Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.

Revisão: Dante


Volume 1

Capítulo 76: Ébano

Após guardar os presentes em seu quarto, tomando um cuidado redobrado na hora de armazenar o Olho-d’água, Xiao Shui voltou correndo para o pátio, onde seu pai e o irmão estavam esperando. Fez questão de demonstrar ao irmão seu avanço no cultivo e o aprimoramento da Lâmina Aquática das Nove Fases. Além do mais, pretendia aproveitar a oportunidade para revelar aos dois o novo artifício que havia aprendido com Xiao Ning.

A despeito de seu cansaço devido a longa viagem que tinha enfrentado apenas para chegar a tempo do Festival da Geração do Caos, Xiao Chan pareceu empolgado para assistir à apresentação da irmã, incentivando-a a dar tudo de si, pois estaria observando de perto.

O que Xiao Shui mostrou em seguida, surpreendeu a ambos. Antes de mais nada, sua força tinha atingido um nível absurdo, algo que não parecia estar tão distante do poder de um Despertado. E isso chocou em especial o irmão, o qual não teve a oportunidade de assistir o Evento de Seleção. Contudo, o mais espantoso ocorreu quando ela afirmou ter aprendido a usar o Sentido Espiritual.

No começo, nenhum dos dois pareceu acreditar, embora não tivessem expressado suas dúvidas. Xiao Chang tentou consolar a filha, dizendo que um dia ela atingiria o nível necessário para executar tal habilidade e quando conseguisse, seria excepcional no uso do Sentido Espiritual. Mas, Shui, querendo provar estar dizendo a verdade, resolveu fazer uma demonstração.

Com os olhos fechados, pediu para os dois andarem pelo pátio, mas não se afastarem muito. Ainda não conseguia dizer o nível de alguém apenas examinando sua Energia Espiritual, mas podia senti-la e apontar uma direção. Isso era fácil.

Conforme foi pedido, os dois andaram de um lado para o outro, mudando suas posições iniciais, ao passo em que tomavam cuidado para não fazer barulhos e revelar a nova direção tomada. Apesar de terem suas incertezas, não queriam desapontar Xiao Shui, dado que ela parecia tão empolgada e confiante com suas habilidades.

E para a surpresa deste e daquele, ela conseguiu apontar suas localizações com um nível de precisão impressionante. E em certo momento, arriscou-se a ir além e indicou quem estava onde, bem como quando se moviam de um lugar para o outro.

Seu Sentido Espiritual não estava tão bom de modo que conseguia distinguir as pessoas apenas pela Energia ― sequer sabia se isso era possível. Entretanto, devido a expressiva diferença de poder entre seu pai e seu irmão, não era difícil dizer quem era cada um.

Após estarem convencidos de que ela de fato tinha despertado o Sentido Espiritual, os dois foram logo dando suas mais sinceras congratulações, e para a felicidade de Shui, pareceram bastante orgulhosos de sua conquista. Ela ficou genuinamente contente ao receber todos os tipos de elogios e quando foi inquirida sobre como aprendeu a usar tal habilidade em um momento tão precoce de seu cultivo, respondeu sem esconder nada.

Falou que foi tudo graças a Xiao Ning, pois tinha sido ele quem a ensinou sobre o Sentido Espiritual. contou também de suas idas às Arenas de Treinamento e Combate para treinar em segredo. Por fim, seu  pai se limitou a um único comentário:

― O que mais esse garoto sabe e está escondendo? ― A cada dia Xiao Ning aparecia com um truque diferente. O mero fato de ele ser um Alquimista capaz de criar Pílulas Espirituais já era assombroso o suficiente para fazer toda a balança de poder na Cidade da Fronteira do Caos mudar. E como se isso não bastasse, há pouco havia anunciado que tentaria avançar de estágio, alcançando assim, a posição de Grã-alquimista; uma realização que poderia afetar todo o Império Dourado.

Apesar de ter sérias dúvidas quanto a sua capacidade de elevar as Chamas da Essência em um espaço de tempo tão curto, saber que ele é capaz de usar o Sentido Espiritual tão bem a ponto de poder ensinar para outra pessoa, já seria motivo o bastante para enaltecê-lo como um talento inigualável. Muito embora, devido ao relato de sua filha, acreditasse existir algo mais por trás de todos esses feitos repentinos.

A cada instante, a teoria do Patriarca, de que o afilhado teria encontrado um “tesouro divino” na Montanha Ancestral de Jade, parecia fazer mais sentido e se tornar incontestável. Afinal, era impossível para uma criança que passou toda sua vida vadiando, sem assumir compromisso com o cultivo, despertar tantos talentos em tão pouco tempo.

Depois de Xiao Shui exibir suas habilidades, ficou decidido que haveria um banquete no jantar em comemoração ao retorno de Xiao Chan. Após três anos longe de casa, a família queria celebrar o seu retorno em segurança. As empregadas, sob a liderança da Empregada-chefe, prepararam uma generosa variedade de pratos deliciosos.

O banquete se estendeu ao longo da noite, terminando apenas quando faltavam poucas horas para o amanhecer. A família de três era bastante unida e não faltou assunto para conversar. Xiao Chan contou de suas aventuras ao longo desses três anos longe, algumas delas provocaram caretas em seu pai, que reforçou o sermão sobre se cuidar.

Ao que parece, ele havia viajado por quase todos os lugares do império, desde regiões perigosas a vilas remotas. Escalou montanhas junto a grupos de expedição; navegou pelo mar; explorou ruínas da Civilização Antiga, entre muitas outras coisas. No final, passou mais tempo viajando do que na própria seita Waidanshu. Mesmo assim, sempre recebeu apoio da monstruosa entidade, tendo acesso a Pílulas de Cultivação Espiritual e Ervas raras.

Xiao Ning não participou da recepção. Ficou tão entretido com o novo achado que sequer praticou Alquimia naquele dia. Sem perder tempo, deu início a uma breve pesquisa, a qual não pôde se tornar ampla devido à escassez de Iscas-de-bobo. Mas foi o suficiente para formular hipóteses e até mesmo nortear um futuro estudo mais extenso.

É óbvio dizer, mas ele também, aproveitando da recente disposição, dedicou algumas horas em averiguar certas propriedades da Besta de Áster. E embora não tenha obtido resultados expressivos em nenhum dos campos, não se deixou abalar e começou a planejar uma visita ao Pavilhão dos Aprendizes, acreditando que com a ajuda dos livros e pergaminhos lá guardados poderia encontrar algo satisfatório e revelador.

Como era de se esperar, mesmo não tendo a execução de Alquimia, Camila esteve presente o tempo todo. Após dar suas saudações ao filho do Ancião Chang, juntou-se ao seu novo chefe durante toda a dissecação ― pois sim, ele estava descascando, abrindo, esfolando as Iscas-de-bobo e a Besta de Áster; submetendo-as a tantos testes quanto era possível; chegou, inclusive, a queimá-las usando as Chamas da Essência, as quais já haviam começado a apresentar sinais de evolução.

Camila já tinha se surpreendido quando, depois de consumir metade do Suco de Bútu, as Chamas da Essência começaram a se transformar. E agora, que restava apenas um Frasco de Jade e meio, a peculiar habilidade havia mudado quase completamente de forma.

A despeito das diversas histórias ouvidas quando criança através de seu pai, ela não conseguiu conter a emoção e fascínio ao testemunhar as primeiras faíscas das Chamas mudando de cor. Naquela noite (no caso, tarde, pois tinha trocado de horário para conseguir acompanhar as Composições Alquímicas), não conseguiu dormir, movida pelas emoções conflitantes e excitantes provocadas pela transição.

E apesar de já ter à disposição os efeitos ― mesmo minimizados ― do novo estágio das Chamas da Essência, Xiao Ning ainda se dedicou a expor as Iscas-de-bobo, bem como a Besta de Áster, a cada um dos níveis do fogo, queimando os grãos e a Erva hora com um lume alaranjado, hora com um carmesim. Tal atitude intrigou Camila, que foi logo dando início a uma série de perguntas.

Todavia, a noite de Xiao Ning não se resumiu apenas a estudar os grãos torrados. Em determinado momento, uma notícia que aguardava há algum tempo, bateu à porta da câmara.

Quem chegou foi um mensageiro enviado pela 2ª Anciã Ah-kum. Ele trazia um objeto cilíndrico e comprido em sua mão, embrulhado em um pano. Ao ser recebido por Camila, insistiu em ver Xiao Ning. O item precisava ser entregue para ele e ninguém mais. Quando enfiem foi atendido por aquele que desejava, não tardou ao anunciar:

― A estimada Anciã Ah-kum pediu para lhe entregar esta lança de Ébano Cristalizado. Ela pediu desculpas pelo atraso. Queria encontrar uma arma decente, mas foi um desafio maior do que esperava. ― exprimiu cada palavra através de um tom cordial. Em seguida, curvou a cabeça, entregando o embrulho, e partiu.

Xiao Ning estava esperando por aquilo fazia um bom tempo. Se ele ia participar deste maldito Festival, queria ao menos estar munido de uma arma. E como a 2ª Anciã havia prometido dar-lhe uma lança, aguardou pacientemente. Tinha grandes esperanças de receber um artefato poderoso. Mesmo não sendo uma arma de nível Despertada, se aguentasse algumas colisões já seria o bastante.

A lança que recebeu possuía por volta de dois metros e quinze centímetros de comprimento. O cabo de madeira, o qual dispunha de bons um metro e oitenta, era dotado de um negror profundo, uma cor ainda mais intensa do que um pedaço de carvão, mas em contra partida, parecia ter sido revestido com alguma substância lustrosa, dando-o um aspecto opalescente. Ao longo da madeira, viam-se duas listras sinuosas, de branco puro, as quais se opunham ao matiz original, indo de uma ponta a outra, porém, ainda assim, atribuindo-lhe uma fachada harmoniosa.

Já a “lança” em si, aquilo que caracteriza sua alcunha, o ferro perfurante, abrangia um total de trinta e cinco centímetros, dos quais, dez eram dedicados a espiga ― muito bem fixada, vale ressaltar ―, embutida na haste preta. A lâmina, com seus vinte e cinco centímetros, era marcada por dois gumes afiados; extremamente pontiaguda e alongada, de modo que seu corpo passava a impressão de ser mais fino quando comparado ao cabo.

Presa entre a espiga e o cabo, encontrava-se o que lembrava uma crina de cavalo, porém da cor dourada. Era uma decoração peculiar, mas dava à arma uma aparência distinta.

O aspecto geral da lança, assemelhava-se muito mais a um dardo do que o de uma lança propriamente dita ― ao menos, aquelas que Xiao Ning já estava habituado. Embora a composição parecesse a mesma, era uma arma bastante diferente daquela feita de Sequoia Cinzenta, a qual encontrou no Pavilhão dos Aprendizes e foi quebrada pelos Gorilas Quebradores de Ossos.

Xiao Ning girou sua nova aquisição, deixando-a deslizar entre os dedos, e logo sentiu uma estranheza na movimentação, chegando a quase deixá-la cair. Estava acostumado a um tipo de arma cuja ponta se fazia mais pesada do que o cabo, como era o caso da alabarda.

Aquela lança em particular, parecia um tipo de arma específica de alguma arte marcial, a qual ele não possuía prática nenhuma. Qualidade à parte, ele teria dificuldade em se acostumar a ela. E falando de qualidade, como já era de se esperar, seu nível estava no de um Artefato Terreno.

Como já foi dito, armas Terrenas não são muito diferentes das ferramentas usadas por mortais. Tirando o material usado para construí-las, no resto são essencialmente a mesma coisa. Não possuem a habilidade de criar efeitos assombrosos, emitir ou transformar a Energia Espiritual em técnicas poderosas e mortíferas, como era o caso das Despertadas.

Uma espada Terrena cortava e nada mais. Uma lança, estocava. Flechas precisavam ser guiadas unicamente pela mira do arqueiro. Maças não criavam terremotos.

É por esse motivo que cultivadores no Reino Espirituoso e acima, muitas vezes, preferem não usar uma arma, pois algo de qualidade Terrena acabaria apenas por prejudicá-los em batalha; e isso era verdade mesmo fora do Continente Central. Um Artefato de nível Terreno mal conseguia suportar o impacto de um cultivador no Reino Virtuoso de camada elevada, independente do material usado para construí-lo. E ao enfrentar praticantes em estágios superiores, isso poderia se tornar uma desvantagem.

Contudo, vale ressaltar, isso era verdade apenas para aqueles que buscavam na arma uma maneira de matar seu oponente com mais facilidade. Porém, existem certos praticantes cuja dedicação a um determinado estilo de combate transformam seus armamentos em uma extensão do próprio corpo. Nesses casos, a espada, escudo, lança, passa a ser um item perigoso, mesmo sem o auxílio de maiores poderes.

Infelizmente, Xiao Ning não se enquadrava nesse grupo. Embora possuísse uma maestria impecável quando na posse de uma alabarda, ele a usava no intuito de maximizar seus poderes. Nunca se dedicou a um estilo em específico. O que aprendeu, descobriu sozinho, através de inúmeras batalhas de vida e morte, ou replicou depois de assistir o movimento de alguém mais habilidoso.

Portanto, estando na posse de um item que tinha pouca familiaridade, tornava todo o manejo um tanto mais complicado. Porém, isso era algo que poderia ser corrigido com um breve treino. Afinal, possuía ao seu lado a vantagem de uma longa experiência, de mais de cinco mil anos.

Seja como for, a despeito da leveza e flexibilidade da lança presenteada pela 2ª Anciã, o Artefato parecia ter sido construído por meio de materiais excelentes. Sob um olhar mais atento, Xiao Ning podia afirmar que o item seria capaz de resistir até mesmo a confrontos contra cultivadores do Reino Virtuoso de baixa Camada, desde que não se esperasse muito de sua capacidade de defesa.

Quando o dia seguinte chegou, ele se dedicou a praticar com a lança por algumas horas. Não faltava muito para o Festival e com tão pouco tempo seria impossível se adaptar à nova arma, mas já seria bom o suficiente poder manejá-la sem derrubá-la durante uma partida ― mesmo cogitando a ideia de se render logo na primeira disputa.

Quanto as Iscas-de-bobo, haviam sobrado cinco, as quais planejava usar em Bestas Demoníacas quando tivesse a oportunidade, no intuito de ver seu efeito em prática. O restante acabou por ter um fim precoce, depois de serem queimadas, esfoladas, cortadas e esmagadas ― o mesmo havia acontecido com a Besta de Áster, a qual restara um pequeno pedaço e nada mais. Propenso em descobrir todas as suas particularidades, ele chegou a ingerir um dos grãos, visando confirmar a hipótese de não afetarem humanos. Um método pouco ortodoxo e nada recomendável, porém, eficiente.

Xiao Shui, por outro lado, contradizendo a rotina seguida até então, foi para a cidade acompanhada do irmão. Fazia um bom tempo que Xiao Chan não participava das festividades de fim de ano da Cidade da Fronteira do Caos, que insistiu em levar a irmã para um passeio. Também quis arrastar o pai junto, contudo, devido à constante necessidade de proteção à Ning, ele não pôde ir.

O 9º Ancião e Xiao Wu não arredavam um pé sequer para longe da casa, mantendo sempre o prodigioso Alquimista sob um olhar atento. Quando precisavam se afastar, avisava com antecedência, de modo a deixar outro Ancião responsável pela guarda.

E assim, o tão esperado dia do Festival da Geração do Caos chegou.

Em todo o Império Dourado, as comemorações em celebração às boas dádivas recebidas ao longo do ano eram festejadas no último mês do ano. Embora a essência fosse a mesma ― agradecer aos Deuses pelas conquistas, a boa colheita, as fortunas adquiridas, e deixar suas orações em agradecimento a todo o resto ―, cada região possuía sua própria maneira de celebrar, priorizando alguns eventos mais do que os outros.

Na região norte do império, por onde passa o grande Rio Marrom, local em que a plantação é abundante e a colheita farta, sendo um dos territórios mais prósperos de toda a nação; as aldeias beira-rio, bem como a faustosa Província dos Esplendores, dedicavam uma celebração especial à Floruê, Deus da terra fértil, do plantio, da colheita, do florescimento e dos campos.

No sul, nas aldeias costeiras, as pessoas iam durante a noite às margens das praias e soltavam barquinhos de madeira contendo oferendas, para serem carregados pelas ondas e chegar até Oceanuns, Deusa dos mares, marinheiros e dos pescadores.

Já na Cidade da Fronteira do Caos, o vigésimo primeiro dia do último mês era o mais importante para os moradores. Visando agradecer Protígilus, o Deus da proteção, da lealdade e da fortuna, um grande espetáculo era montado, com peças teatrais de combates históricos, desfiles de danças mitológicas e, o espetáculo final, uma batalha entre os jovens prodigiosos responsáveis por tomar as rédeas futuras da cidade e proteger seu povo.

O Festival da Geração do Caos tinha como objetivo mostrar aos residentes desse povoamento sitiado em uma região perigosa, que no futuro, os descendentes das quatro Famílias ainda seriam capazes de protegê-los.

Mas isso não era tudo, pois o Festival não era destinado apenas aos membros das Famílias. Cinco vagas eram reservadas para jovens talentosos que treinavam sob a tutela do Lorde da Cidade; o representante oficial da Cidade da Fronteira do Caos.

Para todos era uma grande exibição. As Famílias aproveitavam a oportunidade para demonstrar sua força através do brilho da nova geração, enquanto os residentes, Mortais em sua maioria, podiam deslumbrar de técnicas fantásticas, que pareciam vir de um mundo de sonhos.

O Festival da Geração do Caos havia chegado e as ruas da Fronteira do Caos se encheram. Movidos por desejos, ansiedade e empolgação, vinte e cinco jovens se preparavam mentalmente para as disputas que poderiam mudar suas vidas para sempre e que ocorreriam em breve.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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