Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 31: Caindo sem Paraquedas

Quando na infância, não é incomum olhar para o céu e imaginar as nuvens fofas como pelúcia, ou suculentas como algodão doce. Envelhecer e compreender que elas não são assim é natural, porém ninguém foi tão longe para desvendar quanto Lotus.

Aaaargh!

A corrente de ar abaixo de zero invadia a pele negra, sua alma aflita refletia o desespero de vivenciar uma queda livre. Seu estômago estava mais frio que o vento contrário. Em uma velocidade incapturável, Lotus havia se tornado um trovão e voltou ao corpo vodariano, a única maneira de fugir dos manifestantes.

Para o seu azar, ele nunca estivera preparado para tal situação. Ninguém o levou de avião para os céus; ninguém lhe deu um paraquedas. Ele estava solitário em meio às nuvens, sofrendo com as consequências de um improviso repentino.

— O que que eu faço?!! — bradou, com as bochechas repletas de ar.

Em um piscar de olhos, Lotus já havia atravessado as nuvens cinzas, encharcando-se com a tempestade invocada no momento em que se trovanificou. Lotus clamou pela tempestade sem nem mesmo ter ciência disso. As luzes da cidade já podiam ser apreciadas, foram acendidas de imediato após o céu escurecer em plena manhã.

— ‘Pra onde o garoto foi?! — Lá da superfície, Raoni fitava acima procurando pelo jovem. Sua preocupação crescente se tornou sua sentença de aflição. — Ele fugiu desse circo direto pelos céus?! — Ele havia chegado no local dos protestantes e escondeu-se no beco entre duas casas.

— Vamo’ cair fora daqui!!! Ele vai fazer chover relâmpago em cima da gente para nos matar! — Um militante da linha de frente ordenou.

Durante a tormenta, o desespero imperou nas nuvens e na superfície. Àqueles cujo ficaram o mais próximo de assassinar tanto Lotus quanto sua reputação, recuaram aos prantos para dentro da cidade. Alguns chegaram até mesmo a obrigar as viaturas a lhes concederem carona.

— Desgraçados! — Raoni rangeu os dentes. — Pelo jeito, Lotus nem deve ter chegado a pensar que seria alvo de toda essa galera… — sussurrou.

Ao lado do Lotus, relâmpagos despencavam na cidade, o castigo do céu sombrio. O jovem estava acompanhado de uma chuva de trovões, enquanto se aproximava do asfalto esburacado em meio ao temor.

Das ruas da cidade, os estrondos dos raios afundavam cada tímpano vodariano no mais puro sofrimento; as luzes expelidas ofuscavam as visões dos motoristas, tornando o lugar impossível para dirigir. Novamente, o caos reinou em La Esperanza.

— Eai, Vital… o que ‘cê vai fazer ‘pra se safar dessa? — perguntou Raoni.

Os indivíduos da comunidade Doom Stormbolt trancafiaram-se dentro de suas casas, imaginando que o desastre fosse a punição do Vital devido à uma péssima recepção, embora elas nunca fossem o alvo principal dos relâmpagos. Clamores por misericórdia ecoavam dentro das paredes de madeira, a lágrima de um pai caindo sobre a têmpora do filho.

Os escolhidos que receberam a descarga elétrica foram os pára-raios presentes nos prédios, alimentando-se com a energia luminosa. Para quem via de fora, a cena se baseava em uma guerra dos céus contra a superfície, com os prédios a servir de escudo para não ter a cidade devastada.

Aaaaaargh!

Lotus nunca cessou os brados escaldantes, suas cordas vocais não suportariam mais. Sua garganta queimava como se estivesse a tomar álcool puro, porém isso tornara-se irrelevante comparado à certeza de ser esmagado. “Eu não medi as consequências de me tornar um Vital… talvez, esse seja o castigo merecido de alguém que queria poder de imediato! A ilusão de ser poderoso me fez acreditar que eu sou a própria tempestade…”, remoeu enquanto aceitava o destino.

Ele estava encharcado, banhado pela tempestade que o mesmo chamou. A cidade ficava cada vez maior; edifícios se tornaram uma enorme armadilha de espinhos. Ele até tentou amenizar a queda lançando rajadas de vento contrárias, mas não conseguiu. Nessa altura, nem mesmo a técnica da piscina o salvaria.

“Quanto mais alto a subida, mais doloroso o tombo.”, pensou.

Ele já sentia o calor da cidade pairando na barriga, apenas alguns segundos lhe foram disponibilizados para dizer as últimas palavras. “Não irei morrer gritando, usarei esse pouco tempo que tenho ‘pra apreciar essa vista de cima. Quero me acostumar com a vista do céu…”, ele cessou os berros e derrubou lágrimas, que misturaram-se com as gotas da tormenta.

— Ainda dá tempo de eu salvá-lo — disse Raoni e sacou as Paladinas Sedentas.

— Não! — O sacerdote Kaluanã o impediu, colocando a mão no seu ombro.

— Kaluanã...? — Raoni olhou de soslaio.

— São nesses momentos que aprendemos a sobreviver — falou. — Ele escolheu ser o profeta de Amochiom, então ele tem que entender do que é capaz.

— Ele não vai conseguir sobreviver a uma queda dessas, sacerdote! A Voquinity irá capturá-lo assim que cair!

— E desde quando você se importa com os profetas de Amochiom, seu traidor? — afrontou Kaluanã. — Nunca foi fiel aos desejos do seu pai, e agora quer que a escolha de sucessor da Pirâmide Vital da Tempestade valha a pena?! Você não vai salvá-lo! — Ele bateu o mastro no chão, criando uma cúpula de vendavais cortantes, seu método de encarceramento quase que perfeito.

— Você irá sucumbir no próprio ódio, Kaluanã! — praguejou Raoni. — Desfaça essa cúpula!

O temporizador da morte estava quase terminando para Lotus, tics tacs reverberavam pelo seu cérebro conturbado. Durante os segundos restantes, o jovem notou que os trovões alvejavam apenas os terraços dos prédios, sobrecarregando os para-raios.

— Espera… — Ele semicerrou os olhos.

Flashbacks de momentos atrás passaram como um filme em suas lembranças, e, abruptamente, Lotus conseguiu ver um resquício de luz no fim do túnel.

— É isso! A minha única chance! — firmou, com a voz rouca.

Correndo contra o tempo, sua única alternativa era apostar em mais um improviso. Da mesma forma que ele se tornou um trovão, ele tinha que se tornar novamente.

— Que Amochiom me proteja… — suplicou.

De repente, seu coração foi envolvido com a mais pura energia elétrica, os raios da Pirâmide Vital da Tempestade. Ela passeou por suas veias, consumindo o prana que por elas circulava. Em um piscar de olhos, a presença do jovem nos céus se tornou aparente igual a uma estrela.

— O que ele está fazendo? — indagou Kaluanã.

Raoni também apreciou gotículas de esperança, abrindo um sorriso determinado.

— Sobrevivendo — replicou.

Os olhos do bombado se esbranquizaram, seu corpo brilhava como um holofote; o físico de plasma beirando o solo. Ao encontrar o para-raio mais próximo, ele colocou toda sua vida no planejamento abrupto.

— É tudo ou nada! — Lotus mirou no topo do edifício, com a mão aberta.

KABOOM!

Lotus sobrevoou a cidade na velocidade da luz, semelhante a um disparo de canhão elétrico. Seu trajeto rasgou o ar com a alta temperatura da eletricidade, emitindo um estrondo que vibrou por toda a região.

— O que ele fez?! — Kaluanã arqueou as sobrancelhas.

— ‘Pra onde ele foi?! — perguntou Raoni, ainda preso.

Em instantes, Lotus atingiu um para-raio e surgiu ao lado dele, dispersando toda energia que acumulou para sobreviver. Entretanto, seu escape da morte não foi tão suave quanto imaginou…

No momento em que surgiu no prédio, ele foi ejetado pela inércia do seu trajeto, caindo de uma altura considerável no terraço. Remexeu tanto os braços que sentiu seu osso fisgar, porém mesmo sob desespero ele inspirou fundo e expirou rapidamente.

— Me proteja, Heart Discharge!

Com um grunhido de dor, Lotus afundou o ombro e rachou levemente o chão, sua força e resistência elevadas não eram brincadeira. Rolou sem parar, queimando a pele negra com ralados abrasantes, esses que marcariam para sempre sua alma resiliente. O mundo passou a girar ao seu redor.

A segurança ainda não estava garantida, Lotus girou até a beira do terraço, como uma roda de caminhão. A mureta que o separava do precipício seria sua égide contra uma segunda queda. Todavia, ela não estava preparada para a colisão iminente…

Abruptamente, Lotus choca contra a mureta e uma dor descomunal explode em suas costas, rompendo a barreira de concreto. Seus resíduos desabaram até a avenida mais próxima, esmagando os veículos ali estacionados. Embora obrigatoriamente, Lotus cessou o deslocamento e ficou com o pé na cova.

— Fodeu! — Ele se segurava por sua vida.

A um passo de ir para o reino dos mortos, Lotus Sutol apoiou-se com uma única mão da quina. Partículas de concreto serravam sua palma com calos, mas a vontade de sobreviver deixava a dor no chinelo.

— Caramba!!! — Ao fitar abaixo, seu nervosismo elevou-se drasticamente.

Seus dedos soltavam aos poucos, o braço estava adormecendo. Quando menos esperou, sentiu a pressão do Heart Discharge englobar seu coração, o ar foi sendo perdido e a visão ficando turva.

— Agora não… agora não… — Ele estava apagando.

Sua mão ficou frouxa, prestes a soltar. Suportar tal sofrimento era uma tarefa árdua, quase impossível. Quase.

— Eu não vou ser derrubado!

Com o restante de sua força, Lotus jogou seu outro braço para cima e agarrou o chão do terraço, dividindo o esforço com o outro braço. Em meio aos uivos de esgotamento corporal e a agonia nas mãos, o jovem se reergueu perante o perigo até os braços ficarem eretos.

— É minha chance!

Projetou seu tronco para frente e alçou as pernas, com um descuido ao bater o joelho no concreto. Fechou as duas mãos e, com sucesso, rastejou até o corpo inteiro ficar seguro.

Ele estava ofegante de tão exausto ao enfrentar morte, seu coração não suportariam mais esforço. Revirou-se para olhar ao céu, as nuvens negras que uma vez tocou.

— Não acredito… — gaguejou Lotus.

O desespero foi tanto que suas cognições não tinham espaço para o alívio, ainda não tinha compreendido tudo o que viveu. Contudo, um brado estava preso na sua garganta, aquele que o recompensaria por toda a vontade de viver.

— Yeah!!! — O timbre ressoou um grave imponente. — Eu consegui!!! 

 








 




 



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