Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 179: Pequena e Simples

Quando as duas atacantes partiram, a tensão na estrada não diminuiu. Todos ficaram bastante nervosos com a tentativa de assassinato repentina que mirava a vida de alguém que acabou de chegar.

Masao e seus subordinados queriam sair dali o quanto antes e ir para a cidade que se encontrava não muito distante. Por outro lado, o grupo de Ning estava bastante agitado depois de ver um renomado Ancião ter dificuldade para enfrentar um inimigo desconhecido e ainda sair ferido da disputa.

Xiao Qiao não possuía nenhum ferimento profundo aparente, mas era possível notar cortes superficiais em seu rosto e braços. E para ser sincero, nem mesmo ele entendia direito como havia sido atingido.

Neste momento, Shui saltou do riquixá e foi correndo ver se o pai da amiga precisava de ajuda.

― Está tudo bem? ― perguntou, preocupada. ― Precisa de algo para parar o sangramento?

― Eu estou bem ― respondeu Qiao em um tom calmo para tentar tranquilizar a garota. ― Isso vai parar sozinho ― falou enquanto limpava o risco vermelho no rosto com as costas da mão direita.

Ainda assim, a despeito da confiança passada pelo líder, era difícil evitar a inquietação em uma situação tão atípica.

― Você é médico, não é? Então vem aqui e olha como ele está. ― Shui achou que o mínimo que o preguiçoso podia fazer era se levantar de seu assento confortável e examinar o homem que os protegeu.

Mas apesar do tom de quase bronca usado pela amiga, ele não se mexeu.

― Relaxa, pequena Shui. Ele vai ficar bem ― respondeu Ning, que parecia bem à vontade a despeito do acontecido.

― Você não tem jeito, sabia? ― disse a jovem de cabelo azul em tom de censura. ― Deveria mostrar mais gratidão. Elas vieram aqui atrás de você.

― Ainda bem que me confundiram. ― Ning abriu um sorriso sincero de quem estava feliz pelo equívoco do inimigo.

Mas sua atitude apenas serviu para irritar a colega.

― Covarde ― acusou ela.

Entretanto, Xiao Qiao a interrompeu antes que as acusações continuassem.

― É melhor assim ― disse ele. ― Aquela mulher que me atacou era muito forte. Se ela soubesse quem era o verdadeiro Alquimista, seria difícil pará-la.

― Mas olha ― escorado na lateral do riquixá, Xiao Ning mirou o praticante que o protegeu e comentou: ― Fiquei bastante surpreso com a sua Técnica de Combate. Ela é igual a usada por Xiao Guo. ― A forma de golpear o ar usando a palma da mão logo despertou no preguiçoso a lembrança de quando enfrentou um dos mais novos Despertados da Família Xiao durante o Evento de Seleção.

― Ah, isso é porque nós temos o mesmo mestre ― informou o Ancião, que ainda olhava com atenção para dentro do bosque.

Após descobrir sobre a ligação entre o seu antigo oponente e o 5º Ancião, uma breve discussão teve início no grupo, dado que Ning se surpreendeu que duas pessoas com cultivos tão distantes dividiam o mesmo instrutor. Foi neste momento que Ito Masao se aproximou.

― Fico feliz por ninguém ter se ferido gravemente ― falou. ― Mas é melhor partirmos. Pode ser perigoso permanecer aqui por muito tempo.

Pela sua forma de agir, notava-se que ele não esperava nenhuma resistência quanto à sugestão de deixarem a estrada deserta. E de fato, assim que suas palavras saíram, Shui logo voltou para o veículo e se sentou no lugar de antes.

Por outro lado, o Ancião Qiao não se moveu. O praticante que tinha acabado de enfrentar uma batalha complicada ficou parado, encarando o Comandante da Ordem Pública do Reino da Lua Verde com olhos julgadores. Sua postura era firme e ao mesmo tempo desafiadora.

― Se não for um problema, poderia nos explicar o que acabou de acontecer? ― A despeito das palavras civilizadas, o tom escolhido pelo principal agente externo da Família Xiao era rígido e incriminatório.

― Explicar o quê? ― perguntou Masao, que preferiu fingir certa ignorância de início.

― Acabamos de chegar em seu país e duvido que aquela seja uma inimiga que nos perseguiu desde o Império Dourado. Quem é ela e por que fomos atacados?

Geralmente Xiao Qiao era uma pessoa bastante reservada e por vezes lhe faltava atitude para se impor e manifestar sua presença. Mas no atual momento, ele parecia pronto para iniciar outra luta. E sua postura hostil gerou grande desconforto em Masao, que franziu o cenho e se recusou, a princípio, a fornecer uma resposta clara.

Mais uma vez, o clima foi de tensão. Nenhum dos líderes se mostrou disposto a ceder e era como se um novo confronto pudesse surgir. Por um lado, existia desconfiança e incerteza. Por outro, a acusação implícita servia para ferir o ego.

E quando parecia que uma nova rixa estava para surgir, Xiao Ning de repente se manifestou.

― Não se preocupe tanto, Ancião ― disse ele de forma descontraída. ― Agora que já chegamos aqui vai ser difícil voltar atrás. Por enquanto, vamos ver esse tal Xogum e fazer o que viemos fazer.

As palavras despreocupadas de Ning serviram para diminuir a tensão. E em agradecimento, Masao fez questão de garantir ao Grã-alquimista que desconhecia a identidade das agressoras. Mas garantiu que, ao voltar para a cidade e assumir seu posto, ele colocaria a força sob seu comando para investigar o atentado e capturar as responsáveis.

Xiao Ning agradeceu pela iniciativa, mas o 5º Ancião ainda não estava convencido. Apesar disso, ele decidiu continuar com a excursão. Agora que sabia de um perigo tão real e potencial, ficaria duas vezes mais atento a qualquer anomalia e agiria assim que fosse preciso.

Seja como for, Xiao Qiao voltou para o riquixá de antes e logo a viagem continuou.

Após alcançar o topo do morro, o veículo deu início a uma breve descida que não era muito acentuada. Daquele ponto em diante, a jornada não durou mais do que cinco minutos. Mas depois do ocorrido, ninguém conseguiu relaxar por um só segundo e todos espiavam as árvores ao redor, para ver se encontravam sombras estranhas ou coisas parecidas.

O grupo só voltou a se sentir mais seguro quando, depois de passar pela primeira curva que levava para um caminho à direita e então voltar a seguir em frente, eles enfim chegaram na cidade. E a primeira visão que os viajantes do distante Império Dourado tiveram foi surpreendente.

Quando viu o telhado de algumas casas se destacando por trás de uma elevação natural, ainda no barco Rosa Azul, Shui entendeu que ali perto ficava um povoamento. Naquele momento, não soube o que esperar, mas decerto, o que encontrou foi inesperado.

Como seu único ponto de referência ao pensar em uma capital era Reluzente, ela esperava se deparar com um agrupamento colossal de construções e edifícios enormes, além de uma multidão de pessoas apressadas e centenas de carros trafegando por ruas largas e extensas. Porém, o que encontrou foi algo mais modesto e dotado de um charme único.

A entrada da cidade era marcada por um arco gigante dotado de um laranja vivo que se estendia de um ponto ao outro da estrada e que era sustentado por dois pilares imensos da mesma cor. No centro da curvatura se encontrava uma inscrição que dizia o seguinte: Bem-vindos à Porto Verde; que as almas perdidas encontrem seu caminho.

A estrutura causava um impacto imediato, capaz de deslumbrar quem a contemplava. Afinal, não se tratava apenas de um arco feito de pedra conectado por dois pilares. Ao longo de todo o seu arranjo existiam formas e desenhos entalhados na superfície dura com uma sutileza admirável. E ao lado, nos pés das pilastras, encontrava-se um jardim florido e muito colorido.

Neste momento, o veículo em que Masao e seus homens estavam, diminuiu de velocidade e emparelhou ao ocupado por Shui e os demais, ficando mais próximo de Ning e Corina. O Comandante da Ordem Pública, ainda envergonhado pelo atentado de poucos minutos atrás, em sua tentativa de amenizar o erro de deixar um inimigo se aproximar, olhou para o seu tão especial convidado, apontou para o arco e falou:

― Aquela é a passagem das almas ancestrais. Dizem que o nosso primeiro imperador, que existiu há mais de dois mil anos, criou ele para que os guerreiros que morreram em batalha pudessem encontrar o caminho de volta para casa mesmo do mundo dos mortos.

A curiosidade não serviu para abrandar o nervosismo que ainda pulsava no coração de alguns, afinal eles quase morreram. Mas Shui e Corina, ainda assim, acharam fascinante encontrar um monumento tão antigo logo na entrada.

Daquele ponto em diante, os veículos seguiram a viagem um ao lado do outro, já que o comandante desejava usar o tempo que ainda lhe restava para amenizar a situação.

A primeira coisa que eles encontraram ao passar pelo portal foi uma imensa feira que se achava a pouco mais de dez metros de distância e se estendia por quase dez vezes a esse valor. Ali ficava uma grande mistura de vendas de frutos do mar e comidas de rua. O cheiro de peixe fresco era forte e presente, mas apesar disso não chegava a causar náusea ou coisa do tipo. Era como se existisse algo a mais no ar, minimizando o desconforto. Além do mais, a brisa fraca também trazia o aroma agradável de algum prato especial sendo preparado na chapa e o vapor saindo de algumas tendas se misturava às sensações, criando novas fragrâncias; algumas enjoativas, outras atrativas.

Enquanto passava pelas barracas e tendas dispostas uma ao lado da outra em um comprido corredor e que às vezes revelava desdobramentos laterais que levava a partes diferentes do mercado, Xiao Shui ficou encantada com a grande variedade que seus olhos encontraram sobre as bancadas ou dentro de caixotes repletos de gelo, e sendo assados em fornos pequenos ou em espetos.

Ali se encontrava peixes de todas as cores e tipos dos quais ela jamais havia visto ou ouvido falar. Alguns possuíam o formato igual aos pequenos que ela encontrava no riacho que descia a Montanha Ancestral de Jade, outros eram compridos igual a uma cobra e alguns pareciam ser feitos de espinhos.

A imensa variedade também deixou Corina impressionada, porém ela não conseguia ver muita coisa, já que o riquixá usado pelo comandante estava bloqueando parte de sua visão.

Em determinado momento, quando viu três chapas grudadas, chiando devido ao calor intenso à medida que enguias, lulas e alguns peixes picados eram adicionados, Ning quis parar a excursão para aproveitar um pouco da comida local. Se sua saída não estivesse bloqueada de um lado pelo Ancião e do outro pelo veículo de Masao, ele teria saltado sem avisar e feito a própria expedição.

Contudo, todos, sem exceção, pediram para ele se conter. Afinal tinha sido uma viagem longa e depois do ataque que sofreram, o que o grupo mais desejava era estar em um lugar tranquilo onde pudessem relaxar. A exploração ou qualquer tipo de aventura pela cidade poderia ser feita depois.

Shui foi uma das que mais insistiu para ele não aprontar nada. Ela também queria ver a feira um pouco mais, até porque parecia que o comércio se estendia por outras direções que não era a rua principal. Inclusive, em determinado momento, ela viu um aquário em uma esquina que a deixou bastante curiosa. Porém sua estamina não era a mesma do chefe e colega.

E isso, é claro, desapontou o Grã-alquimista. Mas para compensá-lo, Ito Masao pediu para que um de seus subordinados comprasse uma lula no palito para todos.

Tanto o Ning, quanto o Ancião Qiao já estavam acostumados com aquele prato típico de regiões costeiras e desfrutaram da iguaria sem fazer cara feia. As garotas, por outro lado, estranharam um pouco.

Não chegava uma variedade grande de peixes na Cidade da Fronteira do Caos e por isso elas nunca haviam experimentado nada do tipo. A primeira reação que tiveram ao molusco foi de estranhamento a sua forma peculiar, e cautela. Antes de mordiscar um pedaço, ambas investigaram o sabor usando a ponta da língua. E logo de início, Shui percebeu que não gostaria muito. Ainda assim, resolveu experimentar.

O gosto era salgado à princípio, mas ficava mais suave à medida que a pessoa mastigava. E a textura era borrachuda, o que tornava a mastigação uma tarefa mais difícil do que parecia.

Apesar de ser sua primeira vez provando, Corina gostou bastante da experiência. Em contrapartida, como tinha imaginado desde o começo, Shui não gostou tanto assim. Ela tentou disfarçar a careta, mas ficou mastigando um único pedaço por tanto tempo que ficou difícil fingir.

Pensando que seria uma tremenda falta de educação jogar a comida fora, a jovem de cabelo azul-claro decidiu guardar o espeto para mais tarde, até saber o que fazer. Mas Ning percebeu sua careta e falou:

― Se não quiser, eu como para você.

Shui se sentiu um tanto quanto constrangida por ser exposta daquela maneira, mas percebeu que essa seria uma opção melhor do que guardar a comida para mais tarde. E ele, por sua vez, comeu tudo.

Os dois veículos continuaram andando lado a lado pelo distrito comercial que, apesar das barracas abertas, não estava tão cheio assim. Segundo o Comandante da Ordem Pública, a principal movimentação acontecia pela manhã, quando as pessoas saiam para comprar frutos do mar frescos, ou à noite, durante a procura dos jovens por diversão, já que o local costuma ficar agitado como em um festival.

Entretanto, a despeito da pouca movimentação, foi difícil avançar. Conforme seguiam em direção ao centro da cidade, mais pessoas que reconheciam Masao, uma das figuras mais influentes do reino, começaram a aparecer.

Alguns tentaram se aproximar com presentes improvisados, mas acabaram sendo barrados pelos dois subordinados que pediram para as pessoas se afastarem. Mesmo assim, o comandante aceitou a generosidade de seus admiradores e guardou os presentes que recebeu em sua própria Bolsa de Armazenamento.

Eles continuaram avançando e conforme a notícia de que o Comandante da Ordem Pública havia retornado se espalhava, mais pessoas apareciam, gerando um caos momentâneo.

Foi neste momento que um homem calçando sandália rasteira feita de madeira surgiu. O sujeito vestia um kimono semelhante ao de Masao, porém coberto de retalhos e desfiado nas pontas. O verde que o compunha estava desbotado e era notável a sujeira encardida em certas partes. Seu rosto exibia uma melancolia patética, porém apagada por um sorriso abobalhado que deixava a região ao redor de seus olhos enrugada.

― Ora, ora! Ora, se não é o grande comandante, Ito. ― Com uma voz animada e esfregando as mãos, o sujeito miserável se aproximou com a cabeça baixa e os ombros curvados em uma postura de submissão. ― Vejo que voltou de suas férias. Foi divertido?

― Eu não estava de férias, Kei.

― Sim, sim! Mas é claro que não. O comandante foi procurar pela cura do excelentíssimo Xogum. E vejo que trouxe companhia. São eles que vão salvar o Xogum? ― Kei se curvou para Ning e os demais enquanto exibia um respeitoso cumprimento, mas sem deixar de demonstrar curiosidade pelos rostos estranhos. ― É preciso muita coragem para cruzar o oceano e chegar ao nosso maravilhoso reino. Ainda mais de crianças.

― Eles são só amigos que encontrei pelo caminho ― disse Masao, mantendo a mesma expressão.

― Que notícia maravilhosa! ― exclamou em um tom jubiloso. ― Se são amigos do comandante, são amigos de Kei. Se precisarem de qualquer coisa, falem comigo que consigo para vocês. Dou a minha palavra. E todos neste reino sabem que sempre cumpro minha palavra.

― Eu agradeço pela disposição ― Masao logo tratou de cortar o homem empolgado ―, mas nós precisamos ir.

E então, percebendo que poderia estar causando incômodo, Kei se desculpou e deixou o grupo passar. Quando se afastaram o bastante para que não pudessem ser ouvidos, Ito se virou para os convidados e falou:

― Sinto muito por isso. Desde que perdeu a filha, ele também se perdeu. Costumava ser de grande confiança, mas hoje é só um sujeito desgraçado.

Ouvindo aquilo, Shui espichou a cabeça para fora do riquixá e olhou para trás. Foi quando reparou que Kei continuava no mesmo lugar, olhando para o grupo e acenando.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.



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