Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 5: O Santuário de Tlaloc

Era um lugar escuro e sombrio.

A poça musgosa imergiu a bochecha do jovem, a água tocava suavemente seus lábios. Deitado em cima de um chão esburacado, a goteira inundava sua nuca. O esforço excedente fora recompensado com um cansaço profundo. A camisa preta estava rasgada, como se fosse mal cuidada. “Eu… consegui?”, pensava.

O coração já não bombeava mais o sangue como antes; o poder e a resistência que recebera, se dissiparam. Decaiu da gloriosa força para a horripilante fraqueza. Entretanto, nada disso o abalava.

O ar tinha um odor diferente, não era nem agradável e muito menos desagradável. Era apenas… diferente. Ele purificava suas narinas e anestesiava os ferimentos. Era tão puro quanto a atmosfera das florestas de Hermosque, o país das árvores milenares.

— É como se os meus pulmões estivessem no paraíso… — murmurou Lotus.

Sua visão lhe concedia um imenso corredor à sua frente, dominado pela natureza e pelos feixes de luz dos trovões. Nos confins, seis grandes braços de pedra apoiavam as mãos no solo desgastado sobre uma velha escadaria, como um golem prestes a se levantar, o que deixava exposto uma passagem misteriosa e desprovida de luz. Acima dela, a cabeça de uma imponente lampreia rogava para a direção da entrada principal.

Ao pressionar o pedregulho da superfície, Lotus ergueu-se cautelosamente. Não sentiu sequer um mero desconforto no ombro, parecia que estava totalmente renovado. O vício em inspirar tomou posse dos seus pensamentos.

Os sons de detritos e gotas que chocavam com o solo, emitiam um eco profundo nesse vago espaço.

— Esse lugar está caindo aos pedaços. — Ele olhou para frente.

Ao menear a cabeça para trás, percebeu que não tinha ido tão longe. A passagem estava aberta — aparentemente, porém não havia ninguém do lado de fora além de destroços de madeira e de pedra. Inconformado, andou até ela para sanar sua dúvida.

— Cadê todo mundo? — indagou. — Espera… era para ter um poço ali também. O que aconteceu?

Conforme aproximava-se da entrada, uma corrente de vento ressoou contra seu trajeto como uma chuva de canivetes, o que o impedia de seguir adiante. A cada passo que dava, a violência do vendaval aumentava. “É como se eu não pudesse sair daqui!”.

Teve a certeza que era inútil tentar voltar, só não conseguia entender o porquê desse impedimento. Supôs que o próprio Vital fechava os portões quando um mero vodariano pisasse na sua casa, ou que era uma tecnologia própria da ruína.

— Bom… já estou aqui dentro, exatamente como eu queria — disse. — Não posso voltar! — Ele fitou com rabo de olho.

Então, decidiu arcar com as consequências e ir a fundo nesse ambiente ancestral. O oxigênio revitalizou sua juventude e aliviou a dor. O prana que corria pelo seu corpo era denso e vigoroso, o que dava uma sensação de que sempre esteve no pódio. Parecia que as veias iriam sair do corpo, como se o estoque de energia tivesse excedido o limite.

— Preciso encontrar o Vital, não importa o que me custe! — Ele começou a explorar a ruína.

Após uma pedrinha atingir a cabeça, Lotus prestou atenção no que estava acima dele: um céu azul escuro iluminado pelas constelações e trovões contínuos. De início, acreditou que a ruína teria tido o terraço completamente destruído. Porém, sempre soube que uma garoa de pedras não era normal.

— Não pode ser… — Ele arregalou os olhos. — Será que essas são as famosas pinturas vivas?

O teto tinha uma característica peculiar: os desenhos que estavam nele eram animados, o que fazia ele atuar como uma grande tela de cinema. Um filme sobre estrelas e descargas elétricas era reproduzido sem necessitar de cinematógrafo ou comprar ingressos. Era apenas uma ilustração cheia de vida.

Arrepiado, o jovem travou a cabeça na diagonal e encheu sua alma de alegria ao apreciar a belíssima arte. Entretanto, não poderia ficar em êxtase para sempre, ainda tinha muito trabalho a fazer. Mas, segundos de admiração revigoram mentes esgotadas.

Em ambos os lados, havia esculturas entre os pilares domados pelo verde. Uma base quadrada com algumas palavras escritas estava sob a estátua de um vodariano robusto, o que evidenciava o padrão de todos os monumentos. No entanto, cada uma delas simbolizava um poder diferente. 

Em meio aos acúmulos de água que limpavam seus pisantes barrentos, ele foi entender o que era cada uma delas e, também, ver se encontrava alguma passagem secreta, como em uma missão de um jogo de ação. 

A primeira das estátuas era de uma mulher alta de cabelos longos, que estava com os dois braços baixos e as duas mãos levantadas para cima. Dois fios de água a envolviam e ambos se cruzavam em seu meio, como se formasse um ‘x’. 

Na base quadrangular, havia uma mensagem que continha algumas informações, estava escrito:

Mariana Tlaloc

A Sereia Esmeralda

3ª Tempestade a.P.

Apesar de empoeirada, a obra estava bem conservada. Lotus olhou ao redor dela para ver se detectava alguma escadaria para o além ou um baú do tesouro, porém apenas sujou seus pés com as teias de aranhas-vespas, espécie de inseto mortal de La Esperanza.

As outras expressões culturais não tinham muitas distinções com a primeira que o jovem viu, o protótipo mantinha-se o mesmo. Ele visualizou homens que controlavam os relâmpagos; indígenas que manipulavam os furacões; e mulheres que detinham o poder dos oceanos nas mãos.

Enquanto se deslocava de uma para outra, ouviu algo que mergulhou nas poças e emitiu um ruído que reverberou em todos os cantos. De imediato, ele foi até a área.

— Uma… maranja? — Ele apanhou a fruta que era uma mistura entre maçã e laranja.

Era uma fruta saborosa, a vontade de Lotus entrelaçá-la na sua língua e sentir o líquido escorrendo pelo seu esôfago, era tentadora. Entretanto, estranhou severamente a queda dela. Além disso, seu corpo ficou um pouco mais pesado, como se estivesse carregando um saco de cimento.

— Será que só de olhar pra essa maranja, eu já fiquei cheio? — Ele soltou uma risada. — Se não tivesse encostado no chão… eu até comeria.

Não deu muita bola para a situação e logo largou-a como um pedaço de lixo. Foi ensinado desde cedo que ingerir comidas que tocaram no solo poderia fazer mal à saúde. Seus modelos de limpeza eram um tanto quanto… exagerados. Mas, evitou de adoecer várias vezes por conta deles.

Ao continuar a trajetória, Lotus se deparou com uma escultura discrepante das outras. Ela era imponente, maior e mais rebelde. O homem representado nela tinha o corpo definido, como o de alguém que vive de calistenia. Ele mirava os dois braços para frente e em ambos haviam espinhos e trovões; e o sorriso de orelha a orelha evidenciava sua confiança nas belíssimas asas de folha celeste, como um anjo da floresta.

Protiv Heiko

O Margeador da Ascensão

1521 ~ ∞

O adulto em destaque era citado não apenas em livros de escola, como também em uma divisão de eras. Protiv Heiko, o imponente Vital Duplo, há muito tempo havia obtido os poderes das Pirâmides Vitais da Tempestade e Natureza, o que o tornou o mais próximo de restaurar a Trindade Vital, artefato lendário que foi dissipado há séculos. Entretanto, sua jornada chegou ao fim devido a ‘forças maiores’.

— Quem diria que um dia eu iria ver uma representação original do Heiko! — disse Lotus, animado. — Mas… por que ele não está posicionado em outro lugar, para ter mais destaque?

Mesmo que a estrutura fosse mais desenvolvida que as outras, Lotus cria que o mínimo era ele estar posicionado no centro para realçar sua imagem e se tornar uma figura soberana. No entanto, ele não ia se dar ao trabalho de fazer isso.

Um mundo novo tinha descoberto, o lado de fora já não existia mais. O peso histórico do Santuário de Tlaloc, local onde o Vital da Tempestade protege, era deslumbrado por Lotus. Estudou desde sua origem até o seu interior, tal qual encontrou pouquíssimas informações. O sentimento de estar dentro da sagrada ruína das tempestades era gratificante.

Após marchar por cima de cada buraco, ensopar seus pés da cor da noite e desbravar os arredores como se não houvesse o amanhã, o bombado se vê de frente com o grande monstro de rocha suprimido pela grama.

— Provavelmente esse deve ser o Amochiom defendendo o acesso ao Vital. — Lotus olhou para o percurso das trevas. — Preciso ir logo!

A ilustração de Amochiom era conhecida no mundo todo, juntamente com outros dois deuses do pranamentarismo. A enguia de 6 braços com cabeça de lampreia era cultuada em todas as áreas chuvosas de Voda.

Determinado, Lotus avançou rumo ao seu destino. Conforme subia os degraus, os poucos pelos do seu braço festejavam em meio a eletricidade que pairava no local. Os olhos da divindade rochosa começaram a brilhar e o chão estremeceu.

— Estou chegando, Pirâmide Vital! — Ele cantarolava.

De súbito, Lotus disparou na corrida para ingressar de uma vez por todas na escuridão total. A cada segundo, um vórtex de água se formava no portal e, assim que o jovem se encontrou demasiadamente próximo…

— Merda!!! — Uma bomba hidráulica o atingiu como uma bala de canhão no peito, o que o lançou fortemente para trás.

Voou com o pescoço quase dobrado e com os dentes rangidos prestes a serem mastigados. Quis confrontar a parede oceânica sem nenhum preparo, apenas com o ímpeto que viria da sua ambição.

Deslizou as costas na superfície molhada e estraçalhou ainda mais suas vestes. O golpe repentino o deu uma brusca falta de ar e um hematoma na divisória do peitoral. O abafo tomou conta da sua audição; e o coração quase usou a boca de trampolim para submergir nas poças cor de oliva.

Quando chegou a uma certa distância, o Amochiom de pedregulho apagou os olhos e o solo parou de tremer, assim como o turbilhão se esvaiu. O jovem estava encarcerado, como se fosse condenado à prisão perpétua.

Na sua insolente inocência, acreditava que só enfrentaria problemas para chegar à ruína. Jamais contou que o intermediário entre ele e o Vital teria armadilhas pesadas que o derrubaria.

— Não… tenho… para onde… fugir…?! — bafejou, enquanto fazia os pulmões trabalharem como nunca.

Durante o tempo que jazia, outra maranja despencou do alto, o que ejetou algumas gotas no seu rosto. Em instantes, seu corpo ficou mais pesado e os pilares ao redor tiritaram, propensos a uma possível queda brusca.

— Que pressão… é essa…?!

A partir dali, não imaginava qual decisão poderia tomar para seguir em frente. Mesmo sem saber o que aumentava sua massa, supôs que a cada segundo que passasse pioraria as circunstâncias.

Com dificuldades, alçou-se controlando a mente ao acostumar-se com um tipo de gravidade mais rígida para não cair de joelhos. 

Entretanto, conseguia se locomover. Então, aproveitou o momento para procurar uma outra possível solução para alcançar seu objetivo. Caso ficasse insuportável, teria de recorrer a sua habilidade novamente, o que poderia fazê-lo ter um ataque cardíaco.

— Posso morrer aqui, mas vou achar uma solução! — Ele franziu a testa, obstinado.

Sem hesitar, foi novamente para as escadas salientar sua teimosia. O altear das pernas era vagaroso, o que o fez demorar ainda mais para escalá-la. Enquanto executava tal ação, esquadrinhou a área que estava, para achar algo que lhe ajudasse.

— Não é possível que não posso sair daqui — falou.

Ao buscar incessantemente, avistou uma estreita escadaria na quina à nordeste. Ela era curvada e encaminhava para um possível segundo andar. Sem opções, caminhou o mais rápido que pôde para lá.

Lentamente, pisou firme de degrau a degrau e apoiou a mão na parede de musgo, que estava fofa como um urso de pelúcia. Não era uma elevação exacerbada, mas era como escalar uma montanha com um sofá nas costas.

Ao completar a rota, fitou uma extensa sala quase vazia no alto da ruína. Uma chuva estável pincelava o solo cinza e envolvia os poucos baús que tinham lá. No entanto, o respingar não vinha de fora.

— ‘Tá muita calma para ser a tempestade lá de fora… — Ele meneou a cabeça para cima. — Será que a própria ruína se lava por dentro?

O teto estava escuro como os céus, o cinza sombrio das nuvens englobava a coloração desse lugar. Nas laterais, haviam alguns alvos rompidos, como se fossem queimados por um relâmpago impiedoso. Já outros estavam cortados, de modo que foram submetidos às mais ferozes lâminas de vento.

Na parte da esquerda, um painel extenso cobria a parede. Nuvens trovejantes e uma inacabável melodia da tempestade bradava no seu interior. Curioso, Lotus foi checá-la para ver se achava uma resposta.

O cabelo encaracolado hidratou-se bem nesse dia. O jovem não desistia do motivo da sua jornada. Quando chegou no panorama, as nuvens se contraíram e o vendaval gritou na sua direção.

Aargh! O vento! — Ele colocou o braço na frente do rosto.

Ao movimentá-lo, constatou que o enevoamento acompanhou o ritmo, e foi para o mesmo lado. De repente, a chuva interna tornou-se muito mais intensa, como se ele estivesse na periferia novamente. Para ter certeza, moveu outra vez.

— Que legal! — Ele obteve sucesso.

Com esperança de que isso poderia ser a chave que procurava, tornou-se um maestro de uma hora para outra e começou a mobilizá-las. A veemência da tormenta variava bruscamente, um período era uma garoa e inesperadamente virava um temporal, e vice-versa.

— Agora eu tenho o poder das tempestades! — brincou.

No entanto, tal façanha não resultou em nada de útil, apenas o banhou mais. Retrocedeu a chuva tranquila e foi averiguar o que tinha dentro dos baús de madeira, sufocados pelo mofo.

— Deve ter alguma arma ou um botão aqui — disse para si mesmo, como uma forma de se consolar e ter esperança.

Ao abrir o baú, espirrou imediatamente, a poeira era insana. Dentro dele, havia bastões, manoplas de couro com juntas de ferro, armaduras jogadas e orbes azuis quebradas. Ele equipou as manoplas e abriu e fechou as mãos, para testá-las, e escolheu ficar com elas. Pelo estado acabado que o restante dos objetos estavam, ele nem ousou tocá-los, pois imaginou que seriam inúteis. 

Fechou o baú e decidiu retornar.

— O que é aquilo? — Ele encarou duas janelas redondas no final do trecho localizado nas suas costas.

Dois círculos disponibilizavam a visão nublada para a comunidade. Os relâmpagos que vinham de fora iluminavam um pouco o andar.

Antes de descer, Lotus foi observar. No entanto, enquanto calcorreava pela sala…

— Não!!! — gritou ao mesmo tempo que desabava.

Como em um terremoto, o chão e o teto desmoronaram abruptamente. Levou, com eles, tudo em torno e balançou seriamente todo o santuário.



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