sua vez de abraçar o paraíso.

— Com certeza foi o Vital que nos lançou pra cá! Não terei outra chance! — Lotus olhou para o templo que acabara de sobrevoar.

— Saiam daqui agora! Vocês vão ser esmagados!!! — Sagna sinalizou com os dois braços para os residentes ali curvados.

— Já era! Vamos morrer! — Vion fechou os olhos.

A proteção esmeralda chocou e rolou como uma bola de neve no solo da comunidade. Casas e comércios foram assolados; e a população que rezava foi aniquilada pela esfera.

Quando cessou o deslocamento, as pessoas presentes puderam repudiar o caos massivo que, algo que era para lhes assegurar, causou.

— Que merda… — Sagna lamuriou e estendeu seus braços. — Desativar proteção.

A fumaça cinza que saía das construções se fundiu com a escuridão do ambiente tempestuoso; corpos obstruídos coloriam assustadoramente o cenário; e monumentos quebrados evidenciaram uma atmosfera de pós-guerra.

Os indivíduos que estavam protegidos não tiveram sequer um mísero corte, mesmo com toda tragédia que acabaram de enfrentar. Entretanto, o choque psicológico fez com que alguns apagassem repentinamente ao dissipar da cobertura.

Muitos ficaram atordoados com o clima de morte logo à frente, ofegantes como corredores em final de maratona. Por outro lado, o restante apenas ficou desacreditado que haviam superado o caos com vida.

— O rastro de sangue manchou essas ruas. Mais vidas foram perdidas! Mesmo salvos, nossas vidas valem mais do que a deles?! — indagou Vion, caída no chão.

— Ufa! Desembarcamos. — Luiz abriu um sorriso sarcástico. — Sagna concluiu com sucesso sua obrigação!

— Seu sangue é podre, Luiz. Olha quantas pessoas morreram por nossa causa! — retrucou Flora.

— Não esquenta a cabeça não, Flora! Logo menos a chuva vai limpar essa rua podre e você vai esquecer completamente do que aconteceu aqui. — ironizou Luiz.

— Cala a boca, seu louco! — Flora arregalou seus olhos enquanto respirava rapidamente.

Gradualmente, o estrondo dos passos dos aldeões começaram a tremer o chão. Todos  fugiram rumo ao oratório sem hesitar. De crianças a idosos, pulavam os destroços e pisoteavam sem remorso aqueles que tropeçavam.

— Rudá Tlaloc! Conceda-vos sua misericórdia e resguarde nossas pobres vidas! — apregoavam.

— Provavelmente deve ser naquela direção! — Lotus se levantou rapidamente.

Lotus Sutol não via tempo para se lamentar com a calamidade. Ele sabia que esse era o momento que estava mais próximo de realizar seu sonho: tornar-se um Vital a qualquer custo. Porém, não era o único que tinha esse desejo, colegas de sua turma com um viés autoritário também queriam desfrutar do poder divino da Pirâmide Vital da Tempestade.

Embora a pintura de terror vermelha tenha deixado os jovens aflitos, nunca os desmotivou. Na verdade, alguns até se sentiram animados ao ver o que um Vital pode fazer. 

Sem avaliar a situação ao seu redor, Lotus disparou no azimute do seu propósito, o que fez os que estavam atrás comerem poeira.

— Lotus!! Onde você ‘tá indo?! — Flora remexeu sua cabeça rumo ao Lotus.

Damn man! O brother ‘tá achando que é um runner! O cara é very louco meu! — Lauren expôs um sorriso e fechou os olhos.

Flora e Lauren falaram com as paredes, a mente de Lotus já estava a anos-luz para lidar com qualquer contestação de seus atos. No entanto, o jovem bombado não era o único a pensar assim. Camaradas que queriam esse poder foram ousados o bastante para conquistar o que almejam.

— Parece que não tô sozinho nessa — disse Lotus.

Então, o que era um cenário de melancolia e horror, agora tornou-se uma pista de 

corrida estampada de sangue carente. A recompensa era a soberania inigualável de um Vital. 

A chuva incessante banhava os juvenis competidores; os destroços no caminho eram obstáculos formidáveis; e a multidão que transitava pela sua fé criava uma plateia participativa.

Os passos que davam em cima de poças profundas lavavam até a mais escondida sujeira. Os pisantes dos “atletas” ficaram encharcados de barro e sangue. Os céus enfurecidos iluminavam toda a comunidade, como se os postes tivessem um bom funcionamento.

O árduo trâmite acabava com o estoque de ar do pulmão de Lotus. Por ter um corpo parecido com o de um fisiculturista natural, não aguentava sequer trotar por alguns minutos. Mas, não desistiu e permaneceu de cabeça erguida.

As ruas do gueto tinham uma característica peculiar: as descidas, subidas e curvas eram repentinas, como se fossem projetadas para atuar como o ângulo de um quadrado. Para acessar algumas das vielas, era necessário ter de enfrentar essa infraestrutura. Quanto mais se aproximava do destino, menor era a altura dos inclines e declives. 

— O que é isso?! — Lotus fitou debaixo para cima a subida à sua frente. — Como que eu vou subir nisso?

Lotus olhou de ponta a ponta. Procurou uma outra maneira de conseguir seguir em frente, mas não obteve sucesso. No entanto, ele notou que haviam mais pessoas a trilhar a mesma rota.

— Será que essas pessoas sabem como escalar isso aqui? — Lotus meneou sua cabeça para trás e logo depois se escondeu em um beco próximo.

O terremoto das passadas revelava o desespero dos milhares de cidadãos. Desacreditado, Lotus encarou atentamente os que estavam próximos a dar de cara com a parede.

— Nos proteja, Rudá! — O povo deu um pulo exorbitante.

— Mas que po… — disse Lotus, surpreendido.

Cercanos à elevação, o grupo de fiéis saltou na altura de um prédio de 3 andares e conseguiram seguir a estrada. As rajadas de vento que saíam de seus pés balançavam os telhados das residências de madeira. 

— Como eles conseguiram fazer isso? Não é possível que vai dar certo comigo… — Lotus deu uma risada, enquanto as gotas de chuva escorriam pelas suas têmporas.

Apesar de inconformado, não viu outra escolha além de tentar o mesmo método. Regredir para outro lugar daria chance de alguém chegar na Pirâmide Vital da Tempestade primeiro. Trepidar as moradias para atingir o caminho esperado também demoraria muito.

Decidido e com esperança, Lotus correu como nunca e deu um salto olímpico para alcançar o objetivo pretendido. Entretanto…

— Não acredito! — Lotus moveu sua cabeça para trás e viu que estava quase a voar.

Sentia-se como um dragão realizando seu primeiro voo. A experiência de estar no ar limpava sua alma e o enchia de emoção. O impulso causou uma explosão de ventos, que vibrou as estruturas atrás.

Logo, Lotus pousou na avenida lamacenta e continuou a seguir o aglomerado. Em uma altitude maior, conseguiu avistar a ponta de um santuário abandonado. Acima dele, as nuvens vociferavam com relâmpagos e formavam redemoinhos nos céus.

— Estou cada vez mais perto! — felicitou Lotus.

Conforme os vodarianos pulavam as vias, os edifícios estremeciam como se confrontassem um terremoto avassalador. Diversos deles foram derrubados ao decorrer da trajetória, o que deixou centenas de pessoas enterradas.

Curvas de trechos estreitos que interligavam as ruas principais eram as mais prejudiciais. Rotas barrentas ficaram completamente inacessíveis. Por onde os apavorados passavam, uma marca de devastação era deixada.

A tempestade imparável; gritos de homens e mulheres presos em escombros; corpos pelos percursos; e os habitantes desolados em busca de piedade, tornou o ambiente em um roteiro de filme de guerra.

As cenas apocalípticas percorriam na visão do Lotus, a deixá-lo perplexo. Contudo, nunca o impediu de continuar a progredir.

— Não posso parar! — Lotus rangeu os dentes e continuou a correr.

Pouco distante de mais uma subida, Lotus se preparou para dar mais um salto. Com os pés firmes no chão e com a água que nunca parou de gotejar em sua face, agachou e pressionou o solo alagadiço.

A sensação de liberdade mais uma vez envolveu seu coração. A determinação escancarada realçava seu vigor como um jovem sonhador. O ruído dos imóveis, após seu salto, o fez olhar para o lado. Porém…

— Some, garoto! — Nos ares, um guerreiro com uma capa cinza esticou o braço na direção de Lotus e abriu a mão.

— O quê?! — Lotus ficou estupefato.

Há uma curta distância do Lotus, o homem sombrio canalizou uma quantidade de prana no centro da mão, e a fez brilhar como um farol alto de carro. O intuito do golpe era criar uma repulsão e lançar o fortão para muito longe.

— Morra! — bramiu.

O bombado congelou assustado. Acreditou por um momento que seu fim estava decretado. De repente, um ponto fixo no céu clareou-se subitamente e, em instantes…

CABRUM

Um raio desintegrador tombou no soldado das trevas e ofuscou tudo ao redor de Lotus. Não sobrou sequer um átomo para contar a história. O clarão resplandeceu de imediato a escuridão, como se estivesse em plena luz do dia.

— Puta merda!!! — Lotus ficou abismado.

Todos ao redor do campo amedrontaram a incineração de milissegundos do homem. Os devotos acreditaram que seu destino seria o mesmo se desobedecessem as ordens do profeta de Amochiom, o Vital da Tempestade.

— Pelo amor de Amochiom, sacerdote Rudá! Dai-vos seu perdão! — rogou um homem.



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