Vida em Folhas Brasileira

Autor(a): Lucas Porto


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 13

 

No meio da floresta.

Próximo a um córrego. 

— Vamos lá! — encorajou enquanto desviava mexendo a cabeça para o lado. — Se continuar assim nunca vai me acertar, Alissa. — Desviou mais uma vez.

— Cala a boca! — Alissa deu um pulo e tentou acertar um chute, mas ele se defendeu com um dos braços.

Após a recuperação de Alissa, Kishi decidiu que iria orientá-la em seus treinamentos. Não foi uma escolha dele propriamente dita, na realidade, ele acabou cedendo após ser perturbado pela mesma.

Eles pararam a viagem perto de um córrego para poderem descansar. O senhor Edo estava sentado em cima de uma pedra olhando o treinamento dos dois, a falta de seriedade de Alissa durante o treino o lembrava de seu filho quando pequeno. E a maneira como Kishi está mais relaxado que o habitual, o fez dar um pequeno sorriso.

Ele se perguntava como exatamente seu filho retirou o veneno de Alissa, ele sempre fugia da conversa quando questionado. Edo desistiu depois de um tempo, apenas se conformando que tudo estava bem.

Kishi não tinha dificuldade em se esquivar ou defender dos golpes da menina. Ela era rápida e forte, isso é um fato, sua habilidade de combate estava evoluindo cada vez mais por conta de todos os desafios que eles enfrentaram juntos. Entretanto ela ainda é previsível, às vezes até demais.

Com a mão aberta ele segurou o soco dela, a surpreendendo, ela tentou se soltar, mas não conseguiu. Então ele deu-lhe um soco na barriga, Alissa não aguentou e caiu de joelhos no chão.

— Alissa! Você está bem? — falou se abaixando para olhar o estado dela. — Me desculpe, seu corpo ainda não se recuperou totalmente.

— Não acredito...

— Não acredita no que?

— ...

— Alissa? Fala alguma coisa! 

— Não acredito que você é tão bruto com uma dama! — Ela fechou os punhos e tentou lhe dar um gancho de esquerda. Se ele não tivesse se jogado para trás, ele teria sido acertado bem no queixo.

Mas Alissa não parou, ela se levantou depressa correndo até ele, rodou o corpo e tentou atingi-lo com as costas da mão direita. Kishi previu o movimento e levantou o braço para se defender. 

Como ela previu.

Centímetros antes do braço de Alissa se chocar com o braço de Kishi, ela abriu a mão jogando areia e terra nos olhos dele. Sua visão ficou embaçada e aquele golpe surpresa havia retirado sua postura.  
Ela aproveitou a abertura e deu um chute na barriga dele que o jogou ao chão, uma vitória completa. Ela sorriu em deboche.

— Não precisa ter dó de mim. Aqui eu sou uma guerreira! — dizia enquanto colocava as mãos nas cinturas, seu olhar de desaprovação caia sobre Kishi que tentava limpar seus olhos. — Ficou convencido, não esperava menos de um iniciante como você.

— Iniciante é... — resmungou, ainda caído ele deu uma rasteira a fazendo cair no mesmo instante.

— Seu-

Quando notou, Kishi já estava em cima dela, com o punho fechado e pronto para socá-la. Ele ainda estava com os olhos sujos e quase lacrimejava. 

— Uma derrota completa, iniciante — disse sorrindo.

— Parabéns aos dois — interrompeu Edo, ele se aproximou batendo palmas, ambos olharam para ele.

— Incrível golpe surpresa Alissa, e incrível recuperação Kishi. Mas acho melhor você lavar o rosto antes que alguma larva decida fazer moradia em seus olhos.

— O quê?! — Kishi correu até o córrego e jogou água no rosto, tendo certeza que os olhos estavam completamente limpos.

— Ele tem... Medo de larvas? — perguntou Alissa enquanto via o desespero dele.

— Quando criança, ele comeu uma larva pensando ser macarrão — contou fazendo Alissa dar uma risada discreta.

— Eu ouvi vocês — disse, voltando sua atenção para eles após lavar o rosto. — O senhor já decidiu qual é o nosso próximo destino pai?

— Não temos muitas opções. Precisamos comprar suprimentos, descansar apropriadamente e de um mapa melhor. O meu está desgastado.

— Se eu não me engano, tem uma cidade principal a nordeste daqui — disse Alissa. — É um pouco fora da rota, mas como seu pai disse, não temos muitas opções.

— Você conhece bem a região Alissa. Viajava muito? 

— Um pouco, minha mãe e meu pai sempre gostaram de viajar, acho que herdei isso deles.

Kishi notou um pequeno sorriso desabrochar no rosto de Alissa. Essa foi a primeira vez que ela citou o pai sem ficar triste em seguida. Ele suspirou pegando os dois de surpresa.

— Entendi, isso explica por que você viaja durante os treinos.

— Como é? Eu quase ganhei de você.

— E desde quando jogar areia nos outros é ganhar? Que golpe baixo!

— Para de frescura, só tinha umas duas larvas lá. — Kishi arrepiou quando ouviu aquilo.

Os dois continuaram discutindo, Edo sem ter o que fazer apenas se sentou em seu canto e observou os dois. Em pensamentos ele tentou se lembrar, qual foi a última vez que teve uma viagem tão divertida quanto essa.


 

Floresta da morte.

Salão principal.

— Meu lorde eu...

— Eu disse para ficar quieto.

No meio do salão principal, Olú estava ajoelhado de frente ao lorde Hakuro. O mesmo estava decepcionado com Olú pois, além de ter falhado em tirar a vida do Noredan ele ainda omitiu a informação. As consequências desse ato foram a dizimação de uma unidade inteira incluindo um dos generais, Cicuta.

Olú olhava para baixo o tempo todo. Não tinha coragem de erguer a cabeça e enfrentar seu lorde. Ele sentia como se uma fera o estivesse espreitando, uma presa fácil pronta para ser devorada. Os dois ninjas, um de cada lado, que seguravam os braços de Olú não diziam nada, estavam paralisados de medo.

O conselheiro Kana estava atrás de seu lorde  assistindo tudo. Em seu interior, ele sentia pena de Olú. O garoto era promissor, um expert em mentir e persuadir. Eram poucas as vezes que Olú se tornava tão transparente, demonstrando seus verdadeiros sentimentos para o homem que ele mais admirava.

— Você pode descobrir o verdadeiro potencial de um indivíduo apenas olhando para ele por nove segundos — disse — Talento foi o que eu vi em você, mas também vi um garoto fraco, que não assumiria suas responsabilidades. Imaginei que um dia você adquiriria disciplina enfrentando alguém mais forte que você, isso ainda não aconteceu, você continua sendo apenas um garoto. Você acha que eu errei em minha análise Olú? 

Mesmo irritado, a voz de Hakuro era calma e serena, o que confundia os soldados  de patente mais baixas ali. Como pode durante uma punição, um homem demonstrar tanta paz e calma, elogiando seu subordinado ao mesmo tempo que o espanca.

— Não meu lorde. Foi um mal entendido, eu apunhalei o Noredan em seu coração, não havia como ele sobreviver.

— Você sabe sobre o Despertar não é.

— Sim...

— Então sabe que foi descuidado e presunçoso. Subestimou o inimigo.

— Mas, meu lorde….

Hakuro chutou o rosto de Olú o fazendo perder um dente.

— Sabe o que eu vejo agora, Olú? A vergonha da Lótus Negra, um assassino que nem ao menos verifica o real estado de seu alvo. — Ele fez um sinal com a mão, os dois ninjas soltaram Olú. — Qual punição você acha adequado a você?

— Perdemos volta de 30 homens incluindo um general da mais alta patente. Um excelente médico e responsável por uma pesquisa sigilosa. Devo perder meus dois braços; um por conta de meu erro com o Noredan e outro pois, esse erro, retirou uma parte importante de nossas forças. — respondeu envergonhado, abaixando sua cabeça até sua testa tocar no chão.— E como planeja me servir sem os dois braços?

— Minhas pernas serão mais que o suficiente. Estarei na linha de frente e me sacrificarei pela Lótus, impedindo que percamos mais soldados. Hakuro ficou quieto por alguns instantes. Ele sempre soube da lealdade abismal que Olú tinha por ele, nunca soube exatamente o motivo. Vê-lo agora estendendo os bra

ços, pedindo para que sejam arrancados e ele seja usado como bode expiatório nos combates é... Triste.

— Não sacrifico meus soldados, vocês são pessoas no final de tudo. 

— Mas meu lorde, eu falhei com o senhor! Deixei uma ameaça viva!

— Sim.

— Estamos sem homens por conta das caçadas que o rei e as famílias tem feito, como pode me deixar sair impune.

— Impune? Do que está falando? — retrucou. — Olhe para as suas mãos.

Olú fez como ordenado. Levantando suas mãos percebeu que elas tremiam sem parar. Mas por que? Aquilo era resultado da presença assassina de seu lorde? 

— Não entendo...

— É o peso das vidas. Todas as pessoas que o Noredan matar são responsabilidade sua a partir de hoje, viverá com esse peso até que o mesmo morra. 

Aquelas palavras foram um choque e tanto. Um dos ninjas olhou para Olú que não parava de encarar suas mãos trêmulas. Ele não entendia como simples palavras afetaram tanto aquele que era um assassino experiente, ele não deveria ter compaixão nenhuma. Ou estava afetado, por ter decepcionado seu lorde? Isso era difícil de responder.

— Alguns agentes conseguiram informações sobre um grupo de três pessoas, uma mulher de cabelos vermelhos, um idoso e um homem de cabelos curto — falou. — Coincidência ou não, ele está indo onde Sinsha está no momento. Ela cuidará dele.

— Sinsha?! Não é necessário mandar ela meu lorde, eu posso cuidar do Noredan.

— Kana — interrompeu Hakuro.

— Sim, meu lorde. — Ele deu um passo à frente, Olú o olhou sem entender.

— Quantas vezes batalhei contra Sinsha?

— Cento e dezenove vezes, meu lorde. Dessas, foram cinquenta e duas vitórias para o senhor e sessenta e sete para Sinsha. Das 52 vitórias o senhor recebeu em torno de 100 golpes quase fatais.

— Você me considera forte não é Olú? —  dizia enquanto o encarava. — Sinsha é tão forte se não até mais do que eu, ainda sim duvida das capacidades dela?

— Não, me desculpe...

— Então retire-se — ordenou, e todos com exceção de Kana se retiraram.

Hakuro colocou a mão no rosto e fechou os olhos. Sentia uma forte dor de cabeça, o estresse que ele vinha sentindo não cessava independente do que fizesse. Desde que leu a carta que recebeu de Cicuta, ele não parava de pensar que foi um erro dele ter sido tão otimista. 

"Eu devia ter checado melhor, poderia ter salvo as vidas dos meus homens" — Pensou.Kana observava seu lorde com pena, Hakuro era um líder nato sem dúvidas, entretanto isso não escondia sua pouca idade e o peso que carregava nas costas. Aquelas palavras que ele disse para Olú na verdade estavam sendo ditas para si mesmo.— Meu lorde, o senhor deveria descansar. Seus ombros estão tensos, caso fosse atacado nesse instante não conseguiria se defender adequadamente. 

— Tem razão Kana, preciso pensar com calma, estou lidando com um inimigo difícil. O que acha sobre Sinsha cuidar disto, acredita que ela tenha alguma chance? — perguntou com humildade em seus olhos.

— As habilidades dela são exemplares, mas ela é irresponsável e inconsequente. Talvez seja melhor enviar Gazel junto com ela.

— Gazel está ocupado, terei que me contentar apenas com Sinsha — respondeu. — Irei para os meus aposentos, me chame caso necessário.

— Como quiser meu lorde.


 

Quinze anos atrás.

Cidade de Cyfarfod.

Na região norte de Artéria, a cidade de Cyfarfod é uma das três Cidades Principais da região. De coloração cinza e tempos chuvosos, aquela cidade ressoava com a tristeza do mundo em uma melodia tão baixa que apenas os corações quebrados poderiam escutar.

Como sempre chovia. Gotas pesadas colidiram com o chão e escorriam até os esgotos antigos. As vendas iam mal, poucas pessoas saiam de suas casas, e a que saiam, compravam apenas o necessário. 

E uma loja de geleia de maçã com pimenta não era necessário.

Um pequeno e jovem Hakuro estava sentado no chão, olhando para o vendedor que tentava desesperadamente chamar a atenção das poucas pessoas que passavam pela rua. Seu nome era Brandon, ele cuidava de Hakuro.

— Vamos, vamos, venham todos! Geleia de maçã com pimenta para todos! — anunciava com um falso animo, mas as pessoas nem olhavam na cara dele. — Tsk.

— Senhor Brandon, eu estou com fome — disse Hakuro com uma voz tão fraca que a única coisa que Brandon entendeu foi um murmurro.

— Hã? O que cê quer?

— Comer. — Ele forçou a garganta. — Posso comer um pouco de geleia?

— Claro que não! Eu apenas vendo não faço caridade — gritava irritado.

O pequeno e magricelo corpo de Hakuro tremia. A chuva estava ficando cada vez mais forte e barulhenta, ele espirrou. Se continuasse assim ficaria resfriado. Seus olhos fracos observavam o pingar da água. Seus ouvidos ouviam a pobre melodia da cidade. E sua barriga, roncava.

Ele queria estar em outro lugar, qualquer lugar que não fosse junto daquele porco nojento. O senhor Brandon não o tratava bem, duvido que já tratou alguém bem, por isso é um vendedor tão ruim.

Uma moça de cabelos dourados se aproximou da tenda.

— Com licença. Eu gostaria de um pouco de geleia. — Sua voz estava trêmula, ela também iria pegar uma gripe.

— Mas é claro madame. — Brandon ergueu uma das sobrancelhas e estendeu um dos olhos, deu um sorriso quando viu que a moça estava pegando o dinheiro. — Hakuro! Pegue a geleia para essa boa moça.

— Sim...

Ele se levantou com dificuldade e caminhou até uma das caixas de madeira. A moça viu o estado fraco do menino e se sentiu chocada. A pele estava tão pálida, seus cabelos e roupas tão sujos, mas o pior com certeza era o seu olhar.

Os olhos são os portões da alma.

E não havia alma dentro daquele garoto.

— Me desculpe a intromissão, mas ele é seu filho? — ponderou.

— Não, é só um pivete de rua. Anda logo Hakuro a moça tá com pressa.

Hakuro pegou um pote de vidro com uma geleia de maçã. Enquanto suas capacidades para vendas eram horríveis, sua geleia de maçã com pimenta era algo fenomenal. O cheiro doce foi inalado por Hakuro que ficou com água na boca. Sua barriga roncou mais uma vez.

Ele então decidiu arriscar.

Sem dizer nada o pequeno garoto saiu correndo para longe dali. Brandon o viu fugindo com sua mercadoria e foi atrás do garoto. As pernas de Hakuro estavam tão fracas que ele nem sabia direito se conseguiria ir muito longe.

Velocidade nunca foi o forte de Hakuro, ainda mais no estado em que se encontrava. Mesmo assim, era melhor arriscar uma fuga quase impossível do que permanecer com aquele porco sujo.

Hakuro entrou em um beco, sem saída. Quando se virou para tentar sair dali foi acertado por um tapa que o jogou longe. O pote de vidro se estilhaçou no chão, Hakuro viu sua refeição espalhada e tentou se rastejar para ao menos provar um pouco.

— Olha o que fez moleque maldito! Destruiu minha propriedade. Agora você vai aprender uma lição. — rosnou em fúria, ele olhou para os lados procurando algo. Achou um pedaço de madeira. O pegou.

Hakuro pouco se importou com as ofensas. Assim que chegou na geleia derramada pelo chão tentou de algum modo pegar o conteúdo em suas mãos. Inútil, toda a sua fuga foi em vão. Lágrimas saíram de seus olhos se misturando com a água da chuva.

Suas costas foram atingidas por algo duro. 

Ele gritou.

Brandon furioso começou a espancar o garoto sem qualquer piedade. O garoto não tinha forças nem para implorar por clemência, ele apenas chorava silenciosamente. Qualquer súplica por ajuda seria ofuscada pelo barulho da chuva.

Até que Brandon parou.

Olhando para trás, Brandon viu uma muralha. Não, era na realidade apenas um homem. De pele negra, cabelos cacheados enrolados em uma trança. Suas roupas eram de um militar, com o estranho símbolo de uma flor, havia também tatuagens por todo o corpo, ele era intimidador o suficiente para fazer Brandon se borrar. 

— Saia — ordenou o homem.

Brandon obedeceu, seguindo as ordens fielmente, ele saiu correndo para o mais longe que conseguia daquele beco. O homem se abaixou para perto do corpo fraco daquele rapaz, analisou suas feridas, relaxou ao ver que não era nada fatal.

O fraco menino se virou para ver quem foi o responsável por salvar sua vida. Ao se virar, viu o rosto mais gentil da sua vida; olhos amarelos, um cabelo em dread e tatuagens pelo pescoço.

— Como se chama rapaz? — Ele disse com voz calma.

— Ha... Hakuro...

— Hakuro? Que nome bonito. Me chamo Kiri, eu sou...

O garoto não ouviu as últimas palavras daquele homem. Estava fraco demais para manter a consciência. Kiri pegou o corpo do rapaz nos braços e saiu daquele beco. 



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