Volume 2

Capítulo 79: Rancor

O jovem mal podia acreditar no que seus olhos captavam: aqueles cabelos brancos como a neve, aqueles olhos azuis como o céu, até mesmo as roupas que Gideon usava quando morreu, agora manchadas de sangue como se o evento tivesse acabado de ocorrer. 

— E aí, Alaric… — Gideon estava encostado na cerca, com um pé apoiado nela relaxadamente.

O coração, já acelerado, parecia querer escapar do peito, batendo com uma intensidade que reverberava em todo o corpo de Alaric. Suas pupilas dilataram-se abruptamente. E aquela terrível sensação aterradora percorreu cada fibra de seu ser, deixando-o paralisado.

— O que… como… — A mente de Alaric estava em colapso, incapaz de aceitar a realidade da situação. — Eu te vi morrer! Segurei seu corpo frio! Cavei sua cova... e... e... te enterrei, Gideon!

— E aqui estou eu... Diante de você, vivo... — Gideon ergueu a cabeça, contemplando o céu nublado. — Ironia, não é? Ou talvez loucura...

Alaric continuava a observá-lo incrédulo. Parecia uma miragem, uma magia de ilusão. Num instante, o jovem relembrou que ainda estava envolto naquela estranha neblina escura, onde nenhum som era emitido, exceto as vozes. Então, era isso, um efeito psicótico da neblina.

— Não, Alaric, a neblina não causou isso em você... — Gideon começou a caminhar, aproximando-se cada vez mais de seu irmão paralisado, até parar ao seu lado. — Talvez sua própria mente causou…

— Minha mente...? — perguntou, a voz trêmula do jovem ecoou pelo ambiente, carregada de dúvidas e ansiedade, enquanto seus olhos buscavam respostas no mais puro vazio. — Você é apenas uma criação da minha mente...?

Gideon permaneceu imóvel ao lado do jovem, observando-o de soslaio, enquanto um sorriso enigmático brincava em seus lábios antes de começar a caminhar adiante.

— Quem pode dizer ao certo? — respondeu, com a voz carregada de mistério. — Talvez sim, talvez não. Mas e você, Alaric? O que tem feito durante todo esse tempo? Estou curioso…

— Eu... Vivi, eu acho... Mas! — Ao se virar para trás, buscando a presença do irmão, encontrou apenas o nada. — Onde...

— Viveu? É só isso? — A voz de Gideon soou por trás dele mais uma vez, e ao se virar, lá estava seu irmão, como se nunca tivesse se afastado da cerca. — Você se tornou tão patético...

Essas palavras atingiram Alaric em cheio, vindas da boca daquele que, fosse uma miragem, uma ilusão ou apenas uma alucinação, ainda mantinha a aparência de seu irmão. Ele abaixou a cabeça, deixando os ombros caírem sob o peso da desolação.

— O que você esperava de mim...? — Os olhos úmidos ergueram-se, buscando desesperadamente o olhar de Gideon. — Diga-me! O que deveria ter feito!?

— Vingar minha morte! Isso que um irmão de verdade teria feito! — Ele de novo começou a se aproximar de Alaric, agora com o ódio distorcendo seu semblante. — Mas não, em vez disso, você escolheu viver como um ninguém. Você preferiu se divertir, não é? Sair com mulheres, encher a cara toda noite… Você se tornou desprezível…

A névoa densa os envolvia, impedindo a entrada da luz solar e roubando a última luminosidade do coração do garoto, que, após ouvir aquelas palavras, sentiu o chão se desfazer sob seus pés. A neblina apenas se tornava mais densa, mais difícil de ser tragada, Alaric sentia os pulmões doerem. 

No entanto, as palavras de Gideon não contavam toda a verdade. E Alaric, sabendo disso, franziu o olhar enquanto a raiva o tomava.

— Tá dizendo que não fiz nada!? Apenas me diverti!? Naquele ano após a sua morte, eu me esforcei, lutei, lutei e lutei. Busquei poder, busquei formas de te vingar! Mas o que eu poderia fazer!?

Alaric se contorcia, gesticulando freneticamente, seus olhos se cerraram em meio a uma dança de expressões dolorosas e de remorso, cada palavra pronunciada parecia arrancar-lhe uma nova manifestação de angústia.

— Aquele desgraçado era mais poderoso do que eu! Se eu o enfrentasse sem preparo, acabaria juntando meu corpo ao seu na cova!

— Que assim tivesse sido então... — Alaric travou, não apenas pelas palavras dolorosas, mas também pela presença de Gideon diante dele, encarando-o sem demonstrar emoção. — Que você tivesse morrido; pelo menos não seria essa vergonha que é agora.

Aquelas palavras, proferidas de forma mórbida, cortaram a névoa como navalhas, e, sem piedade, cravaram-se no coração do jovem. Sentiu como se o peito estivesse em chamas, como se estivesse sangrando, ardendo, ansiando desesperadamente por paz. Ao invés de escutar palavras tão gélidas quanto o próprio ambiente que as envolvia, proferidas por aquele que se dizia ser seu irmão, causando arrepios e horror em seu ser. Naquele momento, todas as dúvidas que o jovem tinha sobre o que estava diante dele, cessaram. 

Alaric lutava para manter o controle, para não permitir que a ira, aquele sentimento tão nocivo, voltasse o domina-lo, mas as palavras seguintes impediram tal façanha:

— Pelo menos não mancharia nosso nome... o nome de nosso avô. Ele teria vergonha de vo-

Alaric não se importava se o que estava diante dele era fruto de sua mente quebrada. Se ia sentir ou não, apenas canalizou toda a frustração que permeava seu ser e, sem hesitar, afundou o punho na bochecha daquele que se dizia Gideon. O golpe não produziu qualquer som, graças à maldita névoa, que além de produzir aquele silêncio ensurdecedor, também impedia-o de enxergar a alguns palmos adiante.

Gideon cambaleou meio zonzo após o forte golpe e parou, ainda em uma postura desajeitada, fitando o chão; parecia ter sido afetado, já que passou a mão no rosto.

— Não fale isso novamente... — Alaric apontava vigorosamente para ele, transbordando de raiva. — Não mencione meu avô! Você não é o Gideon, pare de tentar se parecer com ele!

— Você está certo... não sou o Gideon... — Ele desapareceu, dissipando-se junto a névoa, como se fossem um só, e talvez eram. — Sou aquilo que você precisa ver...

Alaric arregalou os olhos, virando-se de um lado para o outro, assustado. A mente que tanto esteve estável agora se mostrava confusa. Seus olhos claros pareciam faróis na escuridão da neblina, buscando por aquela ilusão, sem sucesso. Mas ele podia sentir, sentir algo mover-se entre aquela névoa, o cercando.

— Sou a parte da sua mente que se preocupa com seu irmão! — Sem aviso, o suposto Gideon surgiu por cima do jovem, derrubando-o no chão. — Sou aquilo que seu egoísmo abandonou!

Ele começou a desferir murros no rosto de Alaric, que permanecia imóvel, sem chances de reação.

— Sou a parte que ainda deseja vingança! Sou a parte que ainda busca poder! — Os socos carregavam mais do que dor; eles castigavam o jovem com todas as verdades que ele tentava ignorar. — Sou a parte de você que não deseja a fraqueza! A paz! 

No entanto, o rapaz não suportava mais apanhar em silêncio, sem poder fazer nada. Quando um dos murros acertou seu rosto, sua expressão permaneceu inabalada, como se o golpe não tivesse o afetado. Quando Gideon fitou o rosto de Alaric, percebeu aquela feição de raiva encarando-o.

— Você... isso! Sinta ódio! Deixe que ele te fortaleça! — Ele estava em êxtase, finalmente vendo o que buscava acontecer.

— Sai de cima de mim! — Alaric reuniu suas últimas forças e conseguiu empurrar Gideon para longe, levantando-se no processo. — O que quer dizer com "parte de mim"!?

— Imagine sua alma ou mente dividida em duas partes... uma ainda nutre amor por Gideon, enquanto a outra… se transformou no que você é agora...

Diante dessas palavras e da dor que permeava na face, Alaric ficou em silêncio, permitindo que a melancolia invadisse seu ser. Será que realmente havia deixado de se importar com Gideon? E se sim, como poderia voltar a se importar com ele?

— Busque poder para vingá-lo... — Ele observava Alaric atentamente e, ao perceber a expressão confusa do jovem, apontou para á própria cabeça. — Compartilhamos a mesma mente doentia; é óbvio que sei o que você pensa…

Então era isso, tudo se resumia à vingança? Se seguir esse caminho significasse demonstrar todo o amor por Gideon, ele estaria disposto a fazê-lo? Novamente, seus olhos claros escureceram enquanto o rancor o envolvia, lembrando-lhe da sensação amarga de assistir aos últimos suspiros débeis de seu irmão no leito de morte. Se essa era a necessidade, se abandonar a própria felicidade era a solução, então assim faria.

— Entendo. — Agora sua voz soava calma, inexpressiva, como a de um morto vagando sem propósito. — Mas e se por acaso eu me desviar novamente do caminho da vingança?

— Ah... — Ele se transformou novamente em névoa, e aquela voz dócil se tornou grave como a de um demônio. — Eu voltarei para te lembrar... e não será uma experiência agradável…

— Você é realmente uma criação da minha mente?

— Sim, sou um produto das suas experiências. Pode me chamar de Rancor…

A voz parecia ecoar de todas as direções, como se fosse tudo e todos ao mesmo tempo.

— Rancor... Tudo bem, mas agora… Abandone a forma de Gideon... — Sua voz adquiriu um tom mais sério, impregnado de irritação. Ver esse sentimento tão nocivo assumir a aparência pura de seu irmão deixava-o nervoso; era como testemunhar a distorção da beleza da pureza... — Estamos entendidos?

— Claro... claro... — A voz do Rancor suavizou-se, adotando um tom mais dócil, enquanto parecia envolver Alaric junto à névoa. — Acho que está na hora de você acordar... Adeus, Alaric…

Como um raio de esperança, o jovem sentiu o desconforto do sol batendo diretamente em seu rosto. Ao abrir os olhos com certa dificuldade, pôde contemplar a paisagem agora desprovida de neblina.

— Foi uma alucinação...? — Sua voz soava sonolenta, como se tivesse acabado de despertar. Alaric estava caído de bruços no chão, e lentamente, virou-se para admirar o céu. — Foi tão real para ser apenas uma alucinação...

Seu corpo doía, especialmente o rosto, indicando que os socos que levou não eram fruto de sua mente. Ou se eram, foram tão intensos que causaram danos físicos reais. Mas isso era mesmo possível? Alaric não tinha respostas, e, sem elas, ele se sentou no chão, ainda tonto após tudo.

— Anthon... — O cachorro estava sentado à sua frente, observando-o silenciosamente. — Os porcos!

Levantando-se com urgência e verificando os porcos, que na sua ilusão estavam mortos, Alaric pôde suspirar aliviado ao vê-los vivos e se alimentando. Isso significava que tudo o que ele vivenciou durou apenas alguns minutos no mundo real, talvez apenas alguns segundos? Ele sabia ao certo, mas julgando pela quantidade que os animais haviam comido, parecia ser o caso.

Refletindo sobre tudo, Alaric encostou na cerca, perdido em pensamentos. Vingança. Será que esse era realmente o caminho? Será que era realmente necessário? Se sim, então precisaria de poder, muito poder. Dalian mostrara-se extremamente poderoso e, com certeza, se fortaleceria ainda mais. Apertando os olhos, tentou buscar uma solução, mas nada lhe veio à mente.

Concentrando-se, sentiu um formigamento na pele, confirmando que, embora não conseguisse conjurar a mana divina para fora do corpo, ainda podia fazê-la circular dentro de si. Isso significava que ainda podia usar a técnica da "Estrela Divina". 

No entanto, era insuficiente. Ele só conseguia usar uma estrela, e isso já lhe causava dores excruciantes. Mais do que isso poderia resultar em uma parada cardíaca, algo que ele não desejava.

De armas, restava apenas a lança de Magnus, poderosa, porém menos ágil do que uma espada. Sem companheiros para suprir suas necessidades, mas isso não o preocupava.

— Eu só trago morte... Ficar sozinho é melhor... — Todos que se aproximavam dele acabavam mortos ou sofriam muito. No fim, ele acreditava que ficar sozinho poupava as pessoas, e a si mesmo, do sofrimento. 

Absorto em seus pensamentos, Alaric não percebeu a chegada de alguém até que uma voz gritou ao longe:

— Alaric! Precisamos conversar! — O jovem virou o rosto na direção de onde a voz veio e avistou um homem fardado aproximando-se pelo gramado. — E nem pense em fugir!

Era um homem de idade avançada, o que se denotava pelas rugas marcadas em sua face e pelas linhas de expressão profundas. Um grande bigode, quase rivalizando com o de Chen, adornava seu rosto. Sobre a cabeça, ele usava um chapéu ornamentado com algumas jóias, tendo no centro uma estrela que indicava a autoridade. Seu corpo estava envolto por uma túnica longa feita de seda, decorada com padrões intricados.

Alaric estalou a língua e enfiou as mãos nos bolsos, antes de chamar Anthon e seguir o homem até a casa.

Ao alcançar a varanda, Alaric abriu a porta, permitindo que Anthon adentrasse, dirigindo-se de imediato ao quarto, provavelmente em busca de descanso.

— Por favor, sente-se. — Alaric se aproximou da mesa na cozinha e puxou uma cadeira para o visitante. — Agora, pode me dizer qual é o motivo da sua visita hoje?

— Parece que com o tempo, você se tornou mais educado — o homem comentou, sentando-se na cadeira. Em seguida, retirou o chapéu e o colocou sobre a mesa. — O motivo da visita é simples: tentar lhe dar um pouco de bom senso, afinal, cortar as mãos de alguém não é exatamente algo agradável...

Tsc... Então é isso... — Alaric recuou alguns passos, mantendo o olhar fixo no homem à sua frente, e se apoiou na bancada da pia, os dedos tocando levemente a superfície fria. — Como já devem ter te informado, fui atacado, Peng. Apenas me defendi.

— Parece que as pessoas têm uma tendência a te provocar, não é mesmo? — Peng inclinou a cabeça, levando a mão ao queixo em um gesto pensativo. — Quando você cortou as pernas do Yang, lembro-me de você dizer algo parecido. E também quando cegou o Ming. Arrancou a orelha de Xion... Deixe-me ver, porque há muitos mais!

Cada nome mencionado era como uma pedra a mais sobre os ombros de Alaric, tornando-se sua expressão ainda mais sombria a cada lembrança trazida à tona. Tentando disfarçar sua inquietação, passou a mão pelos cabelos vermelhos e cruzou os braços sobre o peito, mantendo-se apoiado na bancada.

— Yang estava perseguindo uma garota, tentando forçá-la, então cortei suas pernas para garantir que ele nunca mais fizesse isso... Ming… Hmmmmm… deixe-me lembrar... Ah! Como poderia me esquecer! Ele ficava espiando as garotas tomando banho... E Xion... esse desgraçado fingia que não me ouvia enquanto eu o ameaçava e pedia para se afastar. Se era assim, as orelhas já não lhe seriam úteis mesmo…

— Alguém já te disse que você é meio extremo em suas soluções? — Peng levou a mão ao rosto, visivelmente irritado. Esse jeito do Alaric só complicava seu serviço como retentor da paz. 

— Cortando os problemas pela raiz... — Alaric se virou em direção à pia, arregaçando as mangas para lavar o prato que usara antes. — …Impedimos que a planta consiga se restabelecer e crescer novamente.

Peng ouviu aquela metáfora distorcida, ainda com a mão sobre o rosto, e suspirou, deixando o braço cair em desgosto sobre a mesa, enquanto o som da água corrente recém-aberta ecoava até seus ouvidos.

— Primeiro, pessoas não são plantas. — Seus dedos começaram um botuque inquieto na mesa. — Segundo! Você não é uma autoridade. Pare de se achar o dono verdade e da justiça!

Alaric esfregou o prato com uma expressão distante, apenas parcialmente consciente do sermão que ecoava ao seu redor. Após enxaguá-lo meticulosamente e secá-lo com cuidado, o guardou na dispensa do balcão. Ainda agachado, falou:

— Entendo. Quer chá? 

— Garoto, você sequer ouviu uma palavra do que eu disse? — indagou Peng, erguendo uma sobrancelha com desconfiança. 

— Quem sabe... — respondeu de forma cínica. Fingindo que Peng disse “sim” para sua indagação anterior, muito pelo desejo de escapar dessa conversa tediosa, pegou a chaleira. — Vou preparar o chá então.

Alaric encheu a chaleira com água e a colocou no fogão, acendendo-o com destreza. Agora, só restava esperar que a água começasse a borbulhar. Enquanto aguardava, ergueu os olhos e se deparou com a ampla janela que se abria para a extensa floresta, ele estranhamente estreitou o olhar ao observá-la.

— Sabe, Alaric, nem tudo se resolve com uma arma. Digo isso pelo teu próprio bem… — disse Peng, em um tom de advertência.

— Mas há ocasiões em que uma arma se faz necessária… — respondeu, analisando meticulosamente a floresta através da janela.

Peng desviou o olhar para as costas do jovem, que parecia absorvido pela visão lá fora, e ficou confuso com a resposta franca e o comportamento intrigante de Alaric.

— Antes que pergunte, estou observando alguns homens nada amistosos escondidos na mata. — Alaric murmurou, enquanto discretamente invocava sua lança de um ponto oculto sob o balcão, evitando que os vigias na floresta o percebessem. — Parece que teremos mais visitas para o chá…



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