Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 175: Enfermo

Em um determinado lugar do grande Continente Central, um homem consumido pela enfermidade podia ser visto deitado sobre um futon.

Tratava-se de um sujeito que, apesar de seu estado de fragilidade atual, apresentava uma fisicalidade imponente. Da sola dos pés até a cabeça possuía exatos 1,98 metro. Seus ossos eram largos, fazendo seu volume corporal parecer muito mais elevado do que de fato era. Seus braços eram mais compridos do que o normal, de modo que suas mãos conseguiam tocar os joelhos sem precisar curvar as costas ou se esticar desnecessariamente. E a caixa torácica grande ampliava a sua impressão de força primitiva.

Mas nada disso fazia aquela criatura parecer obesa ou coisa do tipo, pois de fato ele possuía uma aparência esguia. Em especial, no atual momento que se encontrava destruído por uma doença que desconhecia.

Ele estava deitado com as costas viradas para o chão e apenas suas pernas se achavam cobertas por um cobertor que havia sido dobrado há poucos instantes atrás pelo próprio, devido ao calor e incômodo que sentia. A parte de cima de seu corpo se encontrava descoberta, de modo que mesmo o seu Kimono havia sido aberto, expondo o torso esquelético, definhado. E tal imagem miserável era a maior prova de sua degeneração.

Daquele ponto de vista, com metade de seu corpo exposto, ficava evidente que algo havia devorado sua carne ao ponto de fazer a pele grudar em seu esqueleto largo. Possível era enxergar e traçar o contorno de seus ossos, de suas costelas, como se fosse um cadáver em estado avançado de decomposição. Seus braços estavam tão magros que a pele era nada mais do que capas definhadas cobrindo duas varetas frágeis e quebradiças.

Naquele estado deplorável, mesmo a imensa cicatriz de um queimado profundo que havia deixado seu antebraço esquerdo e parte da epiderme de suas costelas deformada não ganhava muito destaque. De fato, o que mais chamava a atenção era o seu rosto assombrado por olhos fundos e o contorno das maçãs em grande evidência.

Aquele homem não possuía barba ― seu rosto era tão liso quanto o de um adolescente, apesar de ter a aparência de um sujeito na meia idade. Mas seu cabelo era comprido e volumoso, de modo que cobria toda a área debaixo de sua cabeça.

Ele estava deitado em uma sala espaçosa e arejada, cuja uma das laterais era uma grande porta deslizante por onde a luz do sol entrava, repleta de vida e intensidade. Dali, o sujeito conseguia ver um exuberante jardim tomado pelo verde e que, a poucos metros de distância, ficava um lago sem forma específica e que se destacava devido às pedras em suas bordas.

O estranho olhava para fora com certa nostalgia e desejo em seus olhos escuros. Mas até esse simples esforço parecia desgastante para a sua alma.

― Raijin ― resmungou ele, com sua voz rouca, áspera e desgastada. ― Cadê Raijin? Traga-o aqui.

Naquele instante, um homem que se encontrava prostrado em um canto da sala, abaixou a cabeça até encostar a testa no chão e falou:

― Sim, Xogum! Cumprirei vossa ordem imediatamente. ― Ao terminar de dizer essas palavras, o subordinado se ergueu ainda mantendo a reverência e deixou o recinto.

Pouco tempo depois, a porta que dava acesso a outras áreas da residência foi aberta de novo e o serviçal voltou, acompanhado por um homem de estatura elevada e boa aparência.

Após anunciar a chegada do solicitado, o subordinado mais uma vez voltou a se prostrar, demonstrando que continuava à disposição do líder da casa.

Raijin era, como já citado, um sujeito alto, mas que não chegava a ultrapassar ou se igualar ao Xogum. Seu cabelo escuro não era grande, mas se encontrava preso em um característico coque que denunciava certa vaidade de sua parte. A expressão em seu rosto era tão branda que mesmo o líder de uma nação em seu estado debilitado passava maior imponência.

― Você mandou me chamar, irmão? ― perguntou Raijin que, ao entrar, foi direto para o lado do enfermo deitado.

Demonstrando preocupação para com a saúde e conforto da autoridade máxima do reino, o mais novo colocou um travesseiro sob a cabeça do primogênito e o ajudou a ficar mais aconchegado.

― O que está fazendo aqui? Deveria estar em seu quarto?

― Se esse serão os meus últimos dias nesse mundo... então não os passarei como um prisioneiro ― respondeu o Xogum, Taishi, arfando e apresentando imensa dificuldade para falar. ― Escute! Preciso lhe falar uma coisa.

― Eu estou aqui, irmão. Estou ouvindo.

Taishi esticou o braço esquelético, procurando por apoio. E seu irmão mais novo, percebendo sua intenção, segurou sua mão magra que era quase duas vezes maior do que a própria.

― Sinto que já não me resta muito tempo. É por isso que você precisa estar preparado. Este reino também é seu e você deve governá-lo, quando eu me for.

― Por favor, irmão! ― Raijin o interrompeu. ― Poupe-me de um final tão triste. Você ficará bem. Tenho certeza disso.

― Sua ingenuidade é comovente ― retrucou o Xogum. ― Mas posso sentir o meu corpo ruindo. Por esse motivo, precisa estar preparado. Quando minha hora chegar, continue o meu legado e guie nosso povo para a glória. Sei que você será capaz de me honrar.

― Sei que o irmão não teme encontrar nossos ancestrais, mas sua pressa em partir é precipitada. A carta que recebemos do comandante Masao não dizia sobre um médico e Alquimista que ele encontrou em sua viagem ao Império Dourado? Talvez um especialista tão capaz possa lançar uma luz de esperança sobre essa doença.

Hunf! Quantas centenas de médicos, dos mais competentes, não vieram me ver nos últimos meses? ― Diferente do mais novo, Taishi se mostrava cético. ― Além do mais, se o comandante Masao acreditasse na possibilidade de reverter meu estado atual, ele teria sido mais específico em sua carta.

Quanto a essa parte, Raijin precisava concordar. O manuscrito que receberam era muito breve e pouco descritivo.

― Tudo bem ― continuou o Xogum. ― Se assim será o meu fim, eu não me importo. Agora, deixe-me sozinho, por favor. Preciso descansar.

Recebendo a ordem de partir, Raijin fez um singelo gesto de reverência, suspirou com pesar e deixou o recinto.

Enquanto isso, em um canto afastado do oceano...

Já fazia pouco mais de duas horas desde que a embarcação Rosa Azul iniciou sua jornada. No ponto atual, não era possível enxergar mais traço algum do continente e a única visão que o pessoal a bordo tinha era de um imenso azul, independentemente para qual direção a pessoa olhasse.

A velocidade com que o veleiro viajava era tão impressionante que quem ficava no convés se via obrigado a lutar contra a força do vento. Na parte de baixo, onde a água e a quilha se encontravam, ondas furiosas eram criadas ao passo que o barco avançava imparável.

O maior responsável por impulsionar o gigante reforçado de madeira era, no momento, o vento, que ganhava características assustadoras sob o controle das duas praticantes que eram capazes de controlá-lo. Entretanto, uma corrente marinha também contribuía para que ele continuasse ganhando velocidade. Mas, apesar de tudo isso, segundo o capitão, aquela ainda não era sua capacidade máxima de deslocamento. Pois eles ainda não haviam alcançado a corrente principal.

Seja como for, a viagem estava indo muito bem. E no ritmo atual, alcançar o destino não seria tão trabalhoso quanto os convidados imaginaram. E falando neles...

Depois de ficar encantada com sua primeira vez andando de barco, quando se acalmou, Xiao Shui decidiu que era o momento certo de trocar a roupa molhada. E assim pediu para ser guiada até a cabine em que passaria a noite, para que pudesse ter privacidade. Entretanto, a filha do 9º Ancião teve uma grande surpresa ao descobrir que teria de dividir o lugar com a nova integrante do grupo.

Ao que parece, apesar do barco ter tamanho considerável, não existia muito espaço para construir quartos para toda a tripulação e os viajantes. Por isso, os dormitórios eram divididos por até quatro pessoas.

Xiao Shui não achou que seria um grande problema dividir o quarto com sua antiga rival do Festival da Geração do Caos. Mas sem dúvida alguma causaria estranhamento.

Enquanto a jovem Despertada há pouco tempo se trocava, Ning continuava admirando o quadro azul que havia tomado conta de seu campo de visão. Ele preferiu ficar estudando a cena que se desdobrava diante de seus olhos e ignorou a roupa que, a essa altura, estava quase seca.

Mesmo que já estivesse acostumado em ver e estar próximo ao oceano, o fato de se encontrar em uma região desconhecida o deixava empolgado. Pensar que bem ali, debaixo de seus pés e em todo seu entorno poderia existir vidas jamais estudadas e catalogadas o deixava emocionado.

Por esse motivo, ele continuava observando o oceano tanto com seus olhos quanto com seu Sentido Espiritual, buscando por algo misterioso que fizesse seu coração bater mais rápido.

Foi neste momento, enquanto mirava o azul distante, que Masao se aproximou.

― Vejo que está se divertindo ― comentou o Comandante da Ordem Pública.

― Seria ainda mais divertido se eu pudesse dar um mergulho para ver o tem aqui embaixo ― contrapôs o Grã-alquimista.

― Você quer nadar? ― espantou-se Masao, que arregalou os olhos. ― Acho que se eu pedisse algo do tipo para o capitão, ele riria da minha cara. Eu soube que você tem um excelente Sentido Espiritual. Então, já deve ter percebido.

― Que estamos sendo perseguidos? ― completou Ning, exibindo um sorriso despreocupado.

― Julgando pelo tempo que essas coisas estão seguindo a embarcação, não acho que sejam fracas.

― Eu também não. Por isso é melhor continuar correndo.

― Como esperado. Muito perspicaz! ― elogiou Ito Masao. ― Enfim, eu só gostaria de dizer que se não houver empecilhos, devemos chegar ao nosso destino amanhã pela tarde.

Oh! Rápido assim? Tenho certeza que aquelas pirralhas vão ficar felizes em saber disso.

― Vocês devem estar cansados de viajar ― observou o comandante. ― Seja como for, eu gostaria de deixar avisado para que estejam preparados. E mais uma coisa: embora eu tenha enviado uma carta ao meu senhor avisando de sua ida, por favor, não espere por uma grande recepção quando chegarmos. Devido a urgência do assunto, achei melhor sermos discretos a princípio. Mas prometo que, se conseguir curá-lo, daremos uma festa inesquecível.

― Você pode fazer como achar melhor. Contanto que eu possa me divertir no final, por mim não tem problema ― disse Ning de maneira casual. Em seguida, ele voltou a se escorar nas grades laterais do barco para admirar o oceano.

Masao agradeceu pela compreensão. Falou que se o Grã-alquimista ou alguém de seu grupo precisasse de algo era só pedir. E então, saiu.

Sozinho de novo, o preguiçoso decidiu mudar o campo de visão para algo mais próximo. E assim, debruçou-se sobre a grade, curvou o corpo para frente e tentou espiar o que acontecia debaixo do barco. Ele procurava por alguma sombra suspeita ou coisa do tipo. Mas a água estava muito agitada e não o permitia enxergar além da superfície.

― Desse jeito você vai cair ― disse uma voz feminina familiar.

Xiao Ning se virou e se deparou com uma garota um pouco mais alta, cujo cabelo era composto por longos fios dourados vibrantes que se estendiam até sua cintura. Seus olhos eram verde-claros e a expressão em seu rosto denotava certa vaidade. Ela vestia uma bermuda marrom aveludada e uma camisa amarela que cobria até o seu umbigo, deixando parte da barriga exposta ― ambas as peças haviam sido trocadas recentemente. E, para completar, seus pés se encontravam calçados por chinelos de borracha.

― Se eu cair, você me pega ― disse Ning em um tom brincalhão.

― Eu não sei nadar ― respondeu Corina.

― Bem que imaginei. Você e a pequena Shui são duas pessoas sem experiência. Ficar preso naquela muralha, não faz muito bem para a pessoa.

Embora Corina concordasse que o isolamento da Cidade da Fronteira do Caos impedisse que os seus residentes desfrutassem de alguns aspectos da vida, ela não aprovava por completo a afirmação final do colega. Mas preferiu guardar isso para si, dado que não estava ali para isso.

― Eu escutei muitas histórias sobre o mar, mas fico feliz que nada perigoso aconteceu por enquanto ― comentou a jovem praticante, desviando o olhar por um segundo para encarar o oceano. ― Até agora, nenhuma Besta Demoníaca apareceu por perto.

Xiao Ning decidiu não acrescentar um comentário, pois ao encarar o rosto da garota ao seu lado, ficava claro que não era isso que ela pretendia falar.

― É só isso que você quer me dizer?  ― indagou ele, resolvendo ser mais direto.

E a confrontação fez a garota hesitar. Mas ela não era do tipo tímida ou covarde. Portanto, logo começou a falar:

― Olha, eu sei que já disse isso...

Arg! Você vai agradecer de novo? ― resmungou Ning que já imaginava ser esse o motivo de ela ter aparecido ali enquanto estava sozinho. ― Para uma garota que ajudou a espalhar todos aqueles boatos sobre mim, você se desculpa e agradece muito.

― Eu sei disso. Mas não importa o que eu diga ou faça, minha culpa não vai diminuir ― defendeu-se Corina. ― Então eu cheguei a uma conclusão. Até que você decida qual vai ser o meu trabalho, eu vou ajudar fazendo o que for preciso. O que a Xiao Shui costuma fazer?

― Gritar comigo. ― A resposta de Ning foi automática. ― Mas... bem. Nós não estamos juntos há tanto tempo assim. E o que ela costuma fazer é me proteger quando aparece algum problema.

― Se esse é o caso, preciso treinar muito. Já que você parece ser do tipo que corre atrás de encrenca ― brincou Corina, exibindo um meio sorriso raro. Era difícil para ela não se lembrar da cena recente de ele saindo bêbado de um bar e cantando. ― Diga-me uma coisa: você gastou mesmo todo aquele dinheiro com mulheres e bebidas?

Ah! Queria eu que tivesse sido assim ― suspirou Ning com pesar. ― A noite teria sido mais divertida.

― Então, o que aconteceu? ― A informação provocou grande surpresa na jovem que abriu os olhos de maneira exagerada.

― Para ser sincero, não me lembro direito ― confessou o preguiçoso que estreitou os olhos e coçou a cabeça como se estivesse tentando arrancar uma lembrança. ― Eu só me lembro que um homem apareceu com alguns ratinhos e um labirinto improvisado, querendo apostar qual deles terminava primeiro. Escolhi mal ― deu de ombros, agindo de uma maneira inocente.

― Inacreditável! ― O tom de Corina era de puro julgamento. ― Além de tudo, meu ex-noivo é também um apostador descontrolado.

― Parece que você escapou de um problemão ― brincou Ning, que logo em seguida caiu na gargalhada. E seu júbilo foi tão espontâneo que, apesar de a garota ao seu lado ainda estar chocada, ela sorriu junto.

Depois daquilo, Corina ficou ainda mais à vontade perto de seu problemático novo chefe. Ela ainda entendia que precisaria compensar por tudo que fez no futuro, mas o jeito descontraído do preguiçoso tornou seus anseios um assunto secundário.

E assim, a viagem continuou.


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.



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