Volume 3
Capítulo 111: Vigésima Terceira Página do Diário
A viagem foi rápida, e limpar o convés foi até divertido. Bem melhor do que limpar latrina. E quando eu contei para alguns tripulantes que já precisei limpar latrina, um deles disse com ar de tristeza enquanto segurava meu ombro:
— Agora entendo o motivo de ir arriscar sua vida na guerra, eu também faria isso a limpar latrinas…
Ao desembarcar no trapiche da cidade, apenas nos identificamos como voluntários da guerra e nos deixaram entrar, acho que nos viram como duas crianças caipiras que sequer saberiam sobreviver na cidade, quanto mais causar algum tipo de problema. Mas era justamente o que queríamos fazer, causar problemas.
Eu não tinha um plano exato, mas tinha uma lista de desejos. Conseguir informações, resgatar escravos, bater nos traficantes de pessoas… Acho que não era uma lista muito longa ou detalhada.
Precisávamos de dinheiro, sem isso não conseguiríamos sequer sobreviver, quanto mais salvar a vida de alguém, ou ainda resgatar escravos. Então, após descansar e encontrar um lugar seguro para Brogo se esconder, eu fui atrás de ganhar umas moedas. E não precisava ser limpando latrinas.
Relembrando as minha habilidades de rato nas ruas da Cidade de Prata, me esgueirei peos becos, andando por cima de muros e atravessando quintais e jardins. Até chegar à parte mais nobre da cidade, o meu alvo preferido.
Se você vai roubar de alguém, roube de ricos, eles sim têm valores a serem roubados. E se souber roubar, eles nem vão perceber.
Essa foi a filosofia de vida que eu e Olho de Peixe criamos enquanto lutávamos para sobreviver. Muitas vezes no metemos em roubadas, mas a maioria acabou com um resultado positivo para nós e nossos irmãos.
Enquanto relembrava isso, avistei uma mansão que se destacava. Aquela sim era digna de ser roubada, então não pensei duas vezes, pulei o muro e me pendurei na janela, me jogando para dentro do segundo andar o mais rápido possível.
Os ricos sempre escondem as coisa de valor nos andares superiores, e mantêm seus empregados, servos e escravos nos inferiores e porões. Então me vi dentro de um quarto maravilhoso, tudo era colorido e parcia não ter uma poeira sequer. Surii ia amar dormir numa cama daquelas…
Saindo do quarto, subi pelas escadas até o quinto andar, onde havia apenas um grande cômodo. Ainda bem que minhas habilidades furtivas estavam em dias e não fui visto entrando ou saindo.
Vasculhei o local e achei uma gaveta com um pequeno baú cheio de moedas, exatamente o que eu procurava. Assim como eu desconfiei, nobres querem smpre estar acima dos outros, então o escritório, seja lá de quem for, obviamente estaria no local mais alto da mansão.
Enfiei o baú de moedas dentro da camisa e saí pela janela, sempre mantendo atenção para que ninguém me visse. Não demorou muito e eu voltei até onde tinha deixado Brogo. Ela ficou feliz em ver que a minha empreitada deu certo, e fomos alugar um quarto em alguma estalagem para passar um tempo enquanto reuníamos informações.
Achamos um local, uma estalagem onde tinha um bar, era longe de ser discreto, mas algo discreto demais chamaria atenção. Além do mais, eu estava com muitas moedas de alto valor, então seria estranho ir a um lugar frequantado por pessoas comuns, e se fosse a um lugar caro seria mais chamativo ainda. Então por que não ir um lugar frequentado por ladrões?
É certo que eles poderiam tentar roubar o dinheio, mas eu tinha acabado de roubar, então não teria prejuízo algum. E eu estava bem confiante nas minhas habilidades de combate e no meu poder. Sem contar que Brogo tinha o chicote negro que era do mercador de escravos.
— Tem mesmo certeza que é seguro ficar em um lugar desses? — Brogo perguntou enquanto olhava o quarto de madeira mofada, com apenas uma cama de solteiro e um buraco na parede para chamar de janela.
— É o melhor lugar para conseguir informação. — Expliquei — Lembra que eu disse algo sobre briga de bar? Então, Shiduu me ensinou que existem pessoas espcializadas em vender informações, elas podem ser encontradas em lugares assim.
— Mas tinha que fingir que somos um casal? — Ela torceu o lábio — Não me importo de dormimos na mesma cama, mas acho que nessa aí não cabe nós dois…
— Eu durmo no chão.
— Ótimo!
Eu entendi que era só um plano dela para dormir em uma cama, sabe lá se ela já teve a oportunidade de dormir confortavelmente alguma vez na vida. Quanto a mim, já tive as experiências opostas, tanto de dormir no conforto quanto no chão frio, então estava tudo bem.
— Agora descansa, termos uma noite longa pela frente, é melhor dormir durante o dia.
— E você? — Ela perguntou — Não está pensando em me atacar enquanto durno, né?
— Não, vou fazer o reconhecimento das ruas daqui. Andei um pouco pela cidade para roubar aquele dinheiro, mas não o suficiente para reconhecer rotas de fuga.
— Rotas de fuga?
— Pro caso precisarmos.
— E vamos precisar?
— Quase certeza que sim…
— Ótimo! — Ela deitou e pôs o braço sobre o rosto — Isso sim vai me fazer dormir tranquila.
Saí do quarto e tranquei a porta por fora, não que que deixar tranado pudesse impedir alguém de arrombar a porta, mas se se isso acontecesse, Brogo acordaria a tempo de usar o chicote negro.
Após dar uma volta pela cidade, decorei as melhores ruas para uma possível fuga. Já estava anoitecendo quando retornei à estalagem, muitas pessoas vinham chegando ao bar, e o cheiro de comida ruim e bebida alcóolica dominava o ambiente.
Fui em direção às escadas lentamente, buscando na visão periférica alguém que pudesse ser um vendedor de informações. Mas antes que pudesse achar meu alvo, ouvi dois caras comentandoalgo que me chamou muita atenção.
— Como assim alguém roubou a casa do prefeito!? — Um deles disse.
— Ninguém sabe. — O outro respondeu — O fato é que sumiu muito dinheiro lá de dentro, e como ninguém aqui é doido de roubar aquele lugar, acham que foi um dos escravos que pegou pra tentar fugir.
— Mas todo mundo sabe que nenhum escravo poderia entrar no gabinete do prefeito.—O primeiro homem parecia duvidoso da história — Acho que ele está buscando uma forma de se livrar do pobre escravo.
— Isso não importa, o fato é que em poucas horas o suspeito será queimado na praça como exemplo para qualquer outro que pense em roubar o prefeito.
— Isso é bom, as pessoas estão esquecendo quem é que manda nessa cidade.
Puta merda. Não me diga que alguém inocente ia pagar pelo meu crime.
Subi as escadas o mais rápido que pude, estava muito nervoso, quase não consegui enfiar a chave na fechadura. Quando abri a porta encontrei Brogo babando na cama.
— Acorda! — Falei enquanto balançava ela —Vamos precisar fazer uma mudança nos planos…
Brogo acordou e me olhou confusa, com um fio de baba pendurado no canto da boca. Enquanto isso eu andava de um lado para o outro pensando alto no que fazer. Devolver o dinheiro? Não, aí eles me matariam. Dizer que encontrei o dinheiro? Aí achariam que sou parceiro de crime e morreríamos eu e o tal escravo. Salvar o escravo e fugir?
— Então por que não apenas resgatamos o cara e tacamos fogo na cidade? — Brogo disse se reencostando na parede.
Não era a melhor ideia, mas era a única que poderia dar certo.
Corremos para a praça da cidade, onde uma multidão se formava ao redor de uma pilha de madeira seca. Até crianças tinha sido trazidas para assistirem o pobre escravo ser queimado vivo. Mas não se eu pudesse impedir.
— Tá, estamos aqui… — Brogo comentou baixinho — E agora?
— Salvamos o cara e pomos fogo na cidade. — Respondi no mesmo tom.
— Eu tava brincando sobre por fogo…
— Eu sei, mas agora ta parecendo uma boa estratégia de distração para fugirmos. — Sorri enquanto um plano louco se formava em minha mente — Você começa o fogo e eu cuido do resto.
Brogo me olhou assustada, mas eu sorri para ela e afaguei seus cabelos.
Ela bufou e sumiu na multidão. No mesmo momento o personagem principal do espetáculo chegou. Era apenas uma garoto, talvez mais novo do que eu. Estava amarrado, assustado e chorando. Me senti mal por ele, pois, mesmo que muitos ali tivessem certeza de que não foi ele, ainda queriam ver sua morte.
Isso me lembrou Finii, uma vida que não pude salvar. Eu faria com que o sacrificio dela fizesse sentido. E enquanto alguém, que disseram ser o prefeito, fazia um discurso intimidador e carregado de ódio, eu me esgueirei pela multidão.
— … porque só existe um destino para ladrões! — O prefeito terminou seu discurso.
— Fogo! — Alguém gritou na multidão.
— Isso! — O prefeito exibiu um sorriso satisfeito.
— Não… Ta pegando fogo…
Brogo foi mais rápida do que eu pensei. E enquanto a multidão entrava em pânico com as casas ao redor da praça pegando fogo, tentei relembrar o que senti na casa do mercador de escravos. Deixei o ódio dentro de mim se manifestar, fechei os olhos e concentrei ele todo no prefeito.
Acho que acabei deixando me poder vazar, e quando abri os olhos estava cercado por soldados, atrás deles o prefeito. Ótimo, teria que matar os soldados antes, mas a esse ponto eu já não me importava com quantos teria que matar, desde que salvasse aquele pobre garoto.
Usei o movimento que Ladii me ensinou, abaixei um pouco o corpo e girei sobre os tornozelos, o poder do Rancor espalhado pelo ar ia criando adagas flutuantes, e conforme eu me movia, as apanhava e apunhalava minhas vítimas. Um deles tentou fugir, mas em vez de uma adaga, fiz uma lança e o acertei em cheio.
Depois de um tempo treinando, o movimento já não desgastava tando meus pés, e a minha coordenação com a velocidade de giro em paralelo com a criação de armas se mostrou muito eficiente.
Quando me dei conta, os soldados estavam mortos, a multidão tinha dispersado, e o prefeito estava fugindo. Ah, mas eu não ia deixar. Corri atrás dele com várias armas feitas de rancor flutuando ao meu redor, com certeza ele estava bem assutador naquele momento, e essa era a minha ideia.
Ele olhou para trás, tropeçou, e caiu. Então eu tive tempo de me aproximar. E a última coisa que ele viu foi meu sorriso de satisfação enquanto o matava impalado com uma dúzia de armas negras.
Então voltei até onde restava apenas o escravo amarrado, cercado por corpos de soldados abatidos por mim. Brogo também vinha chegando correndo. Sotei ele e estendi a mão com um sorriso acolhedor, ou pelo menos tentei sorrir.
Ele continuava tremendo de medo.
— Pegue na minha mão. — Eu disse.
Ele pegou.
— Qual seu nome? — Perguntei.
— Jairo! — Ele disse assustado — Meu nome é Jairo!
— Prazer Jairo! — Apertei a mão dele — Eu sou Deco, e essa é Brogo. Estamos aqui para te libertar.
— Você vai… me matar? — Ele disse assutado.
— Não! Eu vou te dar a oportunidade de fazer uma escolha, deseja ser livre ou morrer como escravo?
— Livre? — Ele pareceu tentar entender o significado da palavra — Eu quero! Quero ser livre!
— Então vá, faça o que quiser.
— Eu… — Ele parecia indeciso.
— Se pudesse fazer qualquer coisa, o que escolheria fazer?
— Libertar outros… Outros escravos!
E foi assim que ganhei meu segundo parceiro de aventura pela liberdade.