Volume 2
Capítulo 149: Convite e fofocas
Assim como todas as cidades, a Cidade da Fronteira do Caos possui uma região mais pobre e decadente. Localizado na parte mais ao sul da província, muito perto da muralha, fica o bairro “Bastião Frontal”.
Conhecido por vivenciar grandes episódios de destruição no passado, durante invasões de Bestas Demoníacas que até os dias atuais exibem suas marcas, o bairro, além de pequeno, é composto por diversas “casinhas” coladas umas nas outras. As ruas são tortas e esburacadas, de modo que carruagens preferem não trafegar pelo local.
Contudo, apesar de tudo isso, o lugar é bastante agitado, sempre com pessoas indo e vindo, idosos conversando na esquina e crianças rolando pelo chão descalçado. Trata-se de um tipo de vida diferente de um povoado habitado por gente nobre, onde a solidão e indiferença predominam.
Nesse momento, na rua mais afastada do Bastião Frontal, em que as casas ficam coladas juntas à extraordinária parede protetora, um grupo de crianças e adolescentes podiam ser vistos brincando e berrando sem qualquer consideração pelos vizinhos.
Entre eles, existia um rapaz que se destacava por suas caretas e poses extravagantes. Era o mais velho de todos ali, mas também o mais infantil.
O garoto de dezessete anos, que nesse mesmo ano completaria dezoito, possuía cabelo raspado e um corpo pouco atlético. Os músculos não eram nada desenvolvidos, mas percebia-se pelas mãos calejadas e as fibras contornando certas partes que isso não era por falta de esforço ou força. Suas roupas não possuíam cor; desbotadas de tanto lavar. Emendas e costuras podiam ser notadas em algumas partes, através dos inúmeros retalhos. E se não fosse o bastante, as calças eram menores do que as pernas, deixando as canelas à mostra.
Ainda assim, nada disso podia tirar o brilho do sorriso de Chen Bohai, que brincava com a irmã mais nova em frente à porta de sua casa. O representante da Fundação Quatro Pilares que foi capaz de derrotar um integrante da Família Zhan enquanto exibia suas poses inspiradoras, estava se divertindo, pulando, brincando e arrancando gargalhadas profundas da pequena Meiling.
― Faz assim! Faz assim! ― A menina, que tinha pouco mais de três anos e seis meses, flexionou o braço e cutucou onde deveria ficar o bíceps com a ponta do dedo.
― Assim? ― Bohai se exibiu para a irmã. ― Está vendo como seu Gege é forte? O mais forte de todo o império.
E Meiling parecia aprovar tal afirmação, pois aplaudia com os braços erguidos e sorria com a sinceridade genuína de uma criança.
― Não deixe ela se sujar, senão a mamãe vai ficar brava. ― Conforme os dois brincavam, outro garoto saiu de dentro da casa. Precisou se apertar na porta estreita para não chutar sem querer a menina.
Quem apareceu foi Chen Bolin, o filho do meio e, também, um dos mais novos participantes da última edição do Festival da Geração do Caos. Diferente do irmão, sua expressão e postura não era a de uma pessoa agitada. Apesar de curto, seu cabelo não estava raspado e parecia ter sido cortado há pouco tempo.
Quando saiu da casa e caminhou em direção a um grupo de garotos e garotas que brincavam lançando uma bola velha de mão em mão, ficou evidente que ele não tinha nenhuma dificuldade em se mover. Entretanto, mesmo usando uma camisa, notava-se que seu corpo continuava coberto por faixas e ataduras.
Mesmo depois de duas semanas, o corte provocado por Xiao Shui não tinha desaparecido. E segundo o Dr. Wen, que ainda era responsável por cuidar de sua saúde, o golpe deixaria uma cicatriz.
Mas já fazia alguns dias que Chen Bolin não sentia dor e por isso estava tão ansioso para brincar com as outras crianças.
No entanto, antes que ele pudesse se juntar a brincadeira, algo que chamou a atenção de todos aconteceu.
Enquanto as crianças se divertiam, um homem que claramente não pertencia ao local apareceu e interrompeu a diversão dos pequenos.
― Estou procurando Chen Bolin e Chen Bohai, da Fundação Quatro Pilares ― falou, olhando para os rostos das meninas e dos meninos presentes. Parecia um tanto perdido.
― Eu aqui! ― O mais velho levantou o braço, interrompendo a diversão com a irmã.
― E eu! ― acrescentou o do meio.
― Ah, então eu estou no lugar certo ― comemorou o homem. ― Os seus pais estão?
― Estão trabalhando ― informou Bolin.
― Nesse caso, eu terei que informar a vocês. ― O sujeito sacou uma carta do bolso e entregou ao irmão mais velho, o qual julgou, erroneamente, ser o mais responsável. ― Eu sou um representante da Família Zhan e vim convidar os irmãos a se juntarem a nossa classe avançada de estudo prático e teórico dos fundamentos da Energia Espiritual e do Combate Espiritual. Caso aceitem, vocês passarão a fazer parte dos alunos convidados de nossa Família e poderão usufruir de diversos benefícios, incluindo acesso a técnicas e recursos para cultivo. Por favor, entreguem a carta aos seus pais. Vocês têm uma semana para dar uma resposta oficial.
E assim que terminou de dizer tudo isso, o mensageiro se virou e partiu.
O anúncio pegou todos de surpresa, de modo que até mesmo Chen Bohai ficou sem reação. Mas quando perceberam a incrível oportunidade que receberam, os irmãos comemoraram tanto que chamaram a atenção de toda a rua.
As crianças que assistiram o convite sendo feito ficaram tão fascinadas que saíram correndo ao redor do bairro, contando para amigos, colegas, familiares e qualquer um que encontrava pela rua. Muito antes do pôr do sol, todos do Bastião Frontal sabiam sobre o ocorrido e ficou decidido que teriam uma baita festa naquela noite.
Enquanto isso, em outro canto da cidade.
Xiao Jiao seguia cumprindo a lista de afazeres que tinha recebido de sua mestra. E Zhan Xin Qian continuava grudada nela, falando sem parar. A amiga já havia abordado todos os tipos de assunto; desde o surgimento espetacular do Alquimista, até a vizinha que roubava suas meias.
A garota tímida, que tinha problemas com interações sociais, não achou a falação da outra um problema. Pelo contrário. Aos poucos estava se tornando mais participativa, falando uma porção de frases e dando sugestões. A opressão causada pela enorme multidão no centro diminuiu e agora não andava mais de cabeça baixa.
― Ah! Eu já sei ― exclamou Xin Qian se lembrando de algo. ― O que você vai fazer amanhã? Vem com a gente para a “Toca Verde”.
― O que é isso?
― Você nunca foi? Sério mesmo? ― Ela estava chocada. ― É um lugar escondido que o Qin Ping descobriu.
― O neto da Matriarca Annchi? ― Jiao quis ter certeza.
― Isso mesmo ― confirmou a amiga, ainda mais animada. ― A “Toca” fica do lado de fora da muralha, em um canto escondido na floresta. Mas é totalmente seguro. Eu garanto! ― acenou com a cabeça. ― A gente costuma se reunir lá para nos divertirmos. Se bem que, o Ping não vai ir dessa vez.
― Por que não?
A pergunta fez Zhan Xin Qian exibir um sorriso divertido.
― Como ele não levou a luta no festival a sério, a Matriarca o jogou na floresta para poder treinar.
Xiao Jiao ficou pasma. Não sabia se isso era um grande amor de vó ou outra coisa mais sombria. Contudo, a decisão de colocar o próprio neto em um lugar tão perigoso era de fato muito imprudente.
As garotas seguiram conversando enquanto rumavam de encontro ao próximo destino. A integrante dos Zhans estava determinada a convencer a amiga a acompanhá-la para a comemoração que teria no dia seguinte, mas Xiao Jiao continuava indecisa.
Entretanto, antes que pudessem chegar a uma conclusão, algo que chamou a atenção da Mundana animada aconteceu.
De longe, elas avistaram duas pessoas que lhes eram familiar, em especial para Xin Qian, que levantou o braço e acenou:
― Qin Yanyu! Xu Guiren! ― berrou enquanto saltava, tentando ser percebida.
E então, quando foi notada pelos outros dois ― uma tarefa não tão difícil assim ―, ela agarrou o braço de Jiao e saiu correndo.
A semifinalista do Festival da Geração do Caos parou quando escutou seu nome ser chamado. E apesar de estar olhando para os lados com um semblante desatento, o irmão mais velho do campeão também parou.
― Boa tarde, garotas. ― Detentora de um corpo bem desenvolvido e atlético, Qin Yanyu, que dispensava certas delicadezas femininas, foi bastante receptiva quando as duas se aproximaram. Conhecia apenas uma delas, mas isso não era motivo para negligenciar a presença da outra.
― Ah, que sorte te encontrar aqui ― disse Xin Qian. ― Você vai ir amanhã à Toca Verde? Quem vai levar a comida e a bebida dessa vez? Ah, a Jiao também vai.
― Sério mesmo? Você vai se divertir muito ― falou a poderosa Despertada, olhando para a discípula da 2ª Anciã dos Xiaos. ― O Xiao Guo falou que vai cuidar das preparações. Ele disse que conseguiu alguns presentes interessantes do Alquimista e quer mostrar para a gente.
A última parte deixou Jiao curiosa. Que tipo de presentes o tonto do Ning estaria distribuindo por aí sem falar para o pessoal mais velho da Família?
― Sério? Que interessante. ― A notícia deixou Zhan Xin Qian bastante empolgada. ― E você, Guiren, vai à toca dessa vez?
― Eu queria ― confessou o garoto com sua típica voz arrastada. ― Mas é tãããoo misterioso ― abriu os braços e deu de ombros. ― Toda vez que eu tento chegar na floresta, acabo em um rio.
― Você vai bem longe, hein! ― grunhiu a integrante dos Zhans, estreitando os olhos.
― Isso é perigoso, sabia? ― bufou Yanyu, surpresa com o descuido do menino. ― Tudo bem. amanhã eu te acompanho.
A resposta fez Guiren abrir um sorriso simpático para a garota.
― Mas... E então, o que vocês dois estão fazendo aqui? ― Xin Qian mudou o tom e a postura. Sua voz saiu carregada de insinuações e o olho esquerdo cedeu a uma piscadela maliciosa. Algo que foi reforçado pela atitude suspeita e as sobrancelhas franzidas.
Qin Yanyu percebeu tudo isso e já estava prestes a responder, quando foi interrompida:
― Nós estamos em um encontro ― disse Xu Guiren, confiante. ― O primeiro.
As bochechas da poderosa Despertada, que era alguns dedos mais alta que o parceiro, ficaram instantaneamente vermelhas.
― Não fale essas coisas! ― grunhiu ela, envergonhada. ― As pessoas vão entender errado.
― O que de errado? ― questionou Guiren em um tom inocente. E nesse meio tempo, Xiao Jiao e a amiga trocaram olhares divertidos. ― A gente não está num encontro?
― É claro que não! ― afirmou Yanyu, ainda mais constrangida. Sua postura firme fraquejou e a voz oscilou à medida que olhava de lado para as duas garotas. ― A gente só veio... sabe? Se encontrar... encontrar como amigos. Só isso.
Aquilo causou um grande espanto no menino que dedicava a maior parte de seu tempo na procura por corujas. Ele arregalou os olhos e por um segundo ficou sem saber o que dizer. Por fim, falou:
― Então você não quer ser minha namorada?
― O que? Não... Eu... ― ela olhou constrangida para as duas que assistiam a situação em silêncio, mas com sorrisos significativos nos rosto. ― A gente conversa sobre isso depois.
― Que pena ― lamentou Xu Guiren em meio a um suspiro pesaroso. ― Eu estava tãããoo feliz, pensando que iria namorar a menina mais bonita da cidade.
Nesse momento, a vergonha consumiu Yanyu por completo. Seu rosto inteiro ficou vermelho e por um instante o ar escapou dos pulmões conforme um frio misterioso se espalhava pelo estômago.
Em um ato impensado, ela passou a mão entre o braço do pretendente, prendendo-o junto ao próprio corpo e o puxou.
― Venha, vamos embora ― disse à medida que se afastava.
― Tchau, Guiren! Boa sorte. ― Zhan Xin Qian não resistiu em fazer uma pequena provocação. E apesar de ser solidário ao constrangimento da garota, Xiao Jiao também se divertiu com a situação. ― Apesar de parecer bobo, aquele menino não perde tempo mesmo ― comentou após ficarem sozinhas.
Depois do encontro inusitado, as garotas tiveram muito assunto para conversar. E cada detalhe foi debatido e repassado pelas horas seguintes, permitindo que diversas teorias fossem criadas.
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