Trovão Infinito Brasileira

Autor(a): Halk


Volume 1

Capítulo 6: Nada Forçado É Bom

Abro os olhos e sou cegado por uma luz forte na minha cara. Mesmo um pouco zonzo consigo me arrastar até a beirada da cama e ficar sentado. A porrada daquela garota me pegou de jeito, não pensava que seria tão forte assim.

Parando para notar, minhas roupas estão diferentes. Estou usando uma calça preta e uma camisa também preta.

— Finalmente acordou, Kaike?

Olho para o lado e vejo que uma mulher se aproxima, mas para de se aproximar assim que chega no meio da sala. A luz do centro destaca ela. Essa daí sabe fazer pose.

Sua pele é quase tão escura quanto suas roupas. Em seu peito tem uma patente de cinco estrelas e um "S" gigantesco. Seus cabelos, também negros, e chegam até a parte de trás de seus joelhos. Além de seu olhar de autoridade, o que me chama a atenção é a marca de uma meia-lua em sua testa.

— Vieram me interrogar de novo? — Desvio o olhar por um segundo de modo a procurar algo para me defender caso ela tente algo. — Já disse que sou inocente. Eu só quero ir para casa.

— Acho que no fundo todos nós queremos voltar para o conforto, nossas bolhas seguras. Mas se todos voltassem, não haveria ninguém para fazer progresso.

Então ela quer jogar com papos reflexivos… Não sou muito bom com isso, tudo que sei a respeito de filosofia é aquilo que ouvia do meu pai. Ao longo dos anos, aprendi que quanto mais abstrato e confuso for as suas falas, mais inteligente ela parecerá.

— É isso que você acha? — Levanto dá cama, menos tonto e me aproximo lentamente do centro da sala, olhando de um lado a outro afim de procurar por armadilhas. — Meu pai costumava dizer: “o lar é onde nossas histórias são escritas”.

Ela sorri. É claro que sorri, ela entendeu o que meu pai queria dizer. Embora a minha habilidade em filosofar não passe de pura enrolação, meu pai tinha o dom de falar coisas inteligentes de verdade.

— Seu pai tem razão. Eu e muitas outras pessoas perderam o seu lar, as suas histórias por conta de um inimigo em comum. Essas pessoas tiveram de fazer novas histórias, em novos lugares. Lugares como esse. — Ela aponta para os lados.

Aproveito a ação para observar o lugar sem muita cautela. Tem outras macas, porém todas estão vazias. Talvez eu seja o único que tenha ficado, ou talvez eu seja o próximo a participar de algum experimento bizarro.

— E quem é esse inimigo comum, senhora…?

— Pode me chamar de Comandante Negra — diz, fazendo uma breve pausa. — E respondendo a sua pergunta, nossos inimigos sempre foram aqueles que queiram desestabilizar a ordem do nosso mundo, do nosso continente. Depois que o Rei morreu, muitos quiseram tomar o trono para si por meio de força, e isso acontece até hoje.

— Eu não sabia disso — falo para ela.

— Não tinha como você saber. Apenas os de Classe S, a classe mais elevada e secreta de todas, detêm essa informação. Nós somos os responsáveis para manter a vida das pessoas comuns, Kaike, em paz.

Sei que ela está falando a respeito de possíveis ameaças ao nosso continente, algum mal muito grande que poderia colocar em risco a vida de inumeras pessoas. Entretanto, não posso deixar de sentir raiva dela.

Enquanto existe uma classe secreta, que cuida de assuntos secretos e continentais, existe pessoas simples vivendo em um ambiente precário e morrendo bem debaixo do nariz deles. De que adianta forcar em todo mundo e deixar os pequenos detalhes de lado?

— E atualmente? — continuo, tentando desfarçar a minha pequena frustração. — Ainda existem pessoas que querem se tornar Reis?

— Sim. E eles sempre inventam novas maneiras para tentar conseguir essa proeza. Atualmente, um grupo organizado de terroristas, chamados Quatro Ventos, tem fabricado um exército de Condutores para tentar derrubar o atual governo.

Engulo em seco. Não gostaria de ser determinado como Condutor, porém tenho poderes elétricos, logo, seguindo a lógica, eu sou um produto de terrorismo.

— Olha… Eu sou inocente… — digo, nervoso. — Não sei como consegui esses poderes direito… Aquele cara, o tal de Zero, tentou explicar que foi com um Esfera de Raios ou sei lá o que… E teve a explosão também, mas eu juro que tudo isso é um grande mal entendido.

— Se você é inocente, significa que há um culpado. — Ela fala como se estivesse realmente acreditando no que falo. Isso é bom, mas, em simultâneo, ruim, pois significa que tenho motivos para desconfiar dela. — O fato de você ter recebido esses poderes por acidente vai nos ajudar a identificar o verdadeiro culpado disso tudo. 

Faço uma careta.

— Como assim… “Ajudar”?

Ela dá um leve sorriso e começa a andar em volta de mim. Cada passo seu faz um barulho imponente. Essa mulher é assustadora. 

— A verdade, Kaike, é que o grupo Quatro Ventos tem atuado a muitos anos por debaixo dos panos e nunca conseguimos achar o cabeça por trás de todos os planos. 

Ela faz uma breve pausa, que me deixa nervoso o suficiente para querer que a conversa acabe logo. Antes que ela volte a falar e a concluir o tipo de “ajuda” que quer de mim, dou uma contraproposta:

— Então desejo boa sorte para vocês. Não vou servir de nada, podem me enviar para casa. Podem até tirar esses poderes de mim, se quiserem.

— Não há como tirar sem você morra.

Dessa vez eu fico gelado. E pensar que eles já poderiam ter me matado enquanto estava dormindo…

— Não sou um soldado, Comandante Negra — falo de maneira direta. — Sou apenas um entregador tentando ganhar a vida de forma honesta. Também não sou instruído na arte da guerra e sinceramente nem completei o ensino básico. Tudo que sei é com a experiência da vida, mesmo. Ou seja, nada de útil para a sua classe. Então será se podem cortar toda essa história de ajuda e me levar para casa?

— Se você demonstrar eficiente, poderá voltar para o seu lar. Esse será seu novo lar, Kaike. Vai fazer a sua história aqui.

— Esse lar está infectado com a história de vocês. Eu não quero fazer história aqui e nem participar da de vocês. Quero só voltar para o meu distrito, eles estão precisando de mim agora.

Negra fica de frente para mim, a alguns metros de distância, dessa vez com as mãos ao lado do corpo. 

— Você não pode voltar para casa sabendo de nossa existência.

A pouco tempo atrás eu não sabia existir uma classe S e certamente duvido que alguém conheça. Para me livrar deles, aposto que vou ter de passar pela maior burocracia que existe.

— Ah, olha, é só eu não contar para ninguém. Vocês não têm nenhum papel aí de confidencialidade? Meu irmão entende desses negócios, ele pode me ajudar…

— Eu sou a palavra final aqui, Kaike — sou interrompido. — E digo que não pode ir para casa. 

Dou mais um passo para trás.

— Então terei de ir embora a força?

— Se conseguir passar por mim, pode ir aonde quiser, Kaike.

Ela anda em minha direção em passos rápidos. Continuo indo para trás, até que bato na cama que anteriormente estava deitado. Daqui eu não passo. Vamos lá, Kaike. É só uma mulher alta, o que mais ela pode…

No último segundo consigo desviar de seu chute que veio de baixo para cima. Quando olho para a cama mais uma vez, vejo que ela foi partida em duas. Que porra foi essa?

Olho rapidamente para as pernas da mulher e reparo haver lâminas em suas pernas. Isso explica a altura dela.

Um homem com um tapa-olho, um braço e duas pernas robóticas e agora uma mulher com pernas de tesoura. O que estava esperando?

Vendo que a briga não era uma brincadeira, ou um teste, corro para o outro lado da sala afim de pegar algum objeto para me defender. Não é justo que eu fique sem nenhuma arma.

Repentinamente ela pousa na minha frente, como se tivesse pulado todo o caminho até aqui. Recuo um pouco. Mas que medo é esse? Ela só tem pernas que cortam, nada demais.

Firmo-me no chão com os pés e dou um soco em direção ao seu rosto. Ela consegue desviar, indo para trás. Pulo para frente e dou outro golpe, agora no abdômen dela. Ela se desvia com dificuldade.

Olho rapidamente para o lado e vejo um banquinho de metal. Pego ele e uso para acertá-la. Dessa vez ela não desvia, apenas segura o banco e o empurra contra o meu rosto.

Sou jogado para trás. Sinto gosto de sangue na boca. Sem tempo para refletir sobre o que aconteceu, desvio para o lado para evitar um novo chute, mas ela me acerta.

Caio e minhas costas se arrastam pelo chão polido. Minha cabeça doí muito, então não posso pensar direito. Queria entender como não morri decapitado. Ela quer me matar ou só brincar comigo?

— Tem muita habilidade — diz ela, parada a alguns metros.

Levanto-me passando a mão por dentro dos meus lábios. 

— Às vezes a gente cansa de ser assaltado. Sabe como é, né?

Ela cerra os olhos e contrai os lábios. Depois volta a avançar para cima de mim. Adoto uma nova estratégia e jogo o banquinho, que ainda está comigo, bem na cabeça dela.

Não sei se acertou, acabo por correr na direção de um dos cantos da sala. Aqui deve ter algo que eu possa usar contra ela. Bingo, achei um daqueles cabides de hospital que fica ao lado da cama.

Puxo ele e já me viro, pronto para usar ele contra a mulher. Negra está parada no meio da sala. Pelo visto eu que terei de ir até ela.

Corro em sua direção e assim que me aproximo, miro em acertar os seus pés. Ela pula e desvia, mas era isso que eu queria. Giro o meu corpo inteiro, aproveitando o embalo do meu golpe, e lhe dou uma cabidada ainda em pleno ar.

Negra é jogada para o lado, coloca as mãos no chão e pousa de joelhos no chão. Ela logo se levanta, eu diria que até com certa classe. 

— Não me faça machucar mais ainda a senhora.

Ela para de limpar suas unhas e me encara com desaprovação. No momento em que faz isso, o cabide que eu seguro se parte bem no meio em um corte preciso. 

Merda, essa mulher já podia ter me cortado faz horas. 

— Ainda planeja continuar tentando? — Ela pergunta.

— Por que vocês me querem aqui? Eu só quero ir para casa. Como vou ajudar aqui?

— Nós temos muitos recrutas, ansioso para irem atrás de Condutores usados por terroristas e fazer eles pagarem por tudo de errado que fizeram. Mas nunca tivemos um Condutor aqui dentro, trabalhando do nosso lado. Você pode ajudar nos treinamentos e também pode ajudar com a moral deles. Se virem que existe um Condutor entre nós, vão ter mais esperanças e menos medo.

— Mas eu não quero ajudar, tá bom? Eu não quero. Só quero voltar para a minha casa, então, por favor, sai do meu caminho.

Mais uma vez, Negra espreme os lábios. Ela põe as mãos atrás do corpo e me olha de cima a baixo. Parece mais assustadora agora.

— Kaike, façamos um acordo. Se ficar conosco, de bom grado, todo o seu distrito receberá uma verba mensal para ajudar nos estragos causados pela destruição da explosão.

Fecho a cara. Isso não é um acordo, é uma chantagem. E pior, é uma das boas. De alguma forma descobriram que o meu fraco é por ajudar pessoas. Para terem esse tipo de informação, imagino qual é a pesquisa que tenham feito.

— Está dizendo que todas as famílias vão receber dinheiro suficiente para voltarem a ter uma vida normal? — pergunto.

— Não apenas a famílias, a sua cidade inteira. Todas as famílias afetadas receberam uma verba com base em suas classes. Quanto menor for a classe, mais dinheiro vão receber.

— E se eu não aceitar? — Fazer essa pergunta é mais difícil do que pensei, mas ainda assim faço.

Negra novamente franse os lábios e pela primeira vez a vejo quase perder a paciência.

— Estou lhe oferecendo um acordo, Kaike. Nos ajude de bom grado e sua cidade será ajudada, ou recuse a oferta e seu corpo será tratado como objeto de estudo biologia.

A parte do estudo me deixa preocupado. Não queria aceitar isso, não parece certo, já que não é o que quero. Porém se meu Distrito for beneficiado com a minha estadia aqui, então não tenho motivo para recusar.

— Tenho sua palavra… Comandante? — Estendo a mão.

Ela encara a minha mão por alguns segundos e aos poucos a sua expressão frusteada vai se tornando mais normal. Então vai até um canto da sala e uma porta escondida se abre e de lá ela desaparece. Eu vou atrás dela.

Assim que passo pela porta, um guarda chega do meu lado e me dá várias roupas dobradas, todas pretas. Sobre as roupas está o meu taco de metal. O guarda diz:

— Você tem direito a banho, comida e roupa limpa e também um salário mensal com bonificação por missão concluída. Qualquer descumprimento com as regras ou diretrizes impostas serão passiveis de punição, recruta.

Dou um enorme sorriso quando ouço a “salário mensal” e minha cara provavelmente se contorceu de um jeito medonho quando ouvi a palavra “bonificação” de tão grande que deveria estar meu sorriso.

Quando olho para o lado, vejo que Negra sumira. E agora tudo que me resta é o guarda, essas roupas, meu bastão e um caminho gigantesco e branco com diversas portas.

O guarda me diz, com palavras bem frias, para onde eu tenho de ir. Ele não me acompanha.

Viro alguns corredores e algumas esquinas até achar uma porta. Finalmente terei paz e um pouco de privacidade para pensar sobre tudo que aconteceu. Na frente da porta um digitalizador analisa meu rosto. Assim que termina a porta se abre.

Entro no dormitório e a primeira coisa que vejo é que minha paz e privacidade não acontecerá. 

Existem vários outros recrutas aqui dentro, da minha idade ou um pouco mais novos. Não faço ideia de como vieram parar nesse lugar, mas com toda certeza não vieram com os mesmos motivos que eu.

Ando no meio do labirinto de beliches a procura de uma cama desocupada. Acredito que tem mais de 40 pessoas aqui. 

Pelo que entendi não tem um lugar onde as meninas ficam separados dos meninos. Isso é ruim, não quero acordar de noite com sons rítmicos vindo do meu lado.

Existem algumas camas vazias, porém são todas as de baixo. Queria ficar em cima. Mas não demora muito para achar uma do jeito que quero. Aproximo-me do rapaz que parece estar empenhado em tentar ver algo com seus binóculos.

— E aí, amigo. Posso ficar com essa cama?

Ele retira os binóculos da cara com um susto, como se tivesse sido pego no flagra. Tento reparar no que ele estava olhando e percebo, sem ver muitos detalhes, que algumas garotas estão se trocando no meio de todo mundo.

Curioso não ter uma parede de garotos ao redor delas.

— Ahm… Ah… Claro! Claro, ela não tá ocupada mesmo. Não é como se eu fosse esperar por alguém, tipo, não é como se alguém quisesse ficar aqui. Ahm.. Eu me chamo Ash. E você?

Ele me estende a mão. Seus dedos são rosados e sua pele muito branca, até demais, dando um aspecto doente. A única coisa que realmente chama a atenção são seus cabelos loiros, muito claros.

— Kaike — digo, enquanto aperto a mão dele. Depois coloco minhas coisas em cima da cama, na parte de cima. 

— Taco maneiro. Quer dizer… To falando do seu bastão de metal, tipo…

— Eu entendi. E obrigado, é presente do meu pai. — Olhando bem para o seu rosto, por trás dos óculos, reparo que seus olhos são amarelados. — Vem cá, você é de onde?

— Eu? Ah, eu sou do Distrito 7…

Não presto atenção no número porque alguém segura meu braço e me puxa com certa violência. Assim que me viro, dou de cara com aquela garota bonita de cabelos brancos e olhos vermelhos de mais cedo.

Ela está zangada, indignada. Por que será que ela só me olha assim?

Junto do olhar dela, existem diversos outros olhares nos observando. Todos estão em silêncio, esperando o momento em que alguém falará algo.

— Pode fazer o favor de soltar meu braço? — pergunto.

Ela não solta. Continua zangada, indignada. E então diz alto o suficiente para alguns ouvirem, e outros repassarem a mensagem:

— O que um Condutor faz aqui?

Quando a mensagem chega no ouvido de todos, o silêncio vai embora e o ambiente é tomado por murmúrios e cochichos. 

Estou vendo que demorarei para me acostumar.


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