Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 176: Primeira visão

Após mais de seis horas de viagem, o Ancião Qiao já não estava suportando continuar naquele barco. Diferente das meninas, ele já havia velejado antes, mas nunca por tanto tempo. E foi depois da quarta hora que o poderoso praticante descobriu sua baixa tolerância para as ondas que faziam o barco balançar de um lado para o outro.

Seu enjoo era tão evidente que seu rosto assumiu uma tonalidade esverdeada. Os olhos estavam vacilantes como os de um bêbado e a postura já não passava a imponência de um Espirituoso.

Por quase uma hora, o Ancião ficou debruçado sobre a lateral do barco, contaminando o oceano com suas convulsões estomacais. E apesar de ter colocado para fora toda a janta da noite passada e o desjejum de hoje de manhã, ele não teve apetite para experimentar o almoço pobre servido pela tripulação.

Os tripulantes que já estavam acostumados em ter passageiros sensíveis, ofereceram um remédio para ajudar a amenizar os sintomas. Mas a despeito da boa intenção, o comprimido demorou mais do que Xiao Qiao gostaria para fazer efeito. E foi por isso que Ning resolveu fazer um chá de gengibre com alguns segredos de um Grã-alquimista, em busca de um resultado mais imediato. Uma boa decisão, pois logo depois o Ancião se sentiu bom o bastante para se retirar e procurar um lugar para deitar.

Em contrapartida, Shui e Corina, que jamais estiveram em qualquer tipo de embarcação, não apresentaram nenhum sintoma de náuseas ou coisa do tipo. Elas seguiram encantadas com a viagem, aproveitando a sufocante visão do fim do mundo e do infinito azul na outra ponta.

Entretanto, embora ambas estivessem se divertindo, houve ocasiões em que ambas experimentaram momentos de pavor, temerosas que o gigante de madeira pudesse ser partido ao meio ou tombado a qualquer instante.

A cada hora que passava, o veleiro ganhava mais velocidade. Chegou ao ponto em que ele saltava para fora da superfície quando uma onda o acertava de frente.

No entanto, isso ainda não foi o mais assustador. Ao menos, não para Xiao Shui.

As garotas, que não conseguiam sentir muito bem a sutileza de algumas Bestas Demoníacas que perseguiam a embarcação, conseguiram manter certa despretensão referente ao perigo ao redor. Elas andavam de um lado para o outro, explorando a paisagem sem medo. E em determinado momento, Corina até falou do quanto se sentia aliviada por não estarem sendo atacados.

Quando ela olhava para trás, para a direita e esquerda, e não via terra em canto algum, ficava temerosa quanto ao que poderia acontecer se o barco fosse atingido por alguma criatura e afundasse. Ela não sabia nadar e mesmo se soubesse, teria fôlego para aguentar voltar ao continente?

No entanto, a falta de inquietação demonstrada por elas perdeu força quando Ning explicou que, na velocidade atual ― embora muito rápida ―, não conseguiriam escapar do faro de um monstro marinho, predador de outros monstros. E apesar de ele ter reforçado que esse tipo de criatura não aparece com frequência e que o veleiro seria ainda mais rápido em breve, isso não diminuiu o novo desconforto experimentado pelas garotas.

Porém, nada disso foi tão estressante para Shui quanto o momento em que ela percebeu algo apavorante. O barco não estava indo para uma ilha ou pedaço de terra qualquer. Ele sequer pretendia explorar o azul que se estendia em quase todas as direções.

Conforme o grupo avançava em sua jornada, mais claro ficava que eles estavam se aproximando da grande parede que marcava o fim do mundo.

O assim chamado “Vazio”, ganhou proporções que do continente não era possível perceber. De certa forma, Xiao Shui teve a impressão de estar olhando para o céu noturno, apesar do sol ainda brilhar forte. Inúmeras estrelas luziam do outro lado do manto escuro que cortava o oceano, revelando dimensões ainda mais abrangentes do que o próprio “infinito azul”.

E isso não era tudo. Depois de dez horas de Viagem, quando eles chegaram tão perto do “Vazio” que foi possível enxergar a borda do mundo e a extensão de uma escuridão que não tinha fim, o grupo foi confrontado pela visão de um espaço contorcido, que oscilava diante de seus olhos, deixando aqueles que não estavam acostumados um tanto desorientados. A parede que se estendia do mais profundo ponto do oceano e engolia o céu se comportava, às vezes, como uma ilusão no deserto causada pelo calor.

Xiao Shui achou aquilo muito estranho e ficou tão desconfortável que acabou sendo obrigada a se sentar. O mesmo aconteceu com Corina que acabou escorregando e caindo sobre o convés do navio. Precisou de ajuda para poder se escorar em um lugar seguro.

Mas as garotas logo descobriram que a estranha impressão não passava de uma alucinação provocada por suas mentes confusas e enganadas pelas marolas do mar que se confundiam com a estranha sensação de estar chegando ao fim do mundo.

De fato, a visão verdadeira do “Vazio” era a de um céu noturno e cristalino, sem nuvens para impedir a imagem do outro lado. Tanto que ― segundo Ning ―, dependendo da fase, era até mesmo possível ver a lua do outro lado.

No entanto, o enjoo e alucinação era algo bastante comum, tão comum quanto as náuseas causadas pelo balançar do navio. E foi por isso, sem surpresa nenhuma, que a tripulação também tinha um remédio para ajudar nesse problema.

Quando enfim a sensação desconfortável passou, Xiao Shui demonstrou toda a sua preocupação por estarem chegando tão perto de algo que possuía um nome tão assustador.

― A gente vai cair se continuar assim ― disse ela, preocupada.

Mas Ning explicou que eles estavam, desde que partiram de Falésia, navegando através de uma corrente marítima causada por aquele estranho fenômeno. E da mesma forma, a embarcação estava avançando de encontro a uma corrente mais forte, geralmente localizada próxima do “Vazio”.

E as deduções do experiente Grã-alquimista, que não precisou perguntar ao capitão ou à tripulação, se provaram certeiras.

Quando anoiteceu, o espaço que marcava o fim do mundo se confundiu de uma maneira assustadora com o céu noturno, de modo que ficou impossível distinguir onde ficava a gigante parede sinuosa que cortava o oceano. Era uma camuflagem perfeita. E isso deixou as meninas ainda mais receosas, experimentando a sensação de que estavam rumando em direção ao abismo ― uma comparação plausível.

No entanto, demonstrando que conhecia o trajeto muito bem, por volta das sete horas da noite, o capitão deu a ordem para que as velas fossem recolhidas e que todos procurassem um abrigo, pois não queria ninguém no convés ou exposto.

E pouco depois de seu aviso, o navio foi tomado por um forte solavanco que chacoalhou toda a embarcação. O choque foi tão poderoso que até mesmo os tripulantes acostumados com a passagem quase foram derrubados. E no caso dos viajantes, o caos foi absoluto.

No momento em que a embarcação entrou na nova corrente, Shui e Ning estavam em um corredor abaixo do convés. O Grã-alquimista bateu as costas e deslizou pelo chão, antes de enfim conseguir se agarrar em algo. Por outro lado, a jovem de olhos azuis saiu rolando descontroladamente. Quando parou, seu cabelo estava tão bagunçado que parecia ter levado um choque. Algo semelhante aconteceu ao Ancião Qiao que estava deitado na parte de cima de um beliche na hora do ocorrido e foi arremessado contra o teto. Corina foi a única a sair impune, pois ela escolheu voltar para a sua cabine e se agarrar em algum canto.

Por sorte, apesar de algumas confusões por parte dos viajantes desatentos, ninguém sofreu ferimentos graves ― uma ocorrência comum nessa parte da jornada.

Seja como for, o caos tomou conta da embarcação por alguns minutos. O ranger da madeira e de coisas caindo foi ainda mais alto do que o som do grito de alguns desastrados. E quando o veleiro enfim entrou na rota desejada e se estabilizou, um barulho intenso e intimidador, que fez Shui se lembrar da queda de uma poderosa cachoeira, tomou conta do ambiente.

A partir daquele momento, quando as coisas começaram a se acalmar ― apesar do som estrondoso do lado de fora ―, o capitão liberou para que as pessoas pudessem andar livremente. Mas desencorajou que qualquer um, em especial quem não fazia parte da tribulação, voltasse ao convés. Ao menos até o dia seguinte. E isso foi respeitado por Ning e os demais.

Na manhã do outro dia, depois de passar uma noite nada confortável em uma cama pequena e que às vezes balançava devido a agitação do mar, Xiao Shui acordou com o corpo tão dolorido que antes de pensar em comer algo para confortar o estômago vazio, sentiu a necessidade de alongar o corpo num espaço aberto e arejado. Por isso, foi direto para o convés. Mas ao chegar lá, teve uma grande surpresa ao enfim descobrir a origem do estrondoso barulho que a fazia lembrar da queda de uma cachoeira.

O veleiro, cujas velas se achavam dobradas, estava sendo arrastado por uma poderosa corrente de água que se deslocava pelo oceano como um amplo e poderoso rio descendo a montanha. A embarcação surfava sobre uma superfície tempestuosa, que se destacava da calmaria das marolas menores a algumas centenas de metros de distância.

Por mais inacreditável e surreal que parecesse para ela, que nunca tinha visto ou ouvido falar de algo semelhante, existia de fato um rio se movendo no meio do oceano, tão forte e incontrolável que parecia estar rasgando o mar. E ali do lado, a pouco mais de trezentos metros de distância, encontrava-se um vácuo gigante que se estendia até o céu e, apesar do sol, preservava a noite, com estrelas vivas e um espaço desconhecido infinito.

O “Vazio” estava tão próximo que Shui conseguia enxergar a parte debaixo dele ou, melhor dizendo, o vácuo interminável que se estendia para baixo, dando a impressão de um abismo escuro sem fim. A visão esmagadora provocou arrepios em sua espinha e, ao mesmo tempo, uma sensação indescritível de maravilhamento e descobrimento.

Seu fascínio foi tão grande que, nas horas seguintes, ela ficou admirando o misterioso fenômeno. Tentou contar as estrelas, mas o forte brilho do sol tornava essa uma tarefa complicada e enganosa. Então, decidiu se contentar apenas em admirar os lampejos de alguns corpos celestiais que vez ou outra luzia com mais intensidade.

Neste dia, o Ancião Qiao decidiu enfim dedicar algum tempo para aproveitar o oceano. Ele já não se sentia tão mal quanto antes e seu rosto havia voltado às cores normais. E já que estava cansado de ficar preso dentro de uma cabine minúsculo passando mal, quis ficar o máximo de tempo possível ao ar livre.

Por outro lado, Corina preferiu permanecer no interior da embarcação. No dia anterior, ela não sentiu medo e ainda não sentia ― é preciso reforçar ―, mas o barulho estrondoso do “rio marinho” fez seu coração bater mais rápido. E quanto a Ning, bem... ele andava para cá, voltava para lá, completamente livre da empolgação juvenil ou do desconforto.

A viagem seguiu sem grandes surpresas nas horas seguintes. Em certo ponto, o barulho estrondoso da corrente marítima já não impressionava tanto, embora o mesmo não pudesse ser dito sobre o “Vazio”.

Mas seja como for, a embarcação seguia feroz e imparável rumo a um destino comum para alguns e estranho para outros. E a despeito das velas dobradas, o navio dispunha de uma velocidade tão absurda que a cada minuto eles cobriam dezenas de centenas de metros. Mas sem um ponto para observar e com a água já agitada, os passageiros sequer notavam a incrível mudança.

E foi por causa do extraordinário deslocamento do barco que a mudança mais aguardada aconteceu antes do que era previsto.

A viagem não seguiu em linha reta, direto para o destino, como era de se esperar. Quando a gigante parede escura que engolia o céu fez uma curva acentuada, permitindo ao oceano se expandir ainda mais, o “rio marinho” acompanhou o exemplo, mantendo-se sempre próximo daquela que o criou.

Depois de algumas horas, a curva foi a primeira alteração significativa que o grupo experimentou. No entanto, o evento não representou nenhum risco para o veleiro que simplesmente seguiu o curso do rio. Mas uma nova visão tomou conta do cenário.

O assim chamado “Vazio”, que antes não apresentava grandes mudanças em sua estrutura, transformou-se em uma enorme serpentea que cortava o mar.

A partir de então, não demorou muito para que uma nova cena ganhasse destaque diante dos olhos dos viajantes.

Ao longe, tão distante que a primeira visão foi de um pequeno ponto no meio azul, surgiu uma paisagem que levou todos para a ponta do navio. O primeiro a notar a alteração foi Ito Masao, que já esperava por aquilo. Em seguida, ele chamou os convidados para a proa, para que pudessem ter o primeiro vislumbre de seu lugar de origem.

Quando ouviram aquilo, tanto Shui quanto Corina ficaram empolgadas, embora uma demonstrasse tal sentimento mais do que a outra. Apesar de só conseguirem enxergar um ponto distante, a visão bastou para que as deixassem com um frio na barriga, indicando a chegada em um lugar novo. Ning também se mostrou bastante animado. Mas o Ancião Qiao, por outro lado, permitiu que o nervosismo tomasse controle outra vez.

Em breve eles desembarcariam em uma terra nova e desconhecida, na qual a presença de aliados era escassa e a existência de inimigos, desconhecida. Sendo ele o único líder oficial presente, é sua função garantir a segurança de todos. E saber disso o deixava ansioso.

O barco continuou navegando através do rio por alguns breves minutos, conforme a imagem da ilha se tornava mais evidente. E foi então que algo curioso chamou a atenção dos passageiros: o “Vazio” passava logo atrás da enorme porção de terra. A estrutura misteriosa estava tão perto do reino que, de onde eles viam, parecia ocupar todo o cenário de fundo.

Entretanto, a viagem através da poderosa movimentação de água não demorou muito a partir daquele instante. Sabendo que haviam chegado no ponto principal da viagem e que não poderiam continuar daquele jeito por mais tempo, o capitão, primeiro, deu a ordem para que os passageiros se afastassem da beirada do navio e procurassem um lugar para se apoiarem. Logo após, ele mandou que seus tripulantes desdobrassem as velas. E no mesmo segundo em que elas foram abertas, o navio sofreu um poderoso solavanco à medida que a estrutura rangeu por inteira.

Nos instantes seguintes, o timoneiro, responsável por guiar a embarcação, travou uma árdua batalha contra a implacável correnteza que não queria deixar o navio sair. Vibrações intensas espalharam por todo o barco ao passo que as velas eram preenchidas por rajadas de vento que empurravam para fora da corrente marinha.

Deixar aquela perturbação logo se provou ainda mais difícil do que entrar. Sob os comandos do capitão, o timoneiro e o resto da tripulação fizeram mais de uma tentativa de se libertar, mas foram repetidamente tragados de volta para a correnteza imparável. A luta foi tão árdua e violenta que, para não serem arremessados em um dos solavancos, Ning e os demais ― que insistiram em continuar no convés ―, viram-se obrigados a sentar no chão enquanto se agarravam em algo.

De fato, a corrente marinha que beirava o “Vazio” mostrou o verdadeiro motivo para nenhum monstro se aventurar por ali naquela ocasião, quando repetidas vezes arrastou o navio de volta para o centro do rio. E se aquela não fosse uma embarcação reforçada, de certo já teria sido desmantelada.

No entanto, os homens e mulheres escolhidos por Masao para fazer a viagem, eram pessoas acostumadas ao trajeto. E apesar da dificuldade inicial, eles conseguiram aproveitar da quebra de uma onda para abrir caminho e saltar, quase literalmente, para fora da correnteza que os levou até ali.

Daquele ponto em diante, o barco foi conduzido apenas pelas rajadas de vento. E foi também, nesse momento, que a preocupação dos tripulantes aumentou. Pois eles não estariam mais protegidos pelas poderosas correntes marítimas e monstros eram comuns naquela região.

Foi pensando nisso que, para diminuir a chance de um ataque, todos os praticantes presentes do Reino Espirituoso, incluindo o Ancião Qiao, passaram a liberar ondas de Energia Espiritual no intuito de intimidar e afastar as ameaças. Uma ação que se provou eficaz. Porém, isso não impediu que algumas Bestas Demoníacas curiosas se aproximassem.

Em certo momento, Xiao Shui não conseguiu ver muito bem, mas jurou ter avistado uma sombra na água quase tão grande quanto o veleiro. Em outra ocasião, uma agitação tomou conta da superfície, levando Corina a se afastar da beira do navio.

O capitão sabia que quanto mais permanecessem ali, maior seria a chance de sofrerem um ataque. Era apenas uma questão de tempo para a curiosidade das criaturas se transformarem em desejo assassino. Por isso, ele deu a ordem para que as mulheres responsáveis por guiar o ar se esforçassem mais e: “arrastar uma tempestade, se for preciso”.

Por causa disso, não demorou muito para que eles conseguissem enfim se aproximar da ilha isolada e entrar na principal baía do Reino da Lua Verde. E foi naquele segundo que os convidados tiveram a primeira visão completa do local em que passariam os próximos dias.



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