Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 189: A inquietação de Ning

As boas-vindas aos recém-chegados seguiu em um clima bastante agradável. O Xogum se desculpou pela ausência de Masao. Já que o Comandante da Ordem Pública havia trazido o grupo, seria natural sua presença. Mas, ao que parece, ele tinha saído para organizar o trabalho que ficou parado durante sua ausência. Após seu breve pedido de desculpas, Taishi fez uma série de perguntas sobre o Império Dourado, a cidade de onde eles vieram e quis saber mais a respeito das 7 grandes potências que dominam o local.

A noite passou e o jantar se aproximou do fim. Ainda assim, a mesa continuava repleta de iguarias e pratos apetitosos que sempre eram repostos pelo chefe de plantão. Ning, Corina e Xiao Qiao experimentaram de tudo, até mesmo as coisas que lhes eram estranhas. Shui, por outro lado, comeu apenas peixe assado, frito, e alguns vegetais.

Em certo momento, notando que a amiga estava selecionando com cuidado o que colocaria na boca, o Grã-alquimista resolveu perguntar:

― Não vai experimentar esses rolinhos? ― apontou para o arroz enrolado em alga com um pedaço de Atum.

― Não. Eu... prefiro o peixe assado ― disse ela em um tom educado.

― Tem certeza? É muito bom ― insistiu o outro.

― Mas... mas isso ― um tanto envergonhada, ela se inclinou para o colega e sussurrou, apesar de todos ali terem ouvidos apurados: ― isso está cru.

Xiao Ning abriu um sorriso divertido ao ouvir a resposta. Não era sua primeira vez comendo algum tipo de carne que não passou pelo teste do calor. Contudo, entendia a suspeita de quem nunca provou nada parecido.

― Aqui! Prova um pouquinho. ― Imitando o gesto de Kali, ele pegou uma porção da iguaria e estendeu o Hashi em direção à Shui. ― Vamos! Prova só um pedaço.

A jovem de cabelo azul hesitou diante da oferta. Mas como sentiu que estavam todos olhando para ela, acabou cedendo e mordiscando um pedaço. Ela mastigou a comida por um longo tempo e, por mais que estivesse tentando se manter natural, não foi preciso um grande esforço para perceber que aquela não se tornaria uma de suas refeições preferidas.

E daquele ponto em diante, não demorou muito para o jantar chegar ao fim.

Enquanto isso, em um canto afastado de Porto Verde, longe do Morro da Melodia, no meio de uma mata fechada.

Uma mulher de cabelo rosa, raspado do lado esquerdo, com tatuagem de flores de cerejeira em um dos braços, andava nervosamente de um lado para o outro de cabeça baixa à medida que sua mão apertava o punho da Katana pendurada em sua cintura. Ao seu redor, um grupo de crianças acompanhadas por alguns adultos ― a maioria de idade avançada ―, achavam-se sentados no chão e em pedaços de troncos.

Aika, a jovem raivosa que havia atacado Ning e seu bando ainda naquele dia, estava bastante ansiosa. Não conseguia ficar parada. Apesar da noite já ter caído e de o brilho de uma única fogueira lançar uma luz aconchegante pelo local, era impossível para ela se acalmar.

― Não se preocupe tanto. Shin está lá. Eles vão ficar bem. ― Neste momento, uma mulher de cabelo escuro e curto, cujo ombro esquerdo se encontrava engessado por ataduras, aproximou-se e tentou consolar a amiga. Aquela era Keiko, sua cúmplice no atentado.

― Eu sei. Mas... se eu não tivesse sido tão imprudente, nada disso teria acontecido. ― Aika estava visivelmente arrependida. Algo que se notava pela voz trêmula.

― Você fez o que achou certo. Recebemos a informação muito tarde. Não tivemos tempo de pensar em um plano melhor. Tenho certeza que todo mundo sabe disso.

E de fato, apesar de estarem sendo forçados a se esconderem no meio do mato fechado, longe de suas casas, nenhum dos presentes parecia irritado com a garota ou coisa do tipo. Eles estavam aproveitando de uma refeição nada luxuosa à beira da fogueira enquanto conversavam de maneira bastante descontraída. As crianças corriam de um lado para o outro sem qualquer medo do escuro ou de encontrar monstros atrás de algum arbusto. Ao passo que os adultos precisavam, de tempos em tempos, colocar a tigela de lado e dar uma bronca em algum grupo travesso, alertando sobre os perigos de se perderem.

Apesar disso, ela não conseguiu se acalmar.

Sua apreensão foi diminuir apenas quando Shin, acompanhado de homens e mulheres bem armadas, apareceu tarde da noite. Eles atravessaram a mata, quebrando o capim denso com seus corpos esfolados, cansados demais para levantar as pernas. Alguns ainda estavam em perfeita forma, porém outros exibiam feridas abertas e contusões. Através de suas máscaras quebradas, era possível ver metade de um rosto com corte na sobrancelha ou outro com o nariz sangrando.

Quando viu o grupo chegando, as crianças correram para abraçar seus pais e mães machucados, esbanjando alegria e tristeza, tudo ao mesmo tempo. No entanto, ninguém foi mais rápido do que Aika, que pulou em Shin e o abraçou.

― Você está bem? ― exasperou preocupada. ― Aquele desgraçado te machucou? E os outros? Todos conseguiram sair?

Shin precisou firmar as pernas, para não ser derrubado pelo carinhoso ataque surpresa. As perguntas bombardearam seus ouvidos, impedindo-o de falar. Mas antes que fosse afogado em um profundo interrogatório, ele colocou a mão sobre a testa da jovem preocupada e abaixou sua cabeça. Um gesto quase infantil, porém bastante eficaz.

― Acalme-se! Eu acabei de chegar. Pelo menos me deixe respirar ― disse ele. ― O mais importante é que deu tempo de todos vocês evacuarem. E não se preocupe. Nós conseguimos recuar antes que as coisas ficassem mais complicadas.

Quando ouviu isso, Aika deixou escapar um suspiro de alívio. A expressão em seu rosto se tornou mais suave e seus ombros relaxaram.

― Eu... sinto muito! ― Por fim, lamentou. ― Se eu não tivesse atacado aquele homem, o Alquimista, nada disso teria acontecido. Não achei que o Comandante da Ordem Pública fosse retaliar tão rapidamente. Ele nunca tinha feito esse tipo de coisa antes.

― O que está feito, está feito ― respondeu Shin. ― Não adianta ficar lamentando agora. Além do mais ― ele contornou a garota arrependida e se sentou próximo da fogueira ―, depois de hoje, não acho que sua decisão tenha sido assim tão precipitada.

― Como assim, chefe? ― perguntou Keiko, que também ficou bastante aliviada por ver todos bem.

― Você já melhorou? Seu ombro parou de sangrar? ― quis saber o praticante do Reino Soberano do Despertar. Até algumas horas atrás, aquela menina tinha um rosto pálido e gemia de dor. Mas parecia já estar voltando ao normal.

― Estou melhor do que nunca! ― disse Keiko em um tom energético. ― Já estou pronta para lutar e dar todo o carinho que minha amada desejar.

A despeito do comentário, Aika decidiu focar sua atenção no que parecia ser mais importante.

― O que você quis dizer com isso? ― indagou ela. ― Por minha causa nós fomos atacados.

― Para começar ― Shin tirou o cachimbo de haste alongada que estava escondendo dentro da manga de seu Kimono e mordiscou a ponta. Fez um breve silêncio. Refletiu por um segundo e voltou a falar: ― Devido a quem nós somos e o perigo que representamos, eventualmente eles nos atacariam. Se não fizeram isso antes é porque a saúde do Xogum piorou e eles tinham medo de ser emboscados por um ataque surpresa do general Shinkai enquanto estavam ocupados tentando nos eliminar. Contudo, se a situação de Taishi se reverter, eles não teriam mais motivos para se preocupar conosco. Muitas pessoas se juntaram a nós ao longo deste ano. Seria difícil fugir e nos escondermos da maneira que estamos agora. Teríamos de enfrentar as forças do Xogum de frente.

― Então, você acha mesmo que aquele Alquimista consegue encontrar uma cura? ― perguntou Keiko, preocupada.

― Pelo menos, é o que Masao acha ― confessou Shin, usando um tom grave. ― Ele não teria feito aquilo, se não estivesse esperançoso.

― Eu devia ter acabado com aquele cara quando tive a chance ― bufou Aika à medida que apertava o punho da Katana.

E em resposta, o praticante de aparência desleixada lançou um olhar de repreensão para a garota. Para quem se dizia arrependida, ela parecia pronta para entrar em outra briga.

― Isamu acredita de verdade que o Xogum é capaz de usar a Melodia Ancestral ― continuou Shin em um tom preocupado. ― Se sua saúde melhorar e isso acontecer, nós não teremos a menor chance.

Diante de tal declaração, o trio se calou. Enquanto os demais celebravam o reencontro, pensamentos sombrios se apoderaram de suas mentes. Foi apenas quando Keiko, que também estava pensativa e preocupada, resolveu fazer uma pergunta simples, que isso mudou.

― O que faremos agora?

Shin soltou um suspiro pesado e se levantou. Queria ficar descansando um pouco mais, porém não era o momento certo.

― Eu vou para a cidade, ver se nossas amigas têm alguma informação nova ― disse ele se levantando.

― Eu vou com você. ― Aika estava determinada. Mas o temido Matador de Santos a parou.

― Você vai ficar. Seu rosto chama muita atenção, diferente de mim, que não passo de um velho com cara de bêbado. Ficarei bem ― garantiu. E após dizer isso, ele voltou a entrar na mata densa e se afastou, sozinho.

***

Não é incomum para um reino ou império, criar a imagem de um grande campeão, uma pessoa imbatível, tão forte e influente que, sozinho, é capaz de abalar o espírito de um exército. No Império Dourado, aqueles que ocupavam tal posição eram indivíduos cujo nome se estendiam além das fronteiras, como a Santa Mística, Heloísa Valentina de Carvalho, o imperador, o único praticante de todo o continente a atingir o auge do cultivo, e outras figuras de liderança e destaque.

No Reino da Lua Verde, quem se sobressaiu acima de todos por muito tempo foi o Grande General Shin Aburaya, o Demônio da Lâmina Invisível, Matador de Santos. Durante muitos anos, sua força foi inquestionável. Símbolo de terror e morte para os inimigos. No entanto, depois de sua traição, outra pessoa tomou o seu lugar. E este era Isamu Mikan, o novo general das tropas do Xogum, um comandante supremo, conhecido pela alcunha de “Mestre das Espadas Uivantes”.

Com sobrancelhas finas e compridas, cabelo curto, estatura elevada e corpo esguio ― composto por músculos discretos, Isamu não era uma figura que chamava muita atenção pela aparência. Suas roupas eram simples. Nada mais do que um Kimono branco ou cinza, decorado por poucas listras. E nos pés, sempre trazia suas características sandálias de madeira.

O Espirituoso de 5ª Camada, neste momento, encontrava-se parado no pé do Morro da Melodia, do lado de fora dos portões que marcavam os limites do território do castelo. Ele estava de pé, com os braços cruzados, olhando para a única estrada que levava até aquele canto remoto. Já fazia algum tempo que havia se posicionado ali, apenas esperando.

E então, depois de um longo período aguardando, uma carruagem guiada por um sujeito solitário, cuja luz das lanternas nos muros refletia uma expressão cansada, se aproximou. Masao exibia um rosto desanimado, tomado pela frustração. Quando chegou perto de seu companheiro que servia ao mesmo líder, sequer o cumprimentou. Apenas continuou guiando seu cavalo até a entrada do Morro da Melodia.

Mas antes que ele pudesse ir longe demais, Isamu abriu a boca e falou em um tom calmo, porém pesado:

― Onde esteve? ― perguntou enquanto se virava para encarar o veículo que parou logo em seguida.

― Desde quando eu lhe devo explicações? ― retorquiu o comandante de uma maneira ranzinza.

― Mover os soldados sem o consentimento do Xogum é uma violação grave ― contrapôs o outro.

Masao, que a todo momento se manteve focado no portão logo a frente, virou a cabeça de lado e lançou um olhar severo em direção ao colega.

― Estava me espionando?

― Faz parte do meu dever saber o que acontece neste reino.

― Então você sabia que seu “amigo” estava se escondendo naquele lugar? ― mudou o tom para uma acusação implícita.

― Desde o dia em que ele se mudou para aquela casa caindo aos pedaços ― respondeu Isamu com extrema sinceridade.

― Por que não disse nada? ― repreendeu Masao, demonstrando um claro descontentamento. ― Aquele homem é o nosso maior inimigo.

― Eu falei para o Xogum. Você também teria ficado sabendo se não tivesse partido sozinho em uma “aventura” para intimidar os habitantes daquela vila.

― Eu sou o Comandante da Ordem Pública e aquelas pessoas estavam escondendo uma criminosa procurada. ― Masao estava mostrando uma fúria crescente. Sentia-se injustiçado. ― Se não tivessem escondido uma informação tão importante, eu poderia ter levado uma tropa maior e acabado com aquele homem...

― Você o subestima. ― O colega ainda tinha mais algumas coisas para dizer. Porém, o sujeito de sobrenome Mikan o cortou de repente. ― O resultado teria sido o mesmo. Parece se esquecer que a maioria das pessoas daquela vila são desertores com experiência em combate. E mais importante: ― sua expressão se tornou sombria e sua voz se tornou mais pesada ― quem irá matar Shin, serei eu. Você não é um oponente digno.

― Então, por que não cria coragem e vá atrás dele? ― Ao som dessas palavras, Masao incitou o cavalo que mais uma vez voltou a marchar em direção a entrada do Morro da Melodia.

***

Neste momento, dentro do castelo, Xiao Ning se achava em uma varanda no segundo andar que possuía uma vista parcial para a cidade abaixo. Ele contemplava as luzes das lanternas acesas, que em certas partes apresentavam timidez e calmaria, mas em outras, ou melhor, em um lugar específico, exibia a vivacidade de uma noite festeira. Sua expressão era de profunda contemplação. Pensamentos conflituosos e certeiros, polidos ao longo de milênios de experiência, povoavam sua mente.

Ah! É aqui que você está.

Foi então que uma voz familiar interrompeu suas reflexões, obrigando-o a se virar para trás.

Ainda usando seu vestido, Xiao Shui caminhou até ficar ao seu lado.

― Eu passei no seu quarto, mas não te encontrei ― disse ela, que se escorou no parapeito e parou um segundo para admirar a vista.

― Te deixaram andar por aí sem uma escolta? ― comentou o Grã-alquimista, demonstrando certa surpresa pela companhia repentina.

― Aquela empregada, Michi, me trouxe até aqui. Mas desde que o Xogum disse que podíamos andar livremente, ela foi embora depois que eu pedi. ― Shui fez uma breve pausa e olhou para o colega com um semblante curioso. ― E então, qual o problema?

― Como assim? ― Ning franziu a sobrancelha, confuso com a pergunta inesperada.

― Você estava todo empolgado até chegarmos na cidade. E agora está murcho igual uma flor arrancada da terra. Tem alguma coisa te preocupando?

― Por que você acha isso? Estou muito bem. Cheio de empolgação ― mostrou um sorriso nada convincente.

― Se fosse verdade, eu não conseguiria te encontrar aqui. A essa hora, você já estaria lá no meio daquelas pessoas ― indicou o ponto mais brilhante da cidade. ― Não combina com você se dedicar tanto para desvendar a doença do Xogum. Menos ainda, falar que já passou da hora de aumentar o cultivo ― lembrou-se de seu comentário de mais cedo.

― Você está imaginando coisas. ― Ning preservou um olhar inocente. ― Embora não seja minha principal função, eu também sou um médico e preciso zelar pelos enfermos que chegam até mim. E cultivar faz parte da minha evolução pessoal.

― Acha que eu não reparei que você está enrolando para chegar ao Reino do Despertar? ― Acusou Shui, insistindo no ponto que parecia ser o maior indicativo de haver algo errado. E que gostava de se mostrar um preguiçoso, pareceu um tanto quanto chocado pela recriminação. ― Desde que chegou na 7ª Camada do Reino Mundano, você passa a maior parte do tempo acordado, mesmo quando não tem nada para fazer. Sabia que às vezes eu acordo à noite e te escuto andando pelo quarto resmungando? Eu posso não conseguir usar o Sentido Espiritual tão bem, mas percebi a diferença entre sua técnica de antes e a de agora. Quando dorme e começa a cultivar, quase toda a Energia Espiritual que seu corpo absorve, é liberada logo em seguida. Eu sei que fez algo para isso acontecer. Conhecendo sua Técnica de Cultivação, você já teria conseguido se tornar um Despertado há muito tempo, muito antes de mim. Não sei porque fica fingindo, tomando aquelas pílulas, porém é óbvio que não está tentando evoluir.

Depois de ouvir tudo o que ela tinha a dizer, Xiao Ning ficou bastante abalado. Algo que se notava por seus olhos arregalados e a boca entreaberta. Mesmo assim, sua resposta foi bastante evasiva.

― Você espera muito de mim.

― Acha que sou idiota? ― contrapôs a outra. ― Eu já te vi fazendo coisas que nenhum outro é capaz. Sei o quanto é incrível.

Tal afirmação deixou o sujeito de alma velha sem saber o que dizer por um instante. Então, por fim, soltou um longo suspiro, coçou a cabeça de uma maneira derrotada e falou:

― Avançar no cultivo, é um saco! ― confessou. ― Sei disso por experiência própria. Quanto mais forte se torna, mais chama atenção de pessoas chatas. Viciados em batalhas aparecem toda hora para te desafiar e organizações ficam tentando te recrutar. Tudo isso, é muito maçante.

― Não percebe a bobagem que acabou de falar? ― grunhiu Shui que, decerto, não esperava ouvir aquilo. ― Você é o primeiro Grã-alquimista em quinhentos anos. Você se exibiu para todo mundo ver. Lembra disso? Organizações já querem te recrutar. Por isso estamos aqui ― abriu os braços e mostrou a cidade abaixo, que lhes era estranha até aquela manhã. ― Tenho certeza que também tem muita gente querendo te desafiar. O que diz e o que faz, é muito contraditório.

Com tanta coisa que fazia sentido sendo jogada na cara, o sujeito incoerente mais uma vez se sentiu incomodado. Sua expressão mostrava desgosto por não saber como retrucar.

― Desde quando se tornou perspicaz? ― perguntou, parecendo derrotado.

― Há quanto tempo acha que estamos juntos? ― contrapôs Shui. ― Não sei se percebeu, mas já faz quase um ano que se mudou para minha casa. Sei que só me chamou para ajudar em seu trabalho, porém, para mim, você é meu amigo. Se não pensar igual, tudo bem. Apesar disso, eu ainda gostaria de saber o que está te incomodando.

Depois de ouvir tudo aquilo, era impossível para Ning não dar uma resposta adequada. Mesmo assim, ele pensou bem antes de falar qualquer coisa. E depois de refletir por alguns segundos, com um semblante sério, perguntou:

― O que você acha deste lugar?

― Você fala do Reino da Lua Verde? ― Shui estranhou o questionamento. ― Bem... ― parou para pensar. ― Não me parece um lugar tão ruim quanto eu estava pensando. Quando a Grã-chanceler falou da guerra civil, imaginei que o lugar estaria destruído e as pessoas sofrendo. Mas na cidade, todos me pareceram bastante alegres. E as casas são muito charmosas. Elas são quase iguais umas às outras.

― De fato, a situação está melhor do poderia imaginar. As pessoas não parecem assustadas. Não vimos soldados andando em grupos pelas ruas e impondo regras. O mercado aparenta estar aquecido. E não há miséria. Pelo menos, a feira pela qual passamos mais cedo dispunha de uma grande variedade de alimentos a preços justos. Tirando o ataque que sofremos, é como se esse lugar não presenciasse um confronto há muito tempo.

― Talvez eles estejam em trégua ― sugeriu Shui. ― Como no Império Dourado.

― O Império? ― estranhou Ning.

― Você sabe. A gente falou disso: de como a Família Imperial e a Seita Waidanshu batalharam há décadas atrás. Tecnicamente, eles nunca anunciaram o fim da guerra, apenas declararam uma trégua temporária.

Ah, verdade! ― Ning enfim percebeu. ― Eu não tinha pensado nisso. Então, também estamos no meio de uma guerra civil, hm? ― divagou por um instante. ― Que situação complicada. ― Ainda existia muito o que ele precisava aprender a respeito de sua terra natal. ― Bem, além disso, percebeu mais alguma coisa?

― Eu não gostei do jeito que a Michi falou comigo e com a Corina ― declarou de maneira enfática. ― Aquela regra de não cultivar e sempre andar dois passos atrás dos homens. Aquilo veio do nada. ― Notava-se que ela ainda estava brava por ter recebido tais instruções sem sentido. ― Mas... deve ser apenas como as coisas funcionam por aqui. Acho que as mulheres desse lugar não cultivam. E eu percebi também que os soldados não vão ao dormitório feminino. As garotas não devem ter muito contato com os outros homens e Michi quis que a gente fizesse o mesmo. Porém, o Xogum entende que nós somos de um lugar diferente. Por isso nos disse para ficarmos à vontade.

― Sabe, eu já estive em diversos lugares. Visitei reinos, impérios e nações de diversos tipos ― Ning começou a externar seus pensamentos. E a amiga preferiu não questionar a alegação de ser um viajante muito experiente. ― Diferente de outros, o Reino da Lua Verde não aparenta viver uma crise emergente. Mas ainda existem certos aspectos que me incomodam.

― Quais?

― Para começar, este castelo. O número e variedade de obras artísticas está dentro do esperado. Contudo, essa construção é pequena e simples demais para o líder de um reino.

― Talvez o Xogum goste de coisas simples ― argumentou Shui. ― E pelo que Raijin me contou, essa montanha tem uma história importante. Vai ver eles sabiam que não conseguiriam construir algo grandioso aqui em cima, mas preferiram ficar por causa de alguma tradição.

― Bem, isso faz sentido ― avaliou Ning, que encontrou lógica nas palavras da garota. ― Porém, ainda tem a questão da doença do Xogum.

― Você está com medo de não descobrir o que é?

― Não! Isso não é um problema ― declarou ele, confiante. ― O que me incomoda é ver o líder deste lugar definhando e não ter uma dezena de médicos o rodeando o tempo inteiro. Descobrir o tipo de enfermidade é, na verdade, muito fácil.

― O Comandante Masao tinha comentado que o Xogum já estava cansado de ficar vendo médicos o tempo todo. Talvez todos eles tenham sido dispensados, por não encontrar a causa. ― Xiao Shui falou algo que para ela fazia muito sentido. Mas foi então que percebeu: ― Espera! Você já sabe que doença o Xogum tem?

― Depois de fazer alguns exames e juntar isso aos principais sintomas, não é difícil deduzir algumas possíveis causas. Só terei certeza após realizar um último teste usando uma amostra de sangue, que já tenho, e uma mistura de Ervas Espirituais. Na verdade, a análise do sangue com uma mistura do óleo coletado de Damas Clemente e Falsas Pratas é algo muito simplório e que qualquer médico é capaz de fazer. Esse é um exame padrão, feito logo no início do diagnóstico.

― Se é assim, por que ninguém conseguiu descobrir o que o Xogum tem?

― Exato! Esse é o problema. ― Xiao Ning tinha chegado ao ponto que desejava abordar. ― Me diga, pequena Shui, quem você acha que tem mais chance de sobreviver: um médico que não consegue diagnosticar uma doença ou um que não consegue curá-la?

― Você acha que o Xogum... matou todos eles? ― sussurrou a última parte. Ela ficou bastante chocada ao perceber o caminho que os pensamentos do amigo estavam percorrendo. ― Mas não acho que...

― Não estou dizendo que ele fez isso ― Ning a cortou. ― Nem afirmando que alguém foi morto. Apenas me incomoda o fato de nenhum deles ter falado nada antes. Me fazer perguntar o motivo.

Olhando para o rosto bastante expressivo do Grã-alquimista, percebia-se que ele estava de fato preocupado. E isso ficou ainda mais óbvio após sua próxima fala.

― Sinto muito! ― lamentou. ― Ir para uma nação em plena guerra civil, na maioria das vezes, para quem não está envolvido, não significa estar exposto a algum tipo de risco, já que, geralmente, isso não passa de um nome assustador para um conflito interno envolvendo um pequeno grupo revolucionário contra as forças governantes. ― Ele parou, suspirou e acrescentou: ― Talvez eu tenha trazido vocês para uma situação complicada.

Shui finalmente entendeu que ele estava se culpando. Depois de sua atitude imprudente e irresponsável de arrastar todos para uma região isolada e em conflito sem os devidos preparativos, o preguiçoso aventureiro percebeu que essa pode não ter sido sua melhor ideia.

Assim que percebeu isso, a praticante elementar assumiu uma expressão séria.

― Em primeiro lugar ― ela começou a falar: ― sim! Você foi muito descuidado. E em segundo, deveríamos ter pedido a permissão do Patriarca para vir para cá. ― Sendo repreendido, Ning mostrou um sorriso sem graça, pois a outra estava certa em tudo que falou. ― No entanto ― continuou ―, nós escolhemos te seguir. Você não nos obrigou. E no que diz respeito a mim, eu já decidi que o seguiria aonde quer que fosse e o protegeria a qualquer custo. Essa é a minha decisão. Eu espero sim que, no futuro, seja mais responsável. Contudo, independentemente do que aconteça, estarei sempre ao seu lado para ajudá-lo! ― declarou, determinado.

― Sua pirralha! ― E diferente da reação que era de se esperar, Xiao Ning sorriu, colocou a mão sobre a cabeça dela e bagunçou seu cabelo. ― Quando você aprendeu a falar grande desse jeito?

Ei! Para com isso. ― Xiao Shui deu um tapa na mão do atrevido e arrumou o cabelo de qualquer jeito. ― Por que você fez... ― ela levantou a cabeça para encarar o amigo e dar uma bronca. Mas ao fazer isso, percebeu que ele estava voltando para dentro do castelo. ― Para onde está indo? ― perguntou, curiosa.

― Você estava certa ― respondeu ele. ― Está na hora de parar de enrolar e avançar de uma vez para o próximo Reino.

― Antes de você ir, tenho mais uma coisa para falar ― disse ela. E Ning parou para ouvir. ― Se algum dia quiser me contar o verdadeiro motivo de não querer cultivar, eu o escutarei com toda a minha atenção. ― Assim que terminou de falar, a jovem de cabelo azul mostrou um sorriso atencioso e agradável. Por outro lado, o Alquimista evasivo não esboçou nenhuma reação. Apenas se virou e se afastou.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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