Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 144: A carroça tombada

Duas garotas podiam ser vistas paradas na frente da câmara que ficava nos fundos da casa do tio Chang. Elas estavam assistindo com muita atenção às luzes estranhas que escapavam por baixo da porta e pelas duas janelas laterais, mesmo ainda sendo dia. Lampejos fortes eram emitidos, seguidos de barulhos característicos, idênticos a eletricidade correndo sobre uma superfície condutora.

Com seus peculiares olhos redondos e dotados de um verde quase translúcido, Camila encarava a entrada do recinto fixamente. Parecia bastante tentada a entrar. Sua curiosidade era tão grande que não se importaria em se agachar e espiar por baixo da fresta da porta.

― Isso é muito estranho! ― comentou ela com um ar enigmático.

― Como assim? ― perguntou Xiao Shui, intrigada.

Desde o atentado, as duas haviam ficado inesperadamente próximas. A filha do Ancião parou de enxergar na outra a empregada que atendia todas as suas ordens. Agora, a colega de vinte e um anos era alguém com quem dividia algo em comum: as duas trabalhavam para o mesmo esquisito.

― Uma vez ― a bela jovem de sardas no rosto e cabelo avermelhado começou a explicar suas preocupações ― ele se recusou a ir pegar a janta na cozinha, apesar do estômago estar rugindo feito uma fera. Tudo por causa da preguiça. Eu tive que ir pegar em seu lugar. Mas depois “daquele” dia, é como se ele tivesse virado outra pessoa. De manhã estuda na biblioteca do Pavilhão dos Aprendizes, à tarde treina até de noite e de madrugada compõe pílulas.

― É verdade. Ele mudou muito. ― Xiao Shui estava de pleno acordo com a colega. Pela primeira vez sentia que o preguiçoso estava se esforçando por algo. ― Na verdade, eu até estou um pouco preocupada. Sei que a técnica dele é especial, mas mesmo assim...

― É por que ele não está dormindo? ― Camila decidiu investigar um pouco mais.

― Isso mesmo. ― concordou Shui, meneando a cabeça. ― Depois do ataque, ele ajudou a cuidar dos feridos e então acabou com o estoque de bebidas do meu pai, que ficou uma fera quando descobriu ― enfatizou. ― Depois disso, o Ning dormiu por quatro dias seguidos e, depois que acordou, nunca mais dormiu. Faz duas semanas que aquele idiota fica correndo de um lado para o outro. Praticar é bom, no entanto...

― Por que o Xiao Ning está fazendo isso?

― Maluquice da cabeça dele! ― disse Shui, balançando seu cabelo azul e bufando algumas vezes. ― Aquele idiota falou que esse lugar é mais perigoso do que pensou e precisa ficar mais forte para poder dormir em paz. Eu gosto da iniciativa, mas acho os motivos errados.

― Tá parecendo a mãe dele ― brincou Camila, colocando a mão na frente da boca. Mas assim que percebeu o olhar severo da outra, mudou de assunto. ― Ele te falou o que está fazendo lá dentro?

― “Praticando umas técnicas incríveis!”; foi o que me disse. Mas ainda não vi.

As duas continuaram conversando, especulando a respeito dos lampejos azuis. E a verdade é que ainda poderiam ter continuado debatendo o assunto por longos minutos, porém algo as impediu.

Mas para explicar, é preciso voltar um pouco no tempo.

Como se tornou um costume nos últimos dias, o Patriarca e o 9º Ancião estavam no salão de reuniões, conversando sobre assuntos aleatórios e de tempos em tempos citando uma pauta importante. O desgaste de Xiao Chang e o período de recuperação pós-cirurgia o impedia de exercer atividades mais vigorosas, mesmo tendo ao seu lado algumas das receitas feitas pelo afilhado.

Enlai, apesar de já ter disposição o suficiente para travar outra batalha, decidiu fazer companhia para o aliado. No momento, muitas pessoas já estavam cuidando de questões importantes, então não havia a necessidade de sair por aí arrumando um trabalho para fazer. Além do mais, sendo o líder de toda a Família, era fundamental que permanecesse em um lugar no qual pudesse ser facilmente encontrado em caso de emergência.

Sentados um de frente para o outro, em seus lugares costumeiros, os dois debatiam sobre algo sem importância, pois todos os outros assuntos já haviam sido discutidos. O tédio começava a mostrar sinais de sua presença aos poucos, através de um bocejo aqui e um suspiro ali. Depois de alguns instantes sem nada acontecendo, o tio Chang pensou em propor um jogo para passar o tempo. Foi nesse ponto que uma mudança aconteceu.

De repente barulhos de passos puderam ser ouvidos fora da casa, correndo em desespero enquanto um homem gritava eufórico:

― Patriarca! 9º Ancião! Patriarca!

Bufando feito um touro, um sujeito apavorado entrou no salão a passos largos, quase tropeçando ao passar pelo portal. Seu rosto estava branco como o de um cadáver que ainda não se acostumou à ideia da morte e se assustou ao encontrar o parente falecido.

― Acalme-se, homem. O que aconteceu? ― grunhiu Enlai que, percebendo a agitação do membro, ficou de pé, numa postura cautelosa.

― Uma coisa terrível... ou incrível... eu não sei...

― Respire e comece de novo ― instruiu o tio Chang, que não tinha muita saúde para ficar se preocupando por qualquer coisa.

E assim o sujeito fez. Ele inclinou o tronco e se apoiou nos joelhos enquanto dava longas baforadas. E por fim, quando recuperou um pouco do fôlego, abriu a boca e falou:

― A Seita de Ebúrnea está aqui!

O homem ainda tinha mais para falar, porém um fenômeno extraordinário o interrompeu.

Nesse mesmo segundo...

Camila e Xiao Shui estavam paradas em frente a porta da câmara, curiosas para saber o que acontecia do lado de dentro. Foi quando a jovem de cabelo azul virou em um sobressalto e encarou a direção em que ficava a saída da frente de sua casa. Seu corpo foi tomado por calafrios que se espalharam ao longo de seus braços e pernas, fazendo-a tremer igual um animal que não está acostumado com a água fria do rio no inverno.

A ruiva de sardas no rosto olhou preocupada para a colega. Não entendia o que tinha de errado com ela. Tentou colocar a mão em seu ombro, para confortá-la, mas recolheu o braço em um gesto abrupto. A pele de Shui parecia uma pedra de gelo que por pouco não queimou seus dedos.

E então, a porta da câmara se abriu e Ning saiu. Ele não estava tão apavorado quanto a filha do Ancião, mas percebia-se pelos olhos bem abertos e a postura arrumada que algo tinha o deixado alarmado.

― Você também sentiu? ― comentou ele, olhando de lado para a pequena Shui. E ela, por sua vez, balançou a cabeça em afirmativa.

― O que? O que aconteceu? ― perguntou Camila sem entender nada.

― Um “Santo” acabou de chegar aqui ― disse ele em tom enigmático.

Embora nenhum deles estivesse entendendo muito bem o que estava acontecendo, todos entraram na casa e foram direto para o salão de reunião, através de uma porta lateral que ligava à residência principal. Chegando lá, depararam-se com o tio Chang e o Patriarca parados sob o portal de entrada, encarando o jardim. Ambos se mostravam tensos, através de suas posturas rígidas e costas eretas.

Quando viu as crianças entrarem pela passagem secundária, o 9º Ancião levou um susto e logo tratou de tentar colocá-las para fora.

― Pequeno Ning, o que você está fazendo aqui? ― disse ele, dando meia volta e avançando pela sala com grande agitação. ― Você não pode ficar aqui. Precisa se afastar da casa o mais rápido...

Mas para a sua profunda lamentação, não houve tempo de expulsar o afilhado para um local seguro.

De repente, a Energia Espiritual que banhava todo aquele pedaço da cordilheira se tornou ainda mais intensa. Alguém, no auge do extraordinário Reino do Santo Místico, tinha acabado de chegar.

No espaçoso jardim da casa do tio Chang, pessoas bem apessoadas e trajando capas aveludadas de tom marfim apareceram acompanhadas de humildes praticantes Virtuosos dos Xiaos.

O grupo era composto por cinco integrantes, dos quais três eram visivelmente soldados, escoltando os outros dois que se destacavam. E aqui vale ressaltar o incrível poder dos guarda-costas cuja descrição se faz dispensável. Todos eles eram Soberanos do Despertar na 5ª Camada, próximos de avançar para o Reino seguinte.

Mas, ainda assim, o protagonismo pertence aos outros dois de maneira magnífica.

O primeiro era um sujeito alto e de cabeça raspada, mas que não chegava a deixá-lo careca. Sua aparência era a de um homem de meia idade, porém que impressionava devido ao porte físico desenvolvido. Sua barba, marcada por tons grisalhos agressivos, concentrava-se no queixo e no bigode, formando um estilo bem característico e marcante.

Não eram apenas os músculos desenvolvidos e o cuidado com os pelos faciais que o fazia se destacar. Seu rosto não era severo, mas carregava traços distintos de maturidade. E sua pele escura era marcada por uma coloração forte e deslumbrante, poucas vezes encontrada nas pessoas dessa região.

Ali perto, Xiao Shui encarou o estranho com olhos brilhantes. Estava boquiaberta.

― Ele é tão bonito ― murmurou, admirada.

― O que foi, pirralha? Se apaixonou? ― Xiao Ning abriu um sorriso brincalhão e, diferente da amiga, não fez questão de manter a voz baixa.

― Quieto! Ele vai te escutar. ― Shui deu uma cotovelada no preguiçoso que o fez se curvar de dor. Embora ela não tenha usado tanta força, aquela região continuava sensível por causa das costelas quebradas que ainda não tinham se curado por completo.

Em uma coisa a filha do Ancião tinha certeza. Aquele era um homem impressionante. E o mais impressionante sobre ele é o fato de que não se tratava de um cultivador. Seu cultivo era o mesmo de um Mortal.

Ao lado dele se encontrava aquela responsável por causar uma grande comoção não apenas dentro do território dos Xiaos, pois nesse exato momento, os líderes das demais famílias estavam se reunindo.

Com o cultivo na 5ª Camada, o ápice do Reino do Santo Místico, a mulher que liderava o grupo exalava uma aura carregada de poder e influência. Tendo apenas 1,72 metros de altura e um corpo esguio, sem características físicas que ressaltam a força, ela não tinha uma aparência tão imponente. Mas bastava “sentir” a Energia desprendendo de seu corpo para estremecer de cima a baixo.

Existia sutileza em seus olhos castanho-avermelhados ― uma cor que trazia um enorme destaque para seu rosto arredondado ―, mas ao mesmo tempo era possível notar uma solidez inquebrável e a perspicácia de uma pessoa observadora, equilibrada. Suas bochechas um tanto rechonchudas contrastavam com o corpo esbelto, deixando sua aparência bastante dócil e amigável.

O cabelo era castanho-escuro, ondulado nas pontas e tão longo que as partes mais compridas alcançavam suas nádegas. Ela vestia calças largas e folgadas abaixo dos joelhos, combinada com uma camisa de manga longa e de pano fino, além de uma capa aveludada cor de marfim presa nos ombros. E falando nela, a peça possuía o desenho de uma carroça tombada para frente, sem o animal para puxá-la, impressa na parte de trás.

Quando viu o grupo se aproximar da casa, mesmo o Patriarca não pôde se manter impassível. Logo tratou de assumir uma postura reverente e se adiantou para receber os visitantes.

― Mas que surpresa agradável. Se eu soubesse que a grã-chanceler dos Ebúrneos estava vindo, eu teria elaborado uma recepção mais acolhedora. ― Demonstrando a maior das cortesias, o líder dos Xiaos curvou a cabeça de leve, numa sutil exibição de civilidade e saudação.

O tio Chang fez o mesmo. Ele se adiantou, mas permaneceu um passo atrás do Patriarca.

― É um prazer recebê-los em minha casa ― disse em um tom respeitoso.

― Imagino que você seja Xiao Enlai, o Patriarca dessa Família, estou certa? ― Mirando o homem com o maior poder entre os presentes, tirando os próprios guarda-costas, a grã-chanceler resolveu fazer uma pergunta cuja resposta já sabia.

― Exato. Sou eu mesmo ― confirmou Enlai que até o momento não havia demonstrado o menor sinal de que pretendia convidá-la para entrar na casa. ― O que posso fazer pela senhorita? Há algo de especial na visita?

Ora, por favor! ― resmungou ela, apesar de não parecer chateada. ― Não vamos fazer esses joguinhos. É evidente que estou aqui para conhecer o Alquimista. O assunto já se espalhou por todo o Império e é a fofoca mais quente que tem circulado. E é claro que nós, da Seita Ebúrnea, não podemos deixar uma novidade tão incrível passar.

Direta! Ela tinha sido direta, muito mais do que o Patriarca gostaria. Seria bom poder conversar e descobrir um pouco a respeito das intenções do outro lado, antes de sair fazendo as apresentação.

Enlai olhou para baixo e discretamente desviou os olhos para Ning, que se encontrava parado logo atrás. Por um instante pensou, sem tomar nenhuma decisão. E então, após alguma reflexão, decidiu falar:

― Devido à natureza de sua Seita e a relação com a Waidanshu, acredito que não tenha nenhum propósito hostil. Porém, preciso confirmar: o que o Alquimista representa para você?

― Um bom negócio! ― A grã-chanceler foi sincera em sua resposta.

― Nesse caso... ― Enlai virou de lado, permitindo que os dois pudessem enfim se ver. ― Ning, venha conhecer Heloísa Valentina de Carvalho, a segunda no comando da Seita Ebúrnea, uma das sete grandes potências de nosso império. Senhorita grã-chanceler, este é o Alquimista, Xiao Ning.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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