Volume 5

Cena 1

Close-up e Adeus

 

  1. EXTERIOR DO HOTEL – NOITE

O hotel é bastante amplo e parece um hotel de negócios. Já anoiteceu, mas ainda não está completamente escuro.

  1. QUARTO DO HOTEL

Um quarto básico sem muito em questão de mobília. Tem um tamanho decente. KOUDAI KAMIUCHI, um aluno do sétimo ano do ensino fundamental, trouxe MIYUKI KARINO aqui. Ela está cercada por um grupo de homens com sorrisos evidentemente obscenos. Seu rosto está coberto de medo. Atrás dos homens há uma cama de casal.

MIYUKI: K-Kou-chan!

Ignorando MIYUKI, KOUDAI fecha a porta. Sem perder um segundo, MIYUKI tenta escapar. Um dos homens bloqueia seu caminho. Procurando por um lugar para se esconder, ela instintivamente corre para o banheiro. Felizmente, há uma fechadura na porta do banheiro. MIYUKI a tranca. Ela se senta em frente à porta. Sua respiração está violenta. A silhueta dos homens pode ser vista pela porta parcialmente transparente.

HOMEM 1: Venha cá, minha doce Miyuki-chan!

HOMEM 2: Não fique assustada! Venha cá, vamos nos divertir juntos!

HOMEM 3: Você sequer sabe o quanto pagamos por você?!

Enquanto os homens batem na porta, os lábios de MIYUKI tremem. Ela abraça as próprias pernas com força. Ela faz várias tentativas frustradas ao tentar freneticamente abrir sua mochila. MIYUKI finalmente abre o zíper e tira um celular com vários acessórios da bolsa.

Ela começa a digitar com os dedos trêmulos.

  1. DISPLAY DO CELULAR

“Socorro! Homens estranhos estão tentando...”. Pálida, MIYUKI está digitando em seu celular. De repente, ela para. A câmera corta para o fim da mensagem, que simplesmente diz: “Me ajude”.

  1. FLASHBACK DA RINO

Corta para uma envergonhada, sorridente, recém-ingressada no ensino fundamental MIYUKI que está tendo seu cabelo acariciado por DAIYA OOMINE. Próxima a ela está KOKONE KIRINO. Ela está em pé perto do DAIYA e tem uma expressão inquieta em seu rosto.

  1. BANHEIRO

À beira das lágrimas, MIYUKI continua a digitar. A câmera aproxima da tela do celular: “Me ajude Dai-kun!” Ela aperta o botão. “Sua mensagem foi enviada”.

 

Daiya Oomine — 09/09 QUA 08h10min

Se alguém fosse fazer um filme sobre a minha vida, ele descobriria que é inútil esperar que surjam novos roteiros; a história da minha luta para transcender minhas próprias limitações pode ser original, mas não seria bem recebida. Tópicos como “caixas” e “O” são implausíveis demais para o fã de cinema comum.

De tudo, acho que as cenas envolvendo meu passado amoroso atrairiam mais telespectadores. Ah, mas, nesse caso, eles teriam que inventar um final feliz. Digamos que eu morra de uma doença terminal; Kiri aceita minha morte e segue adiante. Como isso soa?

Algumas décadas atrás seria um sucesso. Infelizmente, na realidade eu não morro. A vida continua mesmo depois que tragédias nos atingem e deixam para trás feridas permanentes.

A história de Daiya Oomine terminou há muito tempo.

As cortinas se fecharam.

Portanto, devo dar um desfecho para tudo o que resta da minha vida humana.

 

Com esse objetivo, voltei para a escola.

 

— Oh Kazu-kun… por que você não apenas admite que estava fascinado com a minha beleza?

— Hora de abrir os olhos dela, Hoshii! “Não. Eu apenas olhei para você porque a confundi com uma mosca de esterco gigante”.

Kiri e Haruaki estão fazendo piadas mesmo que as aulas estejam para começar. Tento me juntar a eles sem me levantar da minha carteira:

— Sempre usei o termo “sede de sangue” sem pensar muito, Kiri, mas graças a você finalmente entendi seu verdadeiro significado. Não usarei mais esse termo desnecessariamente no futuro. Obrigado.

— Hã? Ah, meu brilho te fez incapaz de suportar sua própria miséria e agora você sente sede de sangue por si mesmo? Muito bem!

Que conversa falsa e superficial. É o mesmo que copiar uma música popular usando a partitura. É doloroso vê-los carregando essa rotina falsa. Eu desapareci por um longo tempo. Além disso, obtive uma “caixa” e mudei. Algumas pessoas na nossa classe devem ter assistido aos vídeos de Shinjuku e percebido minha atuação.

E voltei de repente no fim das férias de verão. Não tem como as coisas voltarem a ser como eram após um único dia. A atmosfera calorosa que a Kiri costumava buscar não existe mais. Como prova disso, algumas das garotas estão a evitando.

Provavelmente, esse cotidiano escolar estaria quebrado eu voltando ou não. A chegada de Maria Otonashi e as várias “caixas” com que Kazuki Hoshino se envolveu abriram várias trincas nessa estrutura. Mesmo assim, Kazu poderia ter sido capaz de manter a paz se assim tivesse escolhido — mas agora que ele superou o “Game of Idleness”, não se importará mais com algo tão fútil.

Esse falso cotidiano está chegando ao fim. E serei eu a dar o golpe de misericórdia.

Ontem coloquei dúzias de estudantes sob meu comando. Essa escola marca o início do meu plano. Se tudo o que é afetado por uma “caixa” é “distorcido”, então “distorcerei” o mundo todo.

Uso meu celular para mandar uma mensagem para uma certa assassina. Um dos alunos sob meu comando me conseguiu as informações de contato dela.

“Aqui é Daiya Oomine. Quero conversar, vamos nos encontrar no telhado durante o intervalo do almoço. Vou garantir que a porta estará aberta”.

 

Presidente do conselho estudantil, Iroha Shindou, aceita meu convite e aparece no telhado da escola durante o almoço.

— Há quanto tempo, Oomine-kun. Hã? Ah, mesmo isso não é verdade. Acho que essa é a primeira vez que nós realmente conversamos? — Ela diz. — Você não pode escolher um lugar melhor para se confessar? Estou suando feito louca.

Esperava que ela ainda estivesse se recuperando do “Game of Idleness”, mas… essa garota tem a coragem de conversar casualmente com alguém que ela enfrentou em um jogo mortal. Como esperado de Iroha Shindou. Isso apenas reforça minha decisão de chamá-la.

— Você se lembra de ter me matado, certo?

Minha pergunta direta fez os olhos dela se arregalarem por um instante, mas ela rapidamente a descarta, zombando:

— Você parece bem vivo, se quer saber!

— Parece que você lembra.

Shindou aperta os lábios e coça a cabeça. Ela pode parecer bem, mas não está realmente. O olhar em seu rosto revela que é tudo uma atuação.

— Bom, deixe-me ajudar sua pobre memória. Você deve ser inteligente o bastante para saber que aquele incidente não foi nem um sonho nem uma ilusão. Mas acredito que haja alguns lapsos em sua memória. Você se lembra da identidade do culpado?

Ela hesita por um instante, e responde com desdém:

— Foi o Kamiuchi, certo…?

— Certo. E já que se lembra disso, tenho certeza que você também se pergunta como Koudai Kamiuchi foi capaz de fazer algo como aquilo — digo e então, menciono uma certa palavra. — Ele tinha uma “caixa”.

Shindou está esperando que eu continue. Contudo, mantenho minha boca fechada, convencido de que já disse o bastante. Me vendo manter meu silêncio, ela coça a cabeça.

— Humm… você não resumiu demais a sua explicação?

— Eu não disse o bastante para você entender pelo menos parte do que está acontecendo?

— Parece que você está me superestimando. Não sou boa em tirar conclusões nem nada do tipo, sabia? …Mas uma “caixa”, hein. Pela forma que você disse, assumo que isso é a ferramenta que criou aquele jogo assassino? Ou devo pensar nela como uma ferramenta que, além de outras coisas, tem o poder de criar um jogo daqueles?

Como esperado, Shindou foi capaz de deduzir várias informações apenas com alguns comentários. Não apenas isso, ela até mesmo conclui:

— Então? Poderia ser que você também conseguiu uma dessas “caixas”, Oomine-kun?

Heh, quem você disse que não é boa em tirar conclusões?

— Sim. Apesar de não ser especializada em criar jogos assassinos, eu tenho uma “caixa” em meu poder nesse momento. Bom, não deve ter sido difícil para você deduzir isso, já que mencionei o assunto após te chamar até aqui.

— Hum, bom, apenas percebi que a sua atmosfera mudou, e isso deixa claro que algo deve ter acontecido.

Minha atmosfera mudou? Isso não me surpreende, depois de tudo que fiz após ter me tornado um “portador”.

— E então, o que exatamente é uma “caixa”?

— É uma ferramenta capaz de garantir qualquer desejo.

— Qualquer desejo? Não parece ruim. Mas na maioria das vezes você não pode aceitar algo assim literalmente, certo? É quase certo que essa coisa é amaldiçoada. Como uma peça de equipamento que você não pode remover de um RPG famoso. Ah, deixe-me esclarecer: Eu tenho senso comum o bastante para rejeitar essa história de “caixa”. Mas já que não chegaríamos a lugar nenhum dessa forma, estou assumindo que isso existe — ela diz. E com uma atitude depreciativa, adiciona: — Deixando isso de lado, qual foi o seu desejo, Oomine-kun? Amor correspondido? Oh, que fofo de sua parte!

— Uma revolução mundial.

Ela fica em silêncio abruptamente.

— … Está falando sério?

— Sim.

Incerta sobre como reagir, Shindou responde sem qualquer expressão:

— Há… que seja. Vou acreditar em você. Então isso quer dizer que você está tentando comandar a linha de frente para mudar o mundo com esse poder? Escute Oomine-kun… não acho que você seja apto para o serviço, não acho que você esteja pronto para começo de conversa.

Ela com certeza não mede as palavras. Mesmo assim, a avaliação dela é perfeitamente natural, já que ela me conhece apenas pela “Game of Idleness”. Como NPC, tudo o que fiz foi rejeitar contato com os outros. Não apoiei ninguém.

Alguém que quer “comandar a linha de frente” deveria ter protegido os outros jogadores como Shindou fez. Se perguntassem quem seria o melhor líder entre nós dois naquele momento em particular, qualquer um teria votado na Shindou.

Mas exatamente por causa disso, preciso superá-la.

É por isso que a chamei até aqui…

até o ensolarado telhado onde eu projeto uma densa sombra.

— Deixe—me dizer como vou mudar o mundo.

— Sério? — Ela responde desinteressada. — Sabe, honestamente, não estou interessada. Posso te ouvir se insistir, mas podemos pelo menos ir até a cantina? Estou torrando aqui fora.

— Não.

— Haha. Então adeus. Você já sabe meu endereço de e-mail então mande uma mensagem. Tenha certeza de colocar “meu *brilhante* plano para mudar o mundo” como assunto. Piff. Você definitivamente assistiu animes demais, Oomine-kun. Se você me mandar uma mensagem dessas, eu sequer abriria, muito menos chegaria a ler.

Ela se vira, mas bloqueio seu caminho.

— Ei. Eu sei que sou tão linda que você não quer me deixar ir, mas nenhuma garota gosta de caras insistentes, sabia? Se fosse a Yuuri, iria chorar na frente dos meus admiradores para eles te darem uma surra.

Shindou passa por mim. Mas isso não importa mais. Já consegui cumprir meu objetivo.

Já consegui fazê-la pisar na minha sombra.

 

Portanto…

O pecado de assassinato flui para dentro de mim.

 

Esse sim é um forte. Estou tendo dificuldades em me manter de pé.

Quando estava lidando com aquela aluna do fundamental, havia um profundo sentimento de ódio, mas esse pecado é como uma lâmina. Que estimulante. Apenas um instante de descuido e esse pecado perfurante rasgará meu interior em pedaços. Mas absorvo esse pecado.

— Shindou — digo para as costas dela. — Se afogue em seus próprios pecados.

Agarro a “Sombra do Pecado” que acabo de receber e…

— … Ah!

…a engulo.

— Uh… Ah… AH!

Momentos antes de alcançar a porta, Shindou repentinamente começa a gemer. Sua face se distorce de dor e ela vai ao chão, como se seu coração estivesse sendo esmagado. Ela está encharcada em suor frio. Shindou está sentindo a mesma dor perfurante que eu.

Sofra. Esse é o seu pecado.

Olho-a no chão enquanto ela me encara desafiante de sua posição agachada.

— O que… você… fez?!

— Apesar de parecer bem, parece que você ainda não superou aquilo, no fim das contas. Você apenas ficou boa em disfarçar, hein.

— Estou perguntando o que você fez!

Simplesmente a lembrei de sua culpa.

— …Hã?

— Oh, bem. Deixe-me dar uma explicação sobre minha “caixa”, a “Shadow of Sin and Punishment”. É uma “caixa” que me permite subjugar humanos e controla-los à vontade. Uma vez que engulo a “Sombra do Pecado” de alguém, essa pessoa se lembra do momento em sua vida em que seus ataques de culpa eram mais fortes. Para ser exato, ele se lembra dos sentimentos que teve naquele momento. No seu caso, foram os assassinatos que você cometeu dentro do “Game of Idleness”.

— …E… esses sentimentos são… daquela vez…? Por isso… eles parecem tão familiares — ela diz, com os olhos lacrimejando.

— Você foi [subjugada]. Agora posso controla-la a vontade.

Com a mão no peito, ela se levanta e assume uma postura hostil.

— Você acha que me [subjugar] dessa forma vai provar o quão bom você é ou o quê?

— Não tem sentido nenhum em fazer isso, tem?

Shindou enruga a testa.

— …E…então o que você está pensando?

— O poder da “Shadow of Sin and Punishment” é ativado por meio das sombras. Vê minha silhueta no chão? É isso. Esta sombra, que se tornou mais escura do que preto por causa dos inúmeros pecados que foram absorvidos por ela, é a minha “caixa”. Mas esta “caixa” não pertence apenas a mim. Ela é compartilhada entre as pessoas cujos pecados absorvi.

— …Isso quer dizer que…

Quer dizer que você também pode usar.

Ela arregala os olhos.

— Espere. Nesse caso, você me chamou aqui porque você quer…?

Compreensão rápida, como sempre. Adivinhando minhas próximas palavras, ela continua:

Você quer que eu seja sua aliada?

Apenas levanto um dos cantos de minha boca como resposta. Quero aumentar minhas chances de derrotar o Kazuki e seus companheiros. Para isso, preciso da determinação inabalável de Iroha Shindou.

— Dito isso, se você discordar de minhas intenções, não irá cooperar. Portanto, vou explicar o que planejo fazer.

— …Certo, certo, entendi. Apenas faça algo sobre essa dor!

— Impossível. Essa dor era sua desde o princípio. Eu simplesmente a despertei. Faça algo sobre ela você mesma. Caso contrário, você não será digna de meu poder e apenas tirarei vantagem de você como uma serva.

— Seu poser meia-boca de visual kei…! Tch, certo, certo, já entendi! Não me subestime, tá legal? Desde que eu saiba de onde esses sentimentos vêm, é uma maldita brincadeira de criança coloca-los sob controle. Espere um instante até eu clarear minha mente. Vou destroçar esse seu plano apenas com palavras! — Ela chia… e então, respira fundo, como se tivesse acabado de terminar uma série puxada de exercícios. Após mais algumas respirações, ela gradualmente vai se acalmando.

— Certo, por favor, continue — ela me apressa, tendo recuperado completamente sua compostura. Nada mal. Certamente não esperava que ela realmente esclarecesse sua mente em alguns segundos.

— Muito bem. Planejo reforçar o nível de moral da humanidade. Para isso, vou criar uma nova perspectiva que julga o mundo atual.

— Ah, certo… me perdi legal, mas continue.

— Certo, vamos dizer que você está para vandalizar uma estátua de Cristo. Mesmo que você saiba que é um bloco de pedra sem vida, você teria dificuldade em juntar determinação para fazer isso. Suponha que você é ateia… mesmo assim você é condicionada socialmente a respeitar Deus, e é natural temer que você possa de alguma forma acabar amaldiçoada.

— É, acho que você está certo.

— Seja Buda, Deus, sociedade ou o que quer que seja: é mais difícil cometer uma malfeitoria se houver uma crença em alguma entidade universal que julga suas ações. Usando a “Shadow of Sin and Punishment”, irei criar um novo observador universal.

— Como?

— Você ouviu falar dos “Cães Humanos”?

— É claro. Ah… você está por trás disso? Mas por que você usaria uma aproximação tão indireta sendo que você tem uma “caixa” que pode fazer qualquer coisa? Por que você não desejou que todos se comportassem eticamente, em primeiro lugar?

— Eu sou um realista, portanto, meu desejo é limitado.

— Hum? Pobre garoto. Que seja, mas se outras pessoas também podem usar o poder de controlar os outros, certamente haverá alguns que abusarão dele, certo?

— Talvez, mas isso não é realmente um problema.

— Você acha?

— Eu não vou sair criando [mestres] aleatoriamente. A menos que alguém que já é um [mestre] permita, é impossível adquirir o poder de controlar os outros. Nesse momento, sou o único [mestre]. Na verdade, você também é a primeira a saber que a “Shadow of Sin and Punishment” é uma “caixa” que pode ser compartilhada.

— Oh, que honra — ela diz sarcasticamente. — Mas isso significa que eu seria capaz de criar novos [mestres] se você me tornar um [mestre], certo? Você não perderia o controle se o número de usuários aumentar exponencialmente?

— [Mestres] não irão passar seu poder de forma descuidada. Você vai entender o porquê quando receber o poder.

— Vou entender, hein… bom, mesmo que isso seja verdade, você ainda não me convenceu de que esse poder não será abusado.

— Você está conectada aos outros através de sentimentos de culpa. Se você estiver ciente do fato de que está abusando de sua “caixa”, isso levará a sentimentos de culpa. E esses sentimentos serão repassados para os outros… especialmente aos [mestres].

— Humm. Então todos estão meio que em constante vigilância mútua.

Ela aperta os lábios novamente. Ah, se me lembro bem, ela tem o hábito de fazer isso.

— Bom, acho que entendo. Mas Oomine-kun, por que você usou sua “caixa” para algo assim? Se quer saber, você seria muito mais feliz se fosse honesto sobre seus desejos.

Fico em silêncio por alguns instantes. Gostaria de não ter que dizer isso a ela, mas preciso de sua cooperação. Abro minha boca enquanto mecho com um dos meus piercings.

— Eu odeio pessoas ignorantes.

— Bom, eu também não gosto deles, e acho que qualquer um com alguma inteligência concorda.

— Até certo ponto em minha vida, eu acreditava que vidas eram arruinadas por maldade consciente e espontânea. Eu achava que vilões eram os responsáveis pela destruição das pessoas boas. Mas estava enganado. São os idiotas ignorantes que roubam a felicidade dos outros e arruínam suas vidas. Não os maus… são os tolos, os lixos incapazes de considerar o quanto suas atitudes egoístas irão machucar os outros. Vamos citar um ladrão de lojas como exemplo. Por causa das perdas causadas pelos roubos, uma loja assaltada pode fechar as portas. Um dos empregados pode ser incapaz de encontrar um novo emprego e a família dele ou dela pode se separar por causa da falta de renda. Se o assaltante tivesse considerado todos esses fatores e ainda assim continuasse a roubar maliciosamente, então ele apenas seria uma pessoa má. Mas a maioria dos ladrões não é assim. Eles têm uma vaga ideia de que roubar é uma coisa ruim, mas ainda roubam para satisfazer seus desejos sem sequer considerar os danos colaterais causados por suas ações… e arruínam a vida de outros em pensar duas vezes.

— Oomine-kun — ela diz, com uma expressão preocupada pouco característica dela. — Sua felicidade foi tomada por alguém assim, certo?

Não tenho intenção de responder essa pergunta.

— Assim que a “Shadow of Sin and Punishment” tiver o impacto desejado no mundo, as pessoas estarão mais cientes de seus pecados. Esse também é o motivo de eu estar causando tanta polêmica sobre os “Cães Humanos”. Quando todos refletirem sobre o significado de culpa, a ética irá melhorar. As massas vão começar a considerar as consequências de suas ações. Elas irão parar de cometer crimes. E finalmente, o número de tragédias irá diminuir.

— Você acha que vai ser tão simples assim?

— O dado já foi lançado. Não há mais volta.

Shindou me encara com olhos pensativos.

— Mas diga… esse realmente é o seu… — Ela para. —… Não, esqueça o que eu disse. Humm, acho que a “Shadow of Sin and Punishment” é um sistema inteligente, e o que você está fazendo é bem interessante, mas, como disse antes, não acho que você esteja apto para o serviço.

— Que tal me julgar então?

— Hã?

— Irei te passar o poder de [mestre] agora. Para poder [controlar] um [servo], você precisa suportar o farto dos pecados dele. Irei te passar… sim, os pecados de dez pessoas, incluindo alguns de seus colegas de classe.

— Então você me deixará [controlar] essas dez pessoas? Não estou muito certa sobre como devo te julgar com esse poder…?

— Você entenderá logo.

— … Humpf. Tem certeza? Ainda não concordei com você, então posso não cooperar mesmo após receber esse poder?

— Se você ainda achar que não sou digno de sua cooperação após me julgar, então não me importo. Mas se você me aceitar, terá que cooperar comigo… sem “mas”, nem “se”, nem “e”.

Shindou assente e sorri provocativamente… como se estivesse lidando com uma criança mimada.

— Ok, fechado! Estou convencida. Se te aceitar, ajudarei no seu plano.

— Não se esqueça dessa promessa!

— Ah, só para lembrar, não tem nenhum duplo sentido nisso, ok? Já estou interessada em alguém.

Não posso segurar a risada, enquanto ela continua fazendo piadas bobas. A última vez que ela se envolveu com uma “caixa”, foi forçada a cometer assassinato… mesmo assim, ela está completamente relaxada agora. Aposto que ela está certa de que não terá que me aceitar. Ela deve estar pensando que não pode possivelmente ser derrotada pela minha “caixa”.

— … Heh.

Não fique convencida, Shindou! Farei você se arrepender de ter aceitado esse acordo com tanta arrogância. Vou te derrotar e provar qual de nós é mais capaz! Irei literalmente coloca-la sob meu comando e fazê-la lamber meus pés.

Um leve sorriso se forma em meu rosto enquanto fecho meus olhos. Ao mesmo tempo, me fecho. Procuro, entre os inúmeros pensamentos, aquele torpor no meu interior. Se tornar um [mestre] também significa domar esses monstros, a “Sombra do Pecado” dos [servos], que nunca cansam de se revoltar e tentar destruir o corpo de seu hospedeiro. Shindou, você é capaz disso?

— Shindou.

— O quê?

— Não perca sua confiança nas pessoas.

Seguro a cabeça dela e enfio meus dedos indicador e médio na boca dela… junto com uma “Sombra do Pecado”.

 

Engolir um pecado é como engolir a parte mais suja da alma de uma pessoa e aceita-la.

A primeira vez que absorvi o pecado de alguém, pensei que meu corpo tinha se tornado verde e começado a emitir um odor fétido. Até mesmo tive a sensação de que o sangue sujo fluindo em minhas veias estava fazendo minhas células apodrecerem. Em plena luz do dia, tive alucinações com o meu corpo apodrecendo como o de um zumbi. As pontas do meu dedo fediam a fezes e cheguei a temer que fosse começar a atrair moscas. Esse foi o tanto que eu sofri.

Mas Shindou conseguiu engolir um pecado sem qualquer problema.

Talvez apenas pessoas fracas sintam essa dor, e Shindou seja tão forte que ela pode não ser afetada. Se isso acontecer, eu perdi. Terei que desistir de tê-la do meu lado. Mesmo assim, meu plano vai continuar, mas essa derrota terá graves consequências. Perderei a força dela e pior, começarei a duvidar sobre minha capacidade de ser um [mestre]. Por isso…

— Uh... Ah... AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHH!!

Esse grito de estremecer os ouvidos me alegra.

— Ah, ugh, AAAH! Nã…o! Pare com isso, que merda é essa! Tão sujo—sujo—ai—aii— AIII—AAARGH—nojento—merda—isso é DOENTIO—apenas—MORRA, esse cara não merece viver!

A verdade que ela acabou de descobrir é ainda pior do que essa raiva.

— Mas! Mas! …Um humano. É apenas… um humano… qualquer.

Esse horror vem de uma pessoa comum que vive normalmente. Essa pessoa não é um criminoso, nem alguém doentio… ele é apenas uma pessoa comum que a Shindou pode até conhecer e se dar bem com.

Pessoas cometem pecados apenas por viver. A maior parte de nós se acostumou com esses pecados sem perceber. Por meio dos nossos valores egoístas e individualistas, nós perdoamos a nós mesmos. Mesmo que nossos pecados sejam nojentos de uma perspectiva externa, nós rapidamente os aceitamos sem qualquer problema porque nos acostumamos com nossa própria sujeira. De forma resumida: cada humano pega terrivelmente leve consigo mesmo. Nós humanos somos sujos. Portanto, nós ferimos os outros apenas por viver.

Observando Shindou pelo canto do olho, murmuro:

— Mais nove.

Seguro a cabeça dela e me preparo para fazê-la engolir outra sombra, mas ela subitamente me agarra pelo cabelo, com um rosto completamente vermelho.

— Não me venha com essa! Seu… o que você está tentando fazer comigo?

— Você quer que eu pare?

Ela me lança uma carranca com olhos úmidos.

— É claro que quero! NOVE?! Mesmo uma a mais seria demais!

— Mas eu tenho novecentos e sessenta e sete deles — digo do nada, deixando—a atordoada. — Estou dizendo que já suporto o fardo de novecentas e sessenta e sete pecados.

— Vo… — Ela é interrompida por um acesso de tosse. Ainda mostrando hostilidade, continua. — Você tem novecentos e sessenta e sete dessas coisas?

Shindou ri e chacoalha a cabeça.

— Haha, impossível! Sua mente não seria capaz de suportar isso! Não sem estar preparado para arruinar a si mesmo!

— Sim. Você está certa.

— Hã?

— Sei que minha ruína é inevitável. Posso ficar insano, morder minha língua e morrer a qualquer momento. Estou preparado para tudo isso.

Minha vida terminará de forma miserável. Ninguém irá me elogiar ou respeitar; Serei apenas menosprezado. As pessoas irão apenas desviar o olhar dos meus restos sujos, tapar seus narizes por causa do fedor e talvez chutar meu corpo em uma vala. Isso é tudo.

Mas estou preparado para isso.

Não importa o preço, irei eliminar todos os ignorantes.

Shindou lentamente alivia a força em seu aperto.

— Não me importo em morrer desde que consiga armar o cenário até certo ponto. Nesse momento, meus aliados prosseguirão com o plano. Foi por isso que designei minha “caixa” para ser compartilhada. Posso passar a “Shadow of Sin and Punishment” adiante mesmo que eu morra. Desde que eu não abandone minha “caixa”, o sistema continuará intacto. Assim que o sistema estiver funcionando, não me importo em morrer.

— O que você…

— E aí? — Zombo. — Sou ou não sou superior a você?

Olhando no fundo dos meus olhos, ela solta o meu cabelo. Então, ela limpa as lágrimas com um hábil movimento de seus braços, respira fundo e se acalma. Seu olhar está afiado novamente, e ela ergue um dos cantos dos lábios.

— … Aceitarei mais nove. Afinal de contas, eu prometi.

— Está bem com isso?

— É claro que não! Mas mantenho minhas promessas e acredito que sou capaz de qualquer coisa.

Um sorriso provocante aparece em seu rosto.

— Você tem meu respeito, Daiya Oomine! Vou apoiar esse seu plano até seu último suspiro!

 

Daiya Oomine — 11/09 SEX 16h13min

Certo. Essa é uma súbita virada de eventos, então vamos pôr os fatos em ordem.

Em que situação estou agora?

 

Estou preso dentro de um cinema.

 

Fui jogado em um cinema carmesim. É tão estéril e sem vida que o próprio ar parece estranho e não posso evitar me sentir agitado e intimidado.

— Hum...

Vamos revisar o que me trouxe a essa atual situação. Junto com a Shindou, comecei a assumir o controle sobre nossa escola. Uma vez, Shindou me perguntou se tinha qualquer sentido em fazer aquilo. Realmente, não ganhamos qualquer vantagem estratégica em colocar nossa escola em nosso comando e tornando-a nossa base. Contudo, isso é uma necessidade absoluta de um ponto de vista psicológico: por não ser capaz de me desfazer completamente de minha fraqueza, eu precisava de uma cerimônia para abandonar meu “cotidiano escolar” de uma vez por todas.

Derrotar Otonashi, que pode sentir “caixas”, derrotar Kazuki Hoshino que é o arqui-inimigo das “caixas” e abandonar Kokone Kirino, o símbolo da minha vida escolar… esses eram os rituais que precisava completar. Até mesmo decidi a ordem em que ia realizar esses rituais. A 999ª pessoa de que eu assumiria o controle seria Maria Otonashi, o 1000º seria Kazuki Hoshino e a 1001ª – Kokone Kirino.

Após isso, começaria a produzir “Cães Humanos” em massa. E então, eu remodelaria o mundo usando minha “caixa”.

Nós fizemos um bom progresso em controlar nossa escola, mas tudo correu tão bem que estava começando a me preocupar. Era estranho que Kazu e Otonashi, que sabem que sou um “portador”, não agirem. Naturalmente, esperava que eles entrassem em meu caminho no momento em que voltei para a escola.

Mas eles não fizeram isso.

Eu os vi juntos na escola, mas eles apenas me observavam de longe. Kazu estava me ignorando e Otonashi, embora parecesse se preocupar comigo, não fez nada. Talvez Kazu esteja restringindo ela. Somente quando eu fiz meu 998º [servo], Yuuri Yanagi, ele apareceu diante de mim.

— Estava me perguntando até quando você ia me fazer esperar.

Foi após a aula, estávamos na biblioteca. Eu tinha acabado de tornar Yuuri Yanagi uma [serva] abertamente. Afinal de contas, Shindou bloqueou a livraria e os outros estudantes lá já estavam sob meu comando. Yanagi estava cheia de angustia por ter cometido o pecado de assassinato. Kazu lançou um breve olhar de pena na direção dela, e então me encarou.

Para minha surpresa, ele tinha se escondido lá sozinho. Mas agora que penso sobre isso, faz todo o sentido. Kazu não depende mais da Otonashi. Ele não a deixaria sequer chegar perto de uma “caixa”. Ele deve tê-la convencido de alguma forma a permanecer passiva.

— Daiya — ele me chamou e sorriu. — Está preparado?

Eu não pude esconder minha surpresa diante desse sorriso. Um sorriso tão similar ao sorriso charmoso de “O”. Perdi o equilíbrio e imediatamente comecei a pensar sobre o significado dessa semelhança. Enquanto isso, Kazu se aproximou de mim. Kazuki Hoshino sussurrou em meu ouvido com uma voz doce, como se estivesse seduzindo uma garota.

Vou te esmagar.

 

No momento em que ouvi essas palavras, repentinamente me encontrei em um cinema. Um fenômeno inconcebível. Percebi imediatamente: Isso é uma “caixa”. De quem?

— Não me diga que…

É fácil chegar a uma resposta após considerar a situação. Além disso, já tinha considerado esse cenário. Mesmo assim, me vejo incapaz de aceita-lo imediatamente. Afinal de contas, Kazu costumava odiar “caixas”. Mais do que qualquer coisa, ele repugnava “O”, que fascinava qualquer outro. Ele realmente recorreria a uma “caixa” para se opor a mim?

— Não…

Estou errado. Ele não está tentando se opor a mim. Ele está protegendo Maria Otonashi ao atacar minha “caixa”. Por esse propósito, Kazuki Hoshino usou uma “caixa”. E me jogou dentro dessa “caixa” em forma de cinema.

O cinema em que me encontro tem diversas salas. Lembra o cinema em um shopping próximo, provavelmente porque Kazuki é o “portador”. Mesmo sabendo que era fútil, procurei por uma saída. Mas não havia nenhuma para ser encontrada. O corredor está coberto por um carpete vermelho perfeitamente livre de pó que se curva infinitamente. Se eu tivesse a planta do andar, provavelmente descobriria que esse corredor forma um círculo perfeito. Existem quatro entradas que levam a telões diferentes. Cada sala parece idêntica em tamanho, dimensão do telão, número de assentos e todos os outros detalhes.

É um local completamente mórbido.

A conclusão que cheguei: Estou preso dentro dessa “caixa” em forma de cinema.

 

Com meus pensamentos organizados, penso em uma nova pergunta: O que essa “caixa” faz? O que vai acontecer a seguir?

Olho para o painel digital próximo a mim. A tela mostra que filmes serão exibidos, em que horário e em que tela.

 

SALA 1: “Close-Up e Adeus” (16:30 – 18:00)

SALA 2: “60 Pés e 6 Polegadas de Distância” (18:30 – 20:00)

SALA 3: “Repetir, Recomeçar, Recomeçar” (20:30 – 22:00)

SALA 4: “Piercings aos Quinze” (22:30 – 24:00)

 

Cada filme tem duração de uma hora e meia, com trinta minutos de espera entre um e outro. O que significa que os filmes começam exatamente com intervalos de duas horas entre eles. O último filme termina hoje – 11 de setembro – à meia-noite.

Isso significa que preciso assistir todos eles? Olho para o meu relógio. São 16h24min. Também checo meu celular (que não tem nenhum sinal no momento) para confirmar a hora. O painel digital está mostrando o mesmo horário. Dito isso, estou dentro de uma “caixa”: o tempo pode ser flexível e não necessariamente precisa prosseguir em sincronia com o mundo real. Contudo, é seguro assumir que o primeiro filme, Close-Up e Adeus, irá começar de acordo com o horário em meu relógio.

— Humm...

O que devo fazer?

Kazu provavelmente espera que eu assista a esses filmes. Por outro lado, se não assistir, não saberei o que ele está planejando. Posso não conseguir bolar uma contra estratégia, o que contribuiria para o sucesso do plano do Kazuki. Devo assistir aos filmes para continuar informado? Ou devo ignorá-los para resistir a essa “caixa”? Meu debate interno acabou se tornando sem sentido.

 

De repente, estou em frente a uma tela de cinema.

 

Fui transportado novamente. O abuso desses efeitos sobrenaturais me faz suspirar.

Imediatamente, analiso minha situação. Não estou sendo forçado a assistir ao filme. Eu posso me levantar e sair se quiser. Mas não sinto vontade de sair. A apatia que estou sentindo não tem qualquer relação com a minha vontade. Provavelmente… Não, definitivamente é por causa dessa “caixa”.

De início, tento resistir ao poder que me prende no meu assento. Não é como se não pudesse me mover. Posso me levantar. Contudo, só de me levantar, me sinto horrivelmente apático… quase como se estivesse com uma febre alta. Ficar em pé por muito tempo é impossível… minha determinação acabaria imediatamente.

Resistindo ao senso esmagador de letargia, olho ao redor.

O que está acontecendo?

Têm pessoas ao meu redor.

E não apenas algumas… não faço ideia de onde eles vieram, mas a sala está lotada como estaria em uma noite regular no cinema. Haruaki também está presente. E, embora ele já esteja morto, vejo Koudai Kamiuchi também. Não conheço todos na audiência… me lembro de ter apenas visto alguns e outros jamais sequer vi.

… Por que Kamiuchi está aqui? Por que essas pessoas foram escolhidas? Se a “caixa” está sendo usada para reunir pessoas que conheço, por que alguns membros da audiência são basicamente estranhos?

As expressões deles estão rígidas como máscaras. Provavelmente, eles são apenas fantoches sem vida. Kazu está indo longe demais com todos esses efeitos especiais assustadores.

De início, fico um pouco assustado, mas por eles serem tão exagerados, rapidamente me recomponho e percebo que eles são apenas parte dos efeitos especiais. Continuo a observá-los calmamente, tentando encontrar algum denominador em comum… em vez disso, descubro algo novo e misterioso.

— Mas que porcaria é essa?

Está na última fileira no canto direito… não, não estou colocando isso da forma certa. Não está lá… Não está lá.

Naquele assento, há um buraco escuro como breu com a forma de uma pessoa. É escuridão absoluta. Um buraco diferente de uma sombra. Se fosse para dar um nome… seria um “abismo”.

Sua anomalia me faz franzir a testa e perder a vontade de resistir à letargia que me prende em meu assento.

— …Ah!

Finalmente a percebo. A garota sentada ao meu lado.

— …Rino.

Miyuki Karino.

A ex-namorada da pessoa que matei, Koudai Kamiuchi. Uma amiga de infância da minha vizinhança, um ano mais nova. Uma amiga de infância com quem nunca mais vou conversar.

— Ugh…

Ela é como os outros bonecos sem vida, inexpressiva e não demonstrando qualquer reação a mim. Mas não consigo me convencer de que ela é apenas um objeto como os outros.

Não consigo deixar de me lembrar do meu antigo eu por estar sentado ao lado dela. Antes que possa colocar meus sentimentos sob controle, um som de zumbido anuncia o início do filme.

Parte por reflexo, olho para a tela.

 

Um hotel qualquer apareceu na tela.

É pelo fato da vítima daquele incidente estar ao meu lado que posso reconhecer esse prédio imediatamente? A Rino do fundamental está cercada por homens com sorrisos obscenos. Com o rosto pálido, ela foge para o banheiro, pega o celular e começa a digitar uma mensagem, com seus dedos trêmulos. Alguns momentos depois, ela manda uma mensagem para mim.

A cena muda.

Um garoto de cabelos pretos aparece estudando em sua escrivaninha, em casa. A câmera foca no “eu” da época do ensino fundamental. Abro meu celular vibrante. A mensagem que a Rino acabou de me mandar aparece.

Ah, estou me lembrando do que aconteceu naquela época. No começo, eu não acreditei na mensagem que ela me mandou. Por um motivo: Rino sempre foi de pregar peças. Mais do que isso, naquela época eu ainda era ingênuo e não podia imaginar que uma amiga minha fosse ser a vítima de tal crime. Eu acreditava que jamais entraria em contato direto com algum crime no mundo real: crimes apenas aconteciam na TV e não tinham qualquer relação comigo.

— Não há dúvidas de que isso é uma armação. Mas e se ela realmente estiver com problemas?

Na tela, estou sussurrando para mim mesmo e finalmente ligo para Rino.

— Oi, Rino?

— Da-dai-chan, me... me ajude…– a voz da Rino está trêmula

Também ouço vozes masculinas no fundo:

— Ei! Com quem você está falando?!

Crash... o som de vidro quebrando. O grito da Rino.

A ligação cai.

Naquele momento, finalmente percebi o que tinha acontecido com ela. E piorei ainda mais a situação dela ligando sem pensar. Enquanto tentava desesperadamente me acalmar, liguei para a polícia imediatamente.

Finalmente, consigo desviar os olhos desse filme completamente repulsivo, e olho para a falsa “Miyuki Karino” sentada ao meu lado. Não precisa ser dito que ela ainda está inexpressiva. Mas isso ainda passa uma mensagem de reprovação silenciosa.

...

Finalmente percebo o que os membros da audiência têm em comum.

Eles são os atores. Haruaki e Kamiuchi… ambos têm papéis a atuar. Ah, parece que os homens que estão atacando a Rino estão na audiência também. Rino e eu somos as estrelas, é claro. A Rino ao meu lado está vestindo um uniforme desconhecido. Provavelmente é o uniforme do ensino médio que ela frequenta atualmente.

… Entendo. Então ela conseguiu entrar no ensino médio.

Quando entrei no ensino médio e comecei a morar sozinho, acabei com todas as relações que tinha no ensino fundamental — Haruaki e Kiri são as únicas exceções. Por isso, nem sequer sabia se a Rino tinha conseguido se tornar uma aluna do ensino médio após aquele incidente traumático.

Novamente desvio meu olhar dela. Quero desviar meu olhar de tudo o que vejo. Mas o poder dessa “caixa” está me forçando a assistir. Contra minha vontade, meus olhos se voltam para a tela.

Rino está chorando e se debatendo desesperadamente na cama do hotel. Cada quadro do filme me faz querer gritar em agonia. Isso não é um filme... são apenas momentos do meu passado. Meu passado da perspectiva da Rino.

Ela sendo abandonada naquele hotel, eu e Haruaki chegando tarde demais para resgatá-la, tudo começando a desmoronar daquele ponto em diante é apenas a dura realidade que tenho que encarar.

É…

É, entendo…

 

É a apresentação dos meus pecados.

 

No momento em que percebo isso, minha consciência começa a me torturar. Minha “Shadow of Sin and Punishment” está entrando em fúria.

— Ah!

Entendo Kazu! Então esse é o seu plano! Seu objetivo é minha autodestruição. Sendo jogado em um cinema que me mostra o meu passado, desmoronarei sob o peso dos meus pecados. Apenas por tolerar a “Shadow of Sin and Punishment”, já estou em meu limite. Como minha situação já é precária, Kazu pode me derrotar sem se colocar em perigo. Tudo o que ele precisa fazer é dar um pequeno empurrão e cairei da corda bamba sobre a qual estou andando.

As inúmeras “Sombras do Pecado” dentro de mim estão em fúria. Elas estão constantemente esperando pela minha destruição. Elas estão lambendo os lábios em antecipação pela minha queda no abismo. Elas querem destroçar meus ossos com seus dentes e me devorar assim que eu cair em suas bocas.

Droga, mesmo esse sendo meu próprio poder, que bando de cães estúpidos. Eles não entendem quem é o mestre deles. Enquanto estou massageando minhas têmporas para aliviar a dor, a falsa Rino entra em meu campo de visão. Embora supostamente devesse ser sem vida, ela está me encarando sem piscar.

De perto.

De perto.

Ela está me encarando bem de perto.

— …O que foi?

Pergunto, mesmo sabendo que ela não pode responder. Rino continua me encarando. Sem piscar. Sem dizer uma única palavra. Eu sei. Ela é um objeto. Uma artimanha criada pela “caixa”. E mesmo assim, não consigo segurar meu impulso de falar com ela.

— Você quer dizer que me odeia ou o quê?

Silêncio. Rino continua me encarando. Sem piscar. Sem dizer uma única palavra.

— É claro que sim, não é mesmo? Mesmo assim, ainda desejo do fundo do meu coração que não tivesse tentado te resgatar naquela época! Que eu não tivesse te tratado tão gentilmente! Que você tivesse se suicidado após ter sido estuprada por aqueles lixos!

Silêncio.

Rino continua me encarando. Sem piscar. Sem dizer uma única palavra.

— Sim, você me ouviu! Por que não vai se matar? Como ousa viver tão descaradamente? Não te ensinei que pessoas como você deveriam ter vergonha de viver?

Silêncio.

Rino…

Não, cada pessoa nessa sala está me encarando. Sem piscar. Sem dizer uma única palavra.

…Com olhares repreensivos.

— Pare com isso.

As palavras que acabo de ouvir por acaso foram ditas por um ator na tela.

— Pare de criar desculpas para convencer a si mesma de que ela merece sofrer!

A pessoa falando com a Rino era meu antigo eu daquela época.

 

Corta para a próxima cena.

Rino está rabiscando uma foto com uma caneta vermelha.

— Morra Kokone Kirino! Morra! Morra!

Rino deixou a foto vermelha, como se Kokone estivesse ensopada de sangue.

 

— ..._____

Por pouco, consigo evitar perder o controle. Mas, sem que eu percebesse, o “abismo” na audiência chegou mais perto.



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