Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: A Nova Ameaça

Quetzal do céu! O que foi aquilo?! — Os braços de Flora ficaram ásperos de tão arrepiados.

— Ele começou o massacre — disse Sagna, ao apoiar os braços de uma vítima do acidente no ombro. — Rudá vai aniquilar todos que tentarem chegar perto da Pirâmide Vital da Tempestade.

— Nossos alunos estão indo pra lá! — realçou Vion. — Eles vão ser obliterados!

— O Lotus provavelmente está seguindo o mesmo rumo, não é? — questionou Lauren, enquanto seu cabelo liso absorvia as águas da chuva.

— Ele é um idiota! — exclamou Flora, com um tom de preocupação. — Sempre me falou que queria ser um Vital. Ele não iria perder essa oportunidade!

Sagna, Vion e Lauren ajudaram cada ex-tripulante que desmaiou a levantar. A maioria deles já havia corrido para a cidade mais próxima, inclusive alunos que nunca desejaram passar por essa situação.

De início, os professores não fizeram muito caso ao verem seus subordinados dispararem para dentro da comunidade. O foco era garantir que todos os passageiros iriam sobreviver. Entretanto, os rasgos no céu deixaram evidente que tinham forças maiores que procuravam pelo poder das tempestades.

— Não temos tempo a perder. — Dois dragões chineses verdes começaram a envolver os braços de Sagna. — Vion, vamos!

— Vocês três! Procurem a cidade mais próxima e busquem abrigo por lá! — Vion ordenou para Lauren, Flora e Luiz. — Não deixem ninguém para trás. — Os membros superiores de Vion petrificaram e criaram uma armadura rochosa.

Sem mais delongas, Vion e Sagna foram em busca dos universitários, ambos preparados para qualquer eventual conflito. Seus dispositivos de combate os garantiam um bom arsenal contra até mesmo o inimigo mais formidável.

Let 's go, Flora. Vai dar tudo certo, Lotus vai voltar pra gente. — Lauren pôs a mão no ombro de Flora.

— Não, Lauren! — Flora tirou a mão de Lauren e fitou seus olhos. — Ele ‘tá indo ver o maior assassino desse mundo!

— Gente! — Luiz deu um abraço de lado em ambos, enquanto sorria ironicamente. — Não foi só o Lotus pra lá não, viu? Tem mais alguns conhecidinhos também!

— Tira suas mãos de mim, seu cretino! — Flora o encarou raivosamente. — Eu mal sei quem são eles!

O coração de Flora apertava ao imaginar o que poderia acontecer com o homem que tanto considerava. “Por favor, Lotus, não faça besteira.”, pensava. Lauren também tinha essa sensação, afinal, Lotus era como um irmão para ele. Entretanto, ele tinha fé que ser otimista o ajudaria a enfrentar quaisquer circunstâncias. A voz calma e seu jeito acolhedor de se expressar, convencia qualquer um de que manter a sanidade era a base da resolução dos problemas.

Então, o trio partiu para a cidade litorânea, que era o local previsto para desembarque. Luiz correu na frente, e Lauren tentava convencer Flora a parar de confrontar as instruções de Vion. 

— E se ele não voltar, Lauren? — indagou Flora, ao olhar para a direção que Lotus seguiu.

— Ele vai voltar para nós, Flora. — disse Lauren, com um tom de confiança. — Se quer ver ele de novo, precisamos estar vivos too!

A incerteza do desfecho da situação pairava pelos pensamentos dos jovens. Perguntas como 'e se?' os sufocavam com uma ansiedade inabalável. Acreditar que a única coisa a se fazer era fugir, seria como receber o atestado de inutilidade. Entretanto, dispuseram de toda energia positiva que tinham para aconchegar cada pedaço da alma de Lotus em seus corações, e protegê-lo de todo o mau, o que aliviou levemente a tensão.

Enquanto os amigos iam para o município, Lotus pousou na viela que acabara de sobrevoar. Atônito com a fissura celestial, o bombado tinha dificuldade para respirar. O susto engoliu seu músculo mais forte, o que o levou a colocar a mão em seu peito.

— Foi por pouco… — disse Lotus, ofegante.

Após a incineração, o solo tremeu como se dois continentes estivessem a se chocar. As passadas dos fiéis alegavam a súplica para a divindade não os levar embora. O desespero estava estampado nas suas faces entristecidas.

Lotus já havia percorrido um árduo caminho. Levitou em uma altura que nunca imaginaria que conseguiria e quase foi executado por um guerreiro misterioso. Sua mente o impedia de voltar atrás.

— Nunca estive tão perto de vê-la… — Observou destemidamente o santuário próximo. — Não terei outra chance!

Com um passo intrépido, voltou a apressar-se como se não houvesse o amanhã. A agilidade nos pés exalava toda a esperança de um garoto no auge da sua juventude. Ainda havia uma custosa trajetória para percorrer imerso na chuva incessante. 

Quanto mais subia as ruas do gueto, avistava poucas casas redondas de pedregulho. Algumas delas ficavam ao lado de comércios, já outras eram erguidas como prédios mal cuidados, com uma base quadrangular que as sustentavam.

A rogação ao profeta de Amochiom podia ser escutada a quilômetros de distância; o estrondo de construções a despencar tornara-se parte da sonoridade local; e o medo cobria os vodarianos entre o frio da tormenta.

Óh! Rudá! Perdoe vossos pecados! Somos seres errantes dependentes de sua compaixão! — clamavam.

Lotus nem pressupôs o que poderia ter acontecido com os colegas que também queriam se tornar um Vital. O foco dominava sua cognição. Encarava o que desenrolava como uma corrida antagônica ao tempo.

Seguia sua rota sem hesitar, quando de repente…

— Não! — Lotus foi lançado como uma bala de canhão contra um comércio à sua direita, que esmagou seu ombro na parede.

Em instantes, uma casa foi completamente destruída por uma poderosa rajada repulsiva, que atingiu fortemente o jovem. O rangido da explosão o ensurdeceu por alguns segundos.

Das cinzas dos destroços, surgia outro guerreiro encapuzado. Era muito semelhante ao que quase eliminou Lotus. O manto era escuro como a noite e a mão brilhava como o dia. Sua sede de sangue era evidenciada pelo caminhar sobre os entulhos. 

— Ei, Moleque! — gritou. — Para onde acha que está indo?

Caído no chão, Lotus amedrontava a cena que assistia. Enxergava o soldado como a dona morte prestes a levá-lo. Entretanto, o zumbido no ouvido não permitia com que captasse o que o homem dizia.

— Quem você acha que é pra ir àquela ruína? — perguntou. — Algum habitante dessa vila?

Lentamente, o jovem pôs as mãos no chão e começou a levantar. A dor em seu ombro era escaldante, o que o fez apertá-lo enquanto erguia-se. Aos poucos, o zumbido dissipava-se e sua audição voltava.

— Quem é você?! — Lotus olhou aflito para o guerreiro das sombras.

— Sou o ponto final da sua história. — O homem soltou um riso malévolo. — Vou te colocar a sete palmos abaixo da terra!

O assassino sombrio vestia uma luva metálica e não vacilou em apontá-la para Lotus. O ataque que preparou tinha o intuito de afundar o jovem no solo, de maneira que nunca mais conseguisse abrir os olhos de novo.

Subitamente, a tempestade aumentou drasticamente a energia do respingar e do vendaval. O vento jorrava as gotas de chuva como projéteis pontiagudos, o que deu a sensação de uma chuva de canivetes.

A potência do fluxo da corrente de ar fez com que o soldado colocasse o braço no rosto, enquanto sua capa quase revelava sua verdadeira identidade. Não conseguia manter-se estável de pé, seus movimentos ficaram desengonçados.

— Maldito Rudá! — reclamou no momento em que rangeu os dentes furiosamente.

O céu vociferava com ódio; os trovões e a melodia do dilúvio exerciam uma ópera de terror alarmante. Em um ponto próximo do encapuzado, um furacão começou a crescer severamente, o que atraiu os detritos. O mesmo vento cortante que Lotus sentira no avião retornou e remexeu tudo sem esforço.

— Merda! — O guerrilheiro despencou na superfície e foi sugado para a posição de início do tornado.

— Isso é um furacão?! — Lotus segurou-se na janela da porta do comércio.

A brisa atroz despedaçava os edifícios e os fazia rodopiar no tufão; o homem que uma vez desejara tirar Lotus da jogada, encontrava-se preso em uma armadilha de ar feroz; e o próprio garoto juvenil agarrava a porta resistente. 

A potência do intenso ciclone já aspirava sem esforço, para seu centro, os objetos que haviam no ambiente. Os resíduos foram arremessados para todos os lados, voaram como mísseis e caíram como meteoros.

— Eu vou te pegar, seu filho da pu… — O homem foi ejetado para uma distância prolongada. 

O combatente vagou pelo céu escuro, e o furacão se acalmou bruscamente. Logo depois, um trovão avassalador irrompeu dos céus negros e dizimou o carrasco nos ares sem piedade, o que iluminou novamente toda periferia.

— De novo… — Lotus se firmava na porta. — Outro raio!

A tormenta ainda berrava sem fim. Lotus desabou no chão, mais uma vez creu que faleceria. Na verdade, ainda não tinha convicção de como estava vivo. Seu braço estava bem machucado, mas não deslocado ou quebrado. Os músculos do seu ombro cebola amorteceram o impacto. Todavia, ainda possuía adversidades para reerguer-se. Flexionar os braços queimavam o ombro ferido.

— É o segundo que tenta me matar… — Ele meneou a cabeça para trás. — O que está acontecendo?

— Corra!!! — Uma voz misteriosa ecoou em meio aos relâmpagos.

— O quê?! — Lotus arregalou os olhos e olhou para cima.

Supôs de imediato que o que ouviu eram alucinações a pedir que não parasse no meio do caminho. O som delas misturavam-se com os ruídos dos raios; parecia um timbre robótico. Então, sem questionar, retroagiu a mais intensa corrida.

Embora estivesse comprometido com seu objetivo, seu físico já não estava tão disposto. A angústia das lesões no braço se estenderam para todo o corpo; e o cansaço o debilitava gradualmente. Mas, não cedeu ao sofrimento e continuou a flutuar sobre as vias inclinadas.

Quase todo o santuário já podia ser visto. Ele estava cada vez mais perto de alcançar o primeiro passo da sua meta. Lotus conhecia o local onde o Vital da Tempestade se hospedava, pois estudou cada detalhe importante dele antes de viajar. As informações sobre os Vitais eram disponibilizadas na Sahnatnet, um modelo evoluído de internet desenvolvido pelos renomados cientistas internacionais do continente Sahnatnom.

Com a perna suja de lama até o joelho, ele já estava próximo de concluir a primeira etapa. Pisotear escombros havia se tornado rotineiro; a água da tempestade era como um banho eterno; e o planar nos pulos virou algo comum. Contudo, o apelo para o profeta já não era mais ressonado no caos, fora substituído pelo retumbar gradual de tambores.

— Não pode ser… — Lotus fitou as centenas de moradores que estavam agachados e fechando toda a passagem da rua.

À sua frente, os residentes da aldeia estavam ajoelhados no decorrer da incisiva pluviosidade. Alguns estavam na rua abaixo da subida, e a maioria estava na viela do oratório.

Sem entender o que rolava, o jovem cessou o deslocamento. 

Óh! Rudá Tlaloc, profeta de Amochiom! A vida daquele que entregou sua alma ao Guardião da Tempestade durante 15 horas de cada um dos seus 1521 dias; dispôs de todo alimento sólido e líquido; e cativou o prana divino, libertará sua alma para que nós recomeçamos nossos dias como devotos! — rezou um sacerdote, que estava muito próximo a entrada do santuário.

— Essa é a reza que fazem para o Vital? — Ele semicerrou os olhos enquanto escutava a reza que reverberava pela comunidade. — Essa pessoa deve estar lá em cima. — Ele não conseguia ver o seu propagador. 

O batuque se reproduzia veementemente no âmbito do céu de água. Os adultos percutiam com vontade os instrumentos musicais; e a reza era a vocação para criar um imponente ritual.

— Hoje, neste poço sem fundo! Galdino Taira cumprirá o seu dever como habitante do Stormbolt! — clamou o sacerdote.

— Galdino Taira? — indagou Lotus.

De um beco das casas esféricas de pedra, um homem surgiu de cabeça erguida. Sua face empoderada refletia todo o vigor em realizar sua missão. As mãos e pernas estavam livres, e nenhum outro vodariano o forçava a andar.

— Diante da Casa dos Tlaloc! Diante das casas redondas que representam o gotejar da chuva eterna de Amochiom! Galdino para sempre viverá como servo do nosso poderoso Guardião Vital!

Ao se aproximar das pessoas curvadas, elas abriram espaço para ele passar. Um corredor o levava para a subida, onde teria que saltar para chegar no poço. De ambos os lados, ficaram os tamborileiros na frente, e os que estavam no meio atrás.

Galdino caminhava calmamente até o destino e exalava a absoluta certeza de sua decisão. Seu coração era puro como o oxigênio de uma floresta. Suas vestes eram humildes e seu brinco replicava a luz dos trovões.

Lotus testemunhava com muitas dúvidas. Nunca tinha visto uma cerimônia desse tipo. “Será que vão sacrificá-lo? Se for isso, eu deveria impedir?”, pensou. Não obstante, não queria interferir na religião desse povo. Era uma cultura diferente da sua, pressentia que tinha que respeitar. Nessa ocasião, decidiu permanecer parado, pois imaginava que se continuasse a prosseguir, provavelmente sua integridade física entraria em risco.

A sinfonia se tornava cada vez mais robusta. Os tambores estremeciam o solo e a vocalização gerava um culto majestoso durante a canção das descargas elétricas.

O jovem ficou surpreso com o capricho que tinham para realizar a liturgia. Tudo era muito bem praticado. No entanto, Lotus se distraiu com o abrupto alarido atrás de si e abanou o corpo para trás.

— De novo não… — Ele fechou o rosto, desesperado.

— Você não vai escapar! — disse um guerreiro com uma capa cinza com manchas vermelhas, ao apontar o braço que emanava um plasma alaranjado.

O combatente levitava no ar e acumulava uma quantidade de prana fora do normal na luva metálica. Diferente dos outros, ele não teve medo de exibir seu rosto levemente enrugado. Lotus, nesse efêmero, cedeu ao mais profundo calafrio.



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