Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 148: Deixando a cidade

Chegar até a cidade da Fronteira do Caos não é uma tarefa fácil, que pode ser realizada por qualquer um. A Floresta das Mil Perdições cerca grande parte dos altos muros que a protegem. Já a região norte e os arredores é marcada pela presença da Cordilheira dos Tesouro de Viço. É desnecessário dizer que mesmo um pequeno grupo de cultivadores Virtuosos e Despertados é incapaz de realizar feitos significativos naquele local.

Andar entre as árvores gigantes que chegam a passar dos cem metros de altura dependendo do lugar, exige uma mentalidade forte e pernas rápidas. Qualquer um que deseje ir ou partir da cidade sem ter se tornado um Espirituoso, no mínimo, deverá iniciar a jornada com o conhecimento de que não poderá fazer longas paradas e muito menos desviar da estrada principal.

A floresta é cercada por monstros assustadores e ninguém sabe ao certo qual é a criatura mais poderosa que habita a escuridão intransponível. E embora existam relatos afirmando que cultivadores do Reino do Santo Místico tenham conseguido chegar ao topo da Montanha Ancestral de Jade, o fato de quase nenhum ter retornado servia para desencorajar os aventureiros de seguir tal rota alternativa. Já a cordilheira, era quase tão perigosa quanto a floresta ao dar a volta por ela.

Por causa de tudo isso, muitas pessoas se sentem presas na cidade, cercadas pela imponente muralha. Não é fácil ir ou vir sem um tremendo esforço de cultivadores capazes e dispostos a arriscar a vida. Da mesma forma, não é fácil encontrar pessoas com tais disposições.

E esse era justamente o problema que Xu Xia estava enfrentando.

A talentosa cultivadora dos Xus, que conseguiu atingir o Reino do Despertar apesar de ter só dezesseis anos, estava no portão leste, tentando encontrar algum grupo capaz de ajudá-la. Desde a tarde do dia anterior ela procurava por cultivadores ou comerciantes dispostos a deixá-la acompanhá-los até a próxima província. Mas até o momento não tinha encontrado ninguém bondoso o suficiente.

A verdade é que, apesar de ser uma Despertada, ela não seria útil para a proteção. E seu dinheiro não bastava para contratar serviços competentes.

Logo que amanheceu, Xu Xia foi até o portão e ficou esperando. Esse era o horário mais movimentado para aqueles que desejavam deixar a cidade.

Quando um grupo pequeno, mas liderado por dois Espirituosos forasteiros, reuniu-se do lado de fora da muralha, tentou negociar para que pudessem levá-la junto. Porém, sem nenhuma surpresa, a resposta foi: não!

No entanto, ela não ficou decepcionada por receber uma resposta negativa, pois logo que tentou conversar com aquelas pessoas, ficou claro que eles não eram sujeitos muito decentes.

O pior de tentar encontrar um bando disposto a levá-la, é tentar encontrar um bando composto por gente do bem. Para uma garota com seu nível de força, não é uma boa ideia se aventurar entre desconhecidos pouco confiáveis.

Seja como for, Xu Xia sentia que sua sorte seria tão frágil quanto no dia anterior. Contudo, apesar disso, não desistiria.

Depois de mais algum tempo esperando, quando o sol já havia se levantado por completo, outro grupo começou a se reunir em frente ao portão. Nesse momento, a jovem de cabelo dourado aprumou a postura e se preparou para fazer uma aproximação.

Entretanto, antes que avançasse em direção aos estranhos, algo a impediu.

De repente uma Energia Espiritual poderosa envolveu as ruas e toda a região ao redor em um manto calmo, mas opressor. Diante da sensação dominante, suas pernas tremeram e seu coração ficou acelerado. Essa era a mesma Energia que tinha sentido no dia anterior, quando a notícia de que uma Santa Mística tinha aparecido se espalhou pela cidade.

Ela não foi a única a sentir a presença esmagadora. As pessoas que passavam pelas ruas, o grupo de praticantes se preparando para partir, os soldados vigiando a passagem, todos se viraram para olhar um conjunto de três carruagens idênticas que se aproximavam.

Mesmo de longe percebia-se que os veículos eram sofisticados, mas bastante discretos. Não existia ouro ou prata decorando os entalhes artísticos e a madeira estava coberta por um verniz escuro. Mesmo assim, o desenho nas bordas e o emblema da Seita Ebúrnea na lateral eram tão belos que se fazia possível notá-los à distância.

Xu Xia olhou para as carruagens com certa admiração e, hipnotizada pela surpresa, permaneceu do seu lado da rua, esperando o desfile acabar. A primeira passou e ela se esticou na ponta dos pés para tentar ver o interior. Mas tudo o que conseguiu enxergar foi um pequeno vislumbre de duas figuras tão belas quanto extraordinárias.

A segunda veio logo em seguida. Porém, diferente da outra, essa não passou direto. Na verdade, quando se aproximou, o segundo veículo diminuiu de velocidade e naquele momento ela teve uma visão que não estava esperando.

A carruagem parou a alguns passos de distância, forçando a que vinha atrás a frear. Xu Xia olhou com curiosidade para o veículo e aos poucos começou a se aproximar. Foi então que, uma cabeça apontou para fora da janela.

Quem surgiu foi Xiao Ning, que colocou metade do corpo para fora e acenou feito uma criança empolgada por esbarrar sem querer em um conhecido.

Ei, pequena Xia! Tá fazendo o que aí? Vai para a floresta caçar? ― Agindo com uma naturalidade admirável para quem tinha sido dispensado pela noiva e ainda foi alvo de boatos caluniosos, o Alquimista exibiu um sorriso sincero. ― Cadê sua tia? O Chan quer dar um “oi”.

Agindo com cautela, Xu Xia se aproximou do veículo e, antes de responder, estudou os rostos das pessoas no interior. Eram todos conhecidos por ela, mesmo que não fosse familiar a nenhum deles.

― Eu não estou indo caçar. ― Por fim respondeu com uma voz insegura. ― Vou deixar a cidade.

Oh, sério mesmo!? ― Existia empolgação em seu jeito de falar. ― A gente tá indo para a capital ― fez um gesto com o polegar, apontando para dentro da cabine. ― Quer uma carona?

Nesse momento, os olhos de Xu Xia brilharam. Essa seria a melhor companhia possível para fazer essa viagem, afinal o carro da frente era ocupado por uma Santa e no de trás existiam três poderosos Soberanos. Por outro lado...

― Acho melhor não ― recusou o convite, balançando a cabeça. ― Não seria certo eu me aproveitar de você. ― E junto a essas palavras, seus olhos se encontraram com o de Shui, que a encarava do lado de dentro.

― Não é aproveitar quando eu estou te convidando ― insistiu Ning. ― Anda, entra aí. ― Ele destrancou a porta da cabine e abriu passagem para a garota entrar. ― É perigoso andar naquele lugar sozinha, não é, pequena Shui?

A filha do 9º Ancião soltou um longo suspiro, antes de acrescentar:

― Sim. É muito perigoso. ― Ela ainda se sentia desconfortável em permanecer perto da rival, mas parecia que o chefe estava lhe testando.

Para Xu Xia, aquilo foi como um sinal de aprovação. E sabendo que essa era sua melhor escolha, decidiu ignorar o sentimento relutante que incomodava seus pensamentos.

― Se é assim, muito obrigada! ― Ela segurou no apoio da porta e começou a subir os dois degraus que davam acesso à cabine. Mas antes de entrar, garantiu: ― Prometo que não serei um estorvo. ― Existia um profundo agradecimento em sua maneira de falar.

Xiao Ning se levantou e trocou de assento, ficando do mesmo lado que o amigo e o Ancião inseguro. A outra ponta da carruagem foi dividida pelas duas garotas.

Agora, com uma nova integrante, o grupo estava pronto para seguir a viagem. E quando o cocheiro responsável por guiar o Alquimista recebeu permissão, mais uma vez os cavalos voltaram a andar.

Entretanto, antes que os animais disparassem, alguém de repente saltou sobre a carruagem e enfiou a cabeça para dentro do veículo, deixando todos alerta.

A pessoa que apareceu do nada possuía estranhos fios de cabelo esbranquiçados, apesar de ser apenas um jovem com dezessete anos. Tratava-se um branco diferente do grisalho, uma tonalidade tão pura que chegava a ser quase transparente. Seu cabelo, escuro na maior parte, era de tamanho médio e tão bagunçado que deixava claro sua falta de cuidados ao acordar.

Com uma expressão abstraída e um sorriso ligeiramente enlevado, ele olhou para cada um dos rostos presentes demonstrando um interesse instável.

Um tanto abalada e surpresa, Xiao Shui demorou um segundo para entender o que estava acontecendo. E quando enfim esboçou uma reação, esganiçou:

― Xu Guiren!?

― Quem? ― indagou Ning, curioso. O nome pareceu familiar, mas não conseguiu reconhecer de imediato.

― Irmão mais novo daquele “Jong” ― respondeu Xiao Chan.

― O pirralho que venceu o festival? ― Xiao Ning recebeu uma resposta positiva do amigo que acenou com a cabeça.

― O que você está fazendo aqui? ― indagou Xu Xia, que estava tão surpresa quanto o resto do grupo. ― Pensei que estivesse ajudando seu irmão a se preparar.

E como era de se esperar, a resposta de Guiren não veio logo em seguida. Ele levou algum tempo estudando uma terceira vez os rostos presentes até que parou naquela que dividia o mesmo sobrenome.

― Eu acho que vi uma coruja entrar aqui. ― Sua voz era tão arrastada que era como se tivesse dificuldade para falar, apesar da pronúncia compreensível e clara. Ao encarar a colega, seus olhos brilharam, repletos de expectativa.

― Não sou uma coruja, seu tonto! ― esganiçou Xu Xia, sentindo-se um tanto ofendida por ser confundida com um animal.

― Tem certeza? ― insistiu Guiren, que desconfiou da palavra da garota. ― Você não é uma coruja disfarçada?

― Não existe essa coisa de “coruja disfarçada” ― repreendeu a Despertada de olhos claros.

― Entendo. ― A expressão de Guiren murchou como uma rosa arrancada da terra em um dia de calor intenso. Seus ombros caíram e os olhos revelaram uma tristeza profunda. ― Acho melhor ir pro meu encontro ― acrescentou, abatido.

― Encontro? ― Chan não conseguiu se manter indiferente ao comentário.

― Eu estou indo ver minha namorada. ― Com um sorriso renovado no rosto, Guiren desgrudou da janela e desceu da carruagem. ― Tchau! ― E dizendo isso, ele partiu.

A interação muito estranha e repentina deixou o grupo desorientado por mais alguns segundos. Entretanto, desimpedida, a carruagem voltou a andar e logo a caravana deixou a segurança proporcionada pela Muralha defensora do Caos.

Enquanto isso, no centro da cidade.

Xiao Jiao, a jovem discípula da 2ª Anciã Ah-kum, que há pouco tempo havia conseguido avançar para a 7ª Camada do Reino Mundano, podia ser vista andando pelas movimentadas ruas de cabeça baixa enquanto estudava uma lista de compras. Seu cabelo loiro e ondulado para dentro, da altura do ombro, não havia mudado nada nas últimas duas semanas e sua estatura continuava abaixo da média. Algo que ficava ainda mais evidente devido à sua maneira de encolher os ombros e se esconder por causa da timidez.

A discípula ficou alguns instantes parada no mesmo lugar, analisando a lista que tinha em mãos. E quanto enfim tomou uma decisão, virou a esquerda e avançou na direção de uma farmácia que podia ser vista no final de uma rua paralela à avenida principal.

― Jiao! Jiao!

Mas então, antes que pudesse se distanciar muito, uma voz começou a berrar seu nome. Outra vez, ela se virou e avistou uma menina no meio de um grupo de pedestres, atravessando a rua enquanto acenava, pulava e corria em sua direção.

A garota possuía um longo cabelo castanho-claro e um sorriso tão espontâneo que parecia brilhar apesar da luz do sol. Não existia expressão de entusiasmo mais honesta em todo o império. Seu cultivo era o mesmo que o da discípula da 2ª Anciã dos Xiaos e a idade também, dezesseis anos.

Aquela era a competidora com a qual Xiao Jiao lutou durante a primeira rodada do Festival da Geração do Caos.

Zhan Xin Qian atravessou a rua correndo e quando se aproximou, pulou nos braços da tímida integrante dos Xiaos e deu-lhe um abraço apertado, deixando-a sem reação. Era como se as duas fossem grandes amigas que não podiam ficar muito tempo sem se ver.

― Que coincidência te encontrar aqui! ― A empolgada representante dos Zhans se afastou, mas manteve o sorriso alegre e bem disposto.

― Eu... eu vim pegar os remédios que minha mestra encomendou. ― A resposta de Xiao Jiao foi tão fraca que por pouco não foi abafada pelo burburinho da agitação urbana. Suas bochechas estavam enrubescidas, deixando claro o constrangimento que sentia.

Mas Xin Qian não percebeu a vergonha da colega e continuou falando com sua característica empolgação:

Ah, é mesmo! Sua mestra derrotou um Soberano do Despertar, não foi? Tá todo mundo falando disso, todo mundo! Eu fiquei sabendo que a Matriarca dos Qins está morrendo de inveja. Ela deve estar muito machucada, não está? E ainda tem o Alquimista. Ah! Sua Família é tão, tão, tãããoo sortuda! Tem uma mulher incrível no comando e um Alquimista também.

― Obrigada. ― Xiao Jiao não sabia se era isso que deveria falar, mas resolveu agradecer.

― Você disse que está indo pegar remédios, não é? Posso ir com você? Ah, já sei! Vamos juntas, assim a gente pode conversar mais.

Antes mesmo de receber uma resposta ou sem sequer saber a direção certa, Zhan Xin Qian agarrou o braço da amiga e a arrastou enquanto falava sem parar.

Xiao Jiao ficou surpresa, isso era inegável. Por outro lado, não era tão ruim ter a companhia de uma pessoa tão espontânea. Por isso, ela seguiu ao lado da amiga, apesar de estar um pouco constrangida.

 


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