Volume 5

Cena 2

60 Pés e 6 Polegadas de Distância

 

  1. CAMPO DE beisebol – DIA

A final do campeonato local de beisebol está para terminar. É a nona rodada. Dois jogadores estão fora e há jogadores na primeira e terceira bases. A contagem é 1-2: uma bola e dois strikes. O time está na liderança por 3 a 2.

Um HARUAKI USUI, uniformizado e no início da adolescência, está parado na área do arremessador. Ele limpa o suor da testa e espera pelo sinal do apanhador.

HARUAKI (Monólogo): Ele é incrível.

Ele percebe o sinal e assente.

HARUAKI (Monólogo): Continuei nesse clube de beisebol, ignorando os olhares assustadores do treinador por causa dele.

Ele assume postura de arremesso.

HARUAKI (Monólogo): Já vi vários jogadores na liga sênior que são esperados na grande liga. Alguns deles definitivamente chegarão lá. Mas nunca os considerei ameaças: para mim, ele era o melhor.

Ele respira fundo.

HARUAKI (Monólogo): Cada movimento em seu jogo é belo. Toda vez que o assisto jogando, fico impressionado. Não consigo deixar de me sentir inquieto e me perguntar se realmente não tenho as qualidades de um verdadeiro jogador.

Ele levanta a perna.

HARUAKI (Monólogo): Fiquei tão bom em beisebol que todas as escolas com times de elite estavam tentando me recrutar. A fantasia de todo jovem fã de beisebol – pisar na área de arremessador no Estádio de Koushien – não era mais um sonho, era um objetivo. Entrar na liga profissional um dia parecia algo ao meu alcance.

Ele se prepara para arremessar.

HARUAKI (Monólogo): Mas, desde que comecei a jogar beisebol nos primeiros anos do fundamental, eu estava apenas imitando ele.

Ele atira uma bola rápida.

O batedor tenta rebater e erra.

Vendo seu arremesso acertar a luva do apanhador, HARUAKI grita em alegria e aperta seu punho, triunfante.

HARUAKI (Monólogo): Então, não consigo imaginar um dia superá-lo.

O apanhador tira a máscara. Um DAIYA com um enorme sorriso em seu rosto aparece.

Sem perder tempo, ele corre em direção à área de arremessador e pula em HARUAKI, abraçando-o com força. Em questão de segundos, o resto do time se reúne ao redor deles e eles começam a comemorar.

HARUAKI: Uou, Daiyan, não se pendure em mim. Ser abraçado por um homem não é nada bom! E droga, você está todo suado!

Mesmo dizendo isso, ele está sorrindo enquanto reclama.

DAIYA: Não se preocupe: você está bem mais suado, e está fedendo pra caramba!

Daiya também está sorrindo.

HARUAKI: O-O QUÊ?! Me dê um desodorante Axe, então! Não quero ser rejeitado pela nossa adorável gerente! Estou pensando em dar para ela a bola que venceu o jogo e dizer que acertei aquele arremesso por causa dela! Ela com certeza será minha!

DAIYA: Haha, pena que ela não existe, né?

Os jogadores se alinham no campo.

HARUAKI (Monólogo): Certa vez, teve um olheiro que eu sabia que avaliava o jogo dele secretamente.

Eles se curvam.

HARUAKI (Monólogo): Eu queria estar no mesmo time que ele no ensino médio.

Os jogadores vão em direção à arquibancada.

HARUAKI (Monólogo): Mas a reação daquele olheiro foi indiferente. “Ele é bom para a idade dele, mas não tem muito potencial sobrando porque já se acostumou com seu estilo inacabado. Não sei se ele pode se tornar um jogador regular, e com certeza será difícil para ele conseguir uma recomendação em beisebol”. Foi assim que o olheiro o avaliou. Realmente, os atributos físicos do Daiya são medíocres. Ele não pode me vencer em corridas de curta distância, em força física ou em preparo físico. Mesmo assim, eu acreditava que ele tinha potencial o bastante para superar esses problemas.

Eles se curvam para os espectadores.

HARUAKI (Monólogo): O observador podia até estar errado. Mas eu sabia que, objetivamente falando, Daiya não era um jogador de beisebol tão bom. Ah... talvez eu soubesse desde o princípio. Talvez não fosse seu estilo de jogo que me impressionava. Talvez eu já tenha superado o Daiya em termos de potencial e habilidade no beisebol. Mas a hierarquia que eu estabeleci em meu coração jamais mudará, mesmo que eu me torne um craque da liga profissional.

KOKONE está na arquibancada. Ela está comemorando com os olhos levemente umedecidos. Seu olhar está fixado em DAIYA.

DAIYA retribui com um sorriso torto, porém gentil.

HARUAKI (Monólogo): Daiya ainda é o personagem principal.

Enquanto ele os observa olharem profundamente nos olhos um do outro, HARUAKI também abre seu próprio sorriso brilhante.

HARUAKI (Monólogo): Foi por isso que desisti do meu primeiro amor.

 

Daiya Oomine - 11/09 SEX 18h00min

“A exibição de Close-Up e Adeus terminou”.

O filme termina sem nenhum crédito. Imediatamente me encontro em frente ao painel de informação digital. Fui transportado novamente. Em pé em frente à entrada vazia, abro um sorriso nervoso.

 

Vou te esmagar.

Entendo. Ele está tão impiedoso quanto suas palavras sugeriram. Kazu está colocando o dedo nas minhas cicatrizes do passado. Ele está jogando sal nessas feridas abertas e as aprofundando para acabar com o meu “desejo”. Merda, ele está ficando cruel.

— Humm.

Espere. Kazu está me atacando por conta própria. Por que estou aceitando tudo o que ele atira em mim de peito aberto? Esses filmes são fiéis à realidade para começo de conversa? Claro, a forma como aquele incidente ocorreu no filme é consistente com o que me lembro. Mas, como foi mostrado pela perspectiva da Rino, há detalhes que não posso confirmar. Essas partes podem ser inventadas. Não tenho como saber se o tormento emocional da Rino foi retratado corretamente, também. Apenas a própria Rino saberia.

 

— Parece que você levou um golpe e tanto, não é mesmo?

Sou pego de surpresa pela voz de alguém e ergo minha cabeça.

— Quem é você?

Uma garota com cabelos compridos que não conheço está diante de mim. Ela está vestindo um uniforme limpo, como uma recepcionista de loja de departamento. Ela tem um xale ao redor do pescoço e parece ser mais ou menos da minha idade.

— É um prazer conhecê-lo. Meu nome é “A” e sou a guia desse cinema.

“A” tem um ar de dignidade ao seu redor que não combina com sua idade. Justiça seja feita, “dignidade” não dá a impressão certa, porque a acho extremamente desagradável. Se ela fosse matar alguém, ela apenas sorriria com indiferença e não daria à mínima, pois ela está tão acima disso tudo — isso é o que a dignidade convencida dela me passa. Além disso, ela é terrivelmente bela… mais até do que Maria Otonashi, que já impressiona a todos com sua beleza.

— “A”? Isso é tão estúpido. Quem é você? Por que você está aqui?

— Sou uma personalidade artificial que pertence a essa “caixa”, a “Wish-Crushing Cinema¹”. Não existo realmente.

Resumindo, ela é o que o Noitan era para o “Game of Idleness”? Entre essa garota e Noitan, me pergunto, existe uma regra que diz que todos os guias têm que ter uma personalidade de merda?

— Uma personalidade artificial, hein? Então, isso quer dizer que você será gentil o bastante para me dar uma explicação sobre essa “caixa”?

— Certamente.

— Vamos acabar com isso logo: qual é a função dessa “caixa”?

— Ela tem apenas um propósito: destruir sua “caixa”. A programação de filmes… “Close-Up e Adeus”, “60 Pés e 6 Polegadas de Distância”, “Repetir, Recomeçar, Recomeçar” e “Piercings aos Quinze”… todos tem o propósito de fazê-lo abandonar sua “caixa”, Sr. Oomine.

Mesmo que eu esperasse uma resposta dessa, não consigo conter uma leve irritação ao ser respondido tão cruamente. Não tem como ficar feliz ao saber que essa tortura continuará.

— Além disso, você deve estar se perguntando se “Close-Up e Adeus” é uma retratação fiel do passado. Respondendo sua pergunta: não, não é.

— O quê?

Por que ela me diria isso? Mesmo que ela esteja dizendo a verdade, ao me contar isso, meu estresse emocional cai imediatamente. Isso é totalmente inconsistente com o propósito desta “caixa”.

— Você parece confuso, Sr. Oomine, mas deixe-me assegurá-lo que esse fato não lhe trará nenhum conforto. “Close-Up e Adeus” é um filme feito de acordo com as memórias de Miyuki Karino. Minha resposta está tecnicamente correta já que a memória humana pode ser distorcida e imprecisa em algumas situações.

Entendo. Se esse filme é fiel às memórias dela, isso quer dizer que a Rino definitivamente ainda sente ressentimento contra mim. Há, isso é tão sem graça que chega a ser engraçado.

— Primeiro de tudo, por que devo acreditar no que você me diz?

— Sou obrigada a falar somente a verdade.

— Você pode provar isso?

— Seria extremamente difícil provar isso. Sinto muito, mas posso apenas pedir que acredite em mim. Eu realmente sinto muito.

… Óbvio. E admito que foi uma pergunta boba. Mas não importa o quão elegante seja sua forma de falar, não importa o quanto ela se desculpe, não sinto o menor senso de humildade de “A”. Ao contrário, sua atitude refinada parece quase como uma provocação. Por que Kazu fez uma garota tão detestável de guia? Por acaso ele tem um fetiche por esse tipo de garota? Pensando nisso, Otonashi não é tão diferente… dito isso, ele claramente exagerou aqui.

… Hmm, ah, então é isso.

— Eu percebi algo.

— E o que seria?

Você é “O”, não é mesmo?

“A” não respondeu.

— Noitan, o mascote de Kingdom Royale, era um reflexo da personalidade distorcida da personalidade de Kamiuchi. Mas veja a personalidade do Kazu. É pouco provável que ele fosse criar um personagem tão desagradável quanto você. Então, por que você está aqui? Há duas possibilidades. Primeira, esta não é a “caixa” de Kazuki Hoshino. Segunda, você entrou nesta “caixa”.

Ao ouvir minha explicação, a atmosfera ao redor de “A” muda completamente. Seu sorriso é bem familiar.

— Realmente, estou impressionado.

Esse sorriso é inconfundível. A pessoa diante de mim é “O”.

— Não esperava que você fosse descobrir minha identidade tão rapidamente. Estava planejando bancar o guia por mais algum tempo.

— Por que você está fazendo isso?

— Esta “caixa” é poderosa demais para você superar. Eu temia que você não tivesse nenhuma chance de vencer, então decidi lhe providenciar algumas informações adicionais.

— Por que você se importa com minha derrota? Você não está do lado do Kazu?

— Não me importo se você for derrotado, mas não quero que você seja derrotado instantaneamente. Você esquece que meu objetivo é observar o Kazuki-kun. Agora que finalmente comecei a entender a verdadeira natureza dele, estou ansioso para conseguir o máximo de informação que puder! Portanto, não quero que o Kazuki-kun tenha uma vitória fácil, entende?

— Mas e se eu derrotá-lo porque você me ajudou demais?

— Mesmo que eu prefira evitar esse resultado, não me importo realmente.

Ele parece estar sendo honesto. Pensando nisso, durante o “Game of Idleness”, “O” disse “Kazuki-kun não confia em mim, infelizmente”. Se “O” realmente não se importa com a minha vitória, Kazu estava certo em tomar essa atitude. Dito isso, “O” definitivamente tem uma preferência pelo Kazu. “O” só pode dizer esse tipo de coisa porque ele está certo que não tenho como vencer.

— Se quer realmente aproveitar isso, me dê alguma informação que seja realmente útil! Tudo o que você me disse é que eu perco se não conseguir fugir antes que os filmes terminem à meia-noite.

— Realmente. Mas não acho que alguém que percebeu meu disfarce em um instante precisaria de qualquer outra informação.

Ele realmente me superestima, hein. Mas essa declaração por si só é uma dica. Ele essencialmente está dizendo que já tenho as informações que preciso para derrotar a “Wish-Crushing Cinema”.

— Muito bem, já que você me descobriu, acho que vou me retirar, por hora.

— Fique à vontade, eu acho… Ah, certo, tem mais uma coisa que quero te perguntar antes que vá: quem é essa garota desagradável que você está imitando? Uma personagem em um dos próximos filmes ou algo do tipo?

— Não, ela não tem qualquer relação com você. Duvido que ela vá aparecer em qualquer um dos filmes. Mas é claro, tenho uma razão para escolher essa aparência.

Com essas palavras enigmáticas, “O” se vira e começa a caminhar. O som de seus passos desaparece gradualmente. Estou sozinho novamente.

Olho para o relógio. São 18h15min. Quinze minutos para que o próximo filme, “60 Pés e 6 Polegadas de Distância”, comece. O total de tempo restante são cinco horas e quarenta e cinco minutos.

A visita de “O” não mudou minha situação. Minhas mãos estão atadas, e continuo a ser atacado pelo Kazu. Tenho uma arma, a “Shadow of Sin and Punishment”, mas é inútil enquanto estou preso aqui. Não tenho como revidar.

…Não, espere. Realmente não tenho como revidar?

Olho para a minha sombra. A “Shadow of Sin and Punishment” ainda está ativa. É possível usar uma “caixa” dentro de outra. O fato de que Maria Otonashi certa vez entrou na “caixa” de outra pessoa e continuou sendo uma “portadora” prova isso. Ainda sou um “portador” e um [mestre].

Mas em quem devo usá-la? Estou sozinho aqui. Não há ninguém aqui para usar a “Shadow of Sin and Punishment”.

— …ninguém aqui?

Então, onde posso encontrar alguém?

Isso é óbvio. Fora dessa “caixa” possuo 998 [servos] que podem se tornar meus braços e pernas.

— …Hmm.

Hora de uma sessão de planejamento.

Como posso derrotar Kazuki Hoshino? Posso sair daqui se destruir esta “caixa”. O método mais simples é [controlar] meus [servos] e fazê-los matarem o Kazu. Mas isso não é uma vitória verdadeira. Por mais que eu queira derrotá-lo, não quero matá-lo. Quero que as pessoas se tornem mais éticas, então não posso cometer assassinatos, muito menos forçar outros a cometerem. Esse problema não tem nada a ver com a minha determinação.

Provavelmente acabaria devastado emocionalmente se o matasse. Seria devorado pelas 998 sombras do pecado dentro de mim e sofreria um colapso mental. Se acabar sendo impossível impedir que a “Wish-Crushing Cinema” destrua minha “caixa” de outra maneira, terei que considerar matá-lo, mas esse é absolutamente meu último recurso.

Tenho que convencer Kazu a abandonar sua “caixa” de livre e espontânea vontade. Ele está atacando meu ponto fraco, meu passado. Tenho que revidar atacando o ponto fraco dele também.

O ponto fraco do Kazu…

— … Ah.

Obviamente é Maria Otonashi.

 

 

Como se quisesse me negar tempo para pensar, a “Wish-Crushing Cinema” novamente me transporta para uma das salas. O próximo filme, “60 Pés e 6 Polegadas de Distância” será pura tortura. Bom, não será tão ruim desta vez. Afinal de contas, chamei uma convidada, e sofrimentos compartilhados são sofrimentos poupados.

— Não concorda, Yuuri Yanagi?

Yuuri Yanagi está sentada atrás de mim, a minha direita. Sua face está pálida, e ela está ocupada demais olhando ao redor em confusão para responder minha súbita e irrespondível pergunta.

Tentei invocá-la aqui para testar minha teoria: como Maria Otonashi fez com a “Rejecting Classroom”, é possível para um “portador” interferir com a “caixa” de outros e entrar nelas. Claro, é impossível sair, então é uma viagem só de ida.

— Eh? Eh? Isso é uma poltrona de cinema? Como eu vim parar aqui de repente, da entrada?! Por que estou sentada?!

Não é de se estranhar que ela esteja assustada. Acostumei-me com esses tele transportes a essa altura, mas essa foi a primeira vez dela. É um incômodo dar uma explicação para ela, então a deixarei em sua ignorância.

— Mesmo que você esteja aqui, o cinema ainda está exibindo somente o meu passado, hum. Então realmente é uma “caixa” cujo único propósito é me destruir?

Algo parece errado… mas não consigo dizer exatamente o que é.

— Está…me ignorando…? …Uou! Quem são essas pessoas?! É como se as almas deles tivessem sido sugadas! Que medo!

Quieta, estou pensando.

— Calada, vadia.

— Va-vadia?! Isso é muito rude! Além disso, sou a inocência encarnada!

— Você deve estar bem, se ainda pode fazer piadas.

— Eh? Isso não era para ser… uma piada… o… o quê? Po-poderia ser que sou a única que acha que pareço uma garota pura e inocente…? Mas tenho longos cabelos pretos… Espere, isso não importa agora! Me dê uma explicação, por favor! Hum, o garoto sentado ao seu lado é o amigo do Kazuki-san, certo?

— …Sim.

Uma concha na forma de Haruaki Usui, que parece ser o próximo protagonista, está sentada ao meu lado.

— Não estou com vontade de te explicar nada, então apenas lembre-se de uma coisa: não faça qualquer comentário sobre esse filme. Durante, antes, depois. Nunca!

Yanagi inclina a cabeça. Claro que não vou explicar.

Chamei Yanagi, uma das minhas [servas], para a “Wish-Crushing Cinema”. Fazendo isso, confirmei várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, ainda posso usar a “Shadow of Sin and Punishment” sem quaisquer restrições. Segundo, mesmo pessoas como a Yanagi, que não são “portadores” convencionais e apenas compartilham a “Shadow of Sin and Punishment”, podem entrar na “caixa” dos outros. Terceiro, o tempo dentro e fora da “caixa” passa igualmente.

Mas minha razão principal para chamá-la é outra.

— Yanagi. O que Kazu e Otonashi estão fazendo?

Quero ter uma ideia da situação atual do Kazu e da Otonashi.

As pessoas que compartilham a “Shadow of Sin and Punishment” não podem usar suas ligações invisíveis para se comunicar diretamente entre elas, embora possam usá-las para transmitir sentimentos vagos. Ainda posso usar minha “caixa”, mas sou incapaz de dar ordens efetivas sem saber o que está acontecendo lá fora.

Por isso, dei a seguinte ordem para os meus [servos]:

— Descubram o que Kazu e Otonashi estão fazendo.

Como é impossível conseguir informações detalhadas mentalmente, sou forçado a perguntar alguém diretamente. É por isso que Yanagi está aqui agora… ela é uma mensageira.

— …Preciso te dizer?

— Parece que você ainda não entendeu sua posição.

Usando minha “caixa”, estimulo os sentimentos de culpa dela.

— Uh, ah! Hmmmm! …hmm…

Eu só queria dar um leve empurrão, mas ela resmunga amargamente e me encara com olhos a ponto de derramarem lágrimas, me implorando para parar. Assim como Shindou, ela cometeu o pecado de assassinato durante o “Game of Idleness”. É natural que ela não consiga escapar da culpa do grave pecado de trair o Kazu, é por isso que ela está sofrendo tanto.

— A-acima de tudo, Kazuki-san parece estar querendo evitar que a Otonashi-san se envolva. Por isso, ele está agindo em segredo.

— Eu sabia… mas por que a Otonashi está aceitando isso? Não acho que ela obedeceria ao Kazu quando há uma “caixa” bem em baixo do nariz dela.

— Não sei nada sobre isso…

— Putas como você são boas em convencerem os outros a fazerem o que você quer, certo? Então, apenas como referência: o que você faria para impedir a Otonashi de agir?

— Vo-você não está sendo um pouco cruel?!… Bom, de qualquer forma, hm, não acho que ele conseguiria convencê-la falando a verdade, então deve estar mentindo para ela. Por exemplo, ele pode fazê-la acreditar que pensou em um bom plano e dizer que eles vão colocá-lo em ação outra hora.

— Otonashi realmente aceitaria uma história tão boba?

— Acho que ela acreditaria em qualquer coisa que ele dissesse porque ela confia cegamente no Kazuki-san.

— Entendo.

Certamente, Otonashi tentaria acreditar no Kazu, não importa o quão descaradas sejam suas mentiras. O que significa que é surpreendentemente simples para o Kazu enganá-la.

— Nada mal, Yanagi. Preciso admitir, costumava pensar que você era uma manipuladora profissional, mas você é a Rainha das Mentiras.

— Hm, isso não é um elogio, certo? Na verdade você está me insultando, não é mesmo?

— É claro.

— Oomine-san, você parece gostar de me insultar. Poderia ser que você tem uma queda por mim?

— Hein? Não me venha com essa, vadia. Você parece um maldito fóssil.

— Fó-fóssil…? Agora sim, esse é um insulto original… não faço ideia de como reagir…

Yanagi se encosta no assento e bagunça seus longos e lisos cabelos pretos, quê, combinados com sua pele pálida, normalmente a fazem lembrar uma espécie de espectro. Ela pergunta:

— E agora?

É claro que a ignoro.

— Mas descobri algo graças a você.

— Eh? Você encontrou alguma pista na minha testa?

— E ela diz “morra”.

— Eh… que insensível…

— Descobri que Kazu está definitivamente tirando vantagem da confiança entre eles.

A confiança entre Maria Otonashi e Kazuki Hoshino é vazia, e Kazu está escondendo isso dela. Pior, ele está abusando da confiança dela.

— Agora sei como trazer a Otonashi até aqui.

Encontrar uma solução tão simples me fez sorrir.

— Só preciso mostrar a verdade a ela.

Só preciso fazê-la perceber que os objetivos dos dois não são mais os mesmos. Assim que ela descobrir a traição dele, eles estão acabados. Kazu será derrotado, e a vitória será minha.

Uma imagem aparece na tela e, logo em seguida, é substituída por uma cena mostrando Haruaki durante o ensino fundamental. Ele está usando um uniforme familiar…

 

Kazuki Hoshino - 11/09 SEX 17h48min

O cheiro de menta. Sempre que sinto essa fragrância, assumo que estou no quarto da Maria.

Deitado na cama, ergo minha cabeça para checar o horário. O primeiro filme, “CloseUp e Adeus” está para terminar. Minha vitória está praticamente garantida agora. Daiya está confinado na “Wish-Crushing Cinema”. No momento em que os filmes terminarem, Daiya terá que abandonar sua “caixa”. Tudo o que preciso fazer é esperar.

É claro, ainda não vou baixar minha guarda, meu oponente é o Daiya, afinal de contas. Ele é capaz de usar sua “caixa” dentro da “Wish-Crushing Cinema”. Eu já descobri que ele pode controlar as pessoas, então ele pode usá-las para nos atacar.

 

Maria me chama:

— Kazuki, me ajude a preparar o jantar.

Verifico duas vezes a minha expressão. Não posso deixá-la notar o que estou fazendo pelas costas dela. Relaxe, Kazuki.

— Certo, estou indo.

Levanto e vou para a cozinha. Ao me ver, Maria dá um sorriso torto.

— Caramba, olhe para essa cara de bobo.

— … Eh?

— Você devia saber que estamos sob pressão agora que o Oomine voltou como um “portador”, certo? Como você pode continuar tão relaxado?

— Desculpe.

Graças a deus. Maria não acha que estou diferente do meu normal. Ela não viu através da minha expressão falsa. Nós fizemos hambúrgueres e os colocamos em dois pratos simples. Maria não costumava se interessar em cozinhar, mas ela realmente está pondo algum esforço nisso ultimamente. Já não é mais estranho vê-la de avental.

— Kazuki — ela diz enquanto pego os pratos. — Mais um tomate-cereja para você.

Ela sorri maliciosamente e segura um tomate-cereja na frente do meu rosto, ignorando minhas mãos ocupadas.

— Hu-ummm…?

— Coma.

Assim…? Segurando os pratos, inclino minha cabeça para frente e pego o tomate como uma galinha. Os dedos dela quase acabam dentro da minha boca, mas não parece se incomodar. Ela arranca a folha do tomate com os dedos e continua falando, enquanto me assiste mastigando.

— Bobo.

— Não é maldade dizer isso quando foi você quem me fez fazer aquilo?

— Você é bobo porque você faz qualquer coisa que eu te mande sem questionar.

Ainda sorrindo, ela se vira para terminar nosso jantar. Deixo a cozinha e coloco os pratos na mesa.

— … Ah.

Sim, eu sei: esses momentos tranquilos só são possíveis porque estou enganando a Maria. Tirando vantagem da confiança cega que ela tem em mim, estou a enganando e traindo.

Mas não tenho outra escolha. Quero ficar com ela para sempre. Contudo, Maria não compartilha do meu desejo. Não… ela acha que é egoísta da parte dela desejar isso.

Querendo realizar os “desejos” dos outros e até mesmo chamando a si mesma de “caixa”, Maria coloca os outros acima de si mesma. Não, estou colocando isso de uma maneira muito simples. Ela está tentando fazer com que os outros sejam felizes, devotando-se para eles tão completamente que chega a ser autonegação. Restringindo seus próprios desejos, ela está tentando abandonar “Maria Otonashi” para se tornar “Aya Otonashi” — um ser que existe somente para o propósito de garantir desejos alheios.

Não vou deixar isso acontecer. Matarei a “Aya Otonashi” que se esconde dentro da Maria. Mas ainda não posso deixá-la saber de meus planos. Se isso acontecer, ela definitivamente desaparecerá. Então, preciso enganá-la até o último momento possível. Mas…

Quando será isso? Por mais quanto tempo precisarei mentir para ela?

— Kazuki. — Maria diz, me assustando… por um segundo, achei que ela tinha me flagrado em minha própria rede de mentiras. — Os pratos de arroz estão prontos. Você pode levá-los à mesa?

— Ce-certo.

— … Hã? Algo de errado?

— Ah, não… não se preocupe.

Não acho que sou bom em esconder as coisas. Não vou conseguir esconder o fato de que mudei para sempre. Na verdade, o fim está próximo.

— Então traga esse traseiro até aqui e pegue os pratos de arroz.

— Certo, estou in…

Meu celular toca. O abro imediatamente. Olho para a mensagem na tela. É um e-mail de Haruaki.

“Yuuri Yanagi começou a agir”.

Não há um emoticon ou nada do tipo em sua mensagem objetiva. Ele provavelmente enviou com pressa. Yuuri-san… uma das pessoas que Daiya controla; uma capanga dele, assim dizendo. E esse capanga começou a agir.

— Si-sinto muito, Maria! Tenho alguns assuntos urgentes para resolver!

— …Hã? Do que está falando? É tão urgente que você não pode nem sequer jantar comigo?

— Eu sinto muito!

Sem perder um segundo, corro para fora do apartamento. Atrás de mim, ouço Maria me dizendo para parar, mas não posso fazer isso. Rapidamente pulo no elevador e fecho a porta imediatamente para ela não me alcançar.

Acho que ela vai suspeitar de algo. Ela pode ligar meus assuntos urgentes com as “caixas”. Contudo, disse a ela que nós derrotaríamos o Daiya amanhã.

E Maria confia em mim.

—… Aah.

Resistindo às ondas de remorso, ligo para o Haruaki.

 

 

Saio para me encontrar com o Haruaki.

Correndo pelas ruas escuras, uma antiga conversa que tive com o Haruaki passa pela minha cabeça.

 

— ...Eu tinha uma queda pela Kiri.

Haruaki me disse isso um dia depois do Daiya ter voltado para a escola. Eu tinha acabado de explicar a ele sobre as “caixas”. Ao decidir enfrentar o Daiya, também decidi que Haruaki precisava estar no confronto. Estava começando a anoitecer, bem na hora em que as crianças voltavam para casa depois de um dia inteiro de brincadeiras.

Estávamos em um parque, e Haruaki estava sentando em um balanço que soltava rangidos incrivelmente altos. Quando terminei de explicar, ele ficou em silêncio por algum tempo, se balançando para frente e para trás. Por alguns momentos, tudo o que podia ouvir eram os rangidos do balanço.

Seus movimentos violentos quase o fizeram dar uma volta completa. Me senti mal por envolver o Haruaki, mas foi uma decisão que fiz após considerar todas as minhas opções. Eu não tinha arrependimentos. Ou pelo menos foi o que eu disse para mim mesmo. Foi então que ele me contou:

— Eu tinha uma queda pela Kiri.

Ele confessou que já amou a Kokone, do nada e sem qualquer contexto. Era alguma tentativa de revidar a minha história?

— Eh…?

Fiquei confuso no início, mas fazia sentido.

Haruaki recusou todas as ofertas que recebeu de escolas de beisebol renomadas para vir para a nossa escola, mesmo que nosso programa de beisebol inferior mal o permita tentar o campeonato nacional. Ele sacrificou sua futura carreira de jogador de beisebol profissional.

Eu sabia disso porque a Maria descobriu durante aquele mundo que se repetia, e depois me contou sobre. Sempre me perguntei o porquê dele ter feito isso. E agora eu sei.

Haruaki escolheu ir para a mesma escola que Daiya e Kokone, mesmo que tivesse que abrir mão de seus sonhos e expectativas. Não sei se ele queria declarar seu amor eventualmente ou se tinha outro objetivo, mas ele achou necessário.

O balanço parou, e Haruaki ficou em pé nele. Ele continuou:

— Ah, mas você sabe? Não sinto mais a mesma coisa por ela. Hmm, como devo colocar? Ela costumava ser terrivelmente insegura e frágil, e parecia precisar de alguém para protegê-la. Eu queria ser essa pessoa, entende!

Ele começou a se balançar gentilmente para evitar o rangido.

— Mas você não pode proteger alguém com uma determinação tão meia-boca. Caramba, você consegue acreditar no quão presunçoso eu era?

Seu tom de voz era calmo, mas tenho certeza de que ele teve que passar por muita coisa antes de chegar a essa conclusão.

— Então você realmente não está mais apaixonado por ela?

— Não. Então não se preocupe comigo se quiser sair com a Kiri, Hoshii! Vocês formariam um belo casal.

Não sei se ele estava sendo honesto.

Tudo o que sei é que ele não é apegado a nenhuma garota em particular. Ele nunca disse nada, mas tenho certeza que ele é popular entre as garotas — especialmente de outras escolas — por ser um ás do beisebol. Ele já recebeu confissões de várias garotas, e até já saiu com algumas. Contudo, a maioria desses relacionamentos terminou rapidamente. Ele já não aceita mais confissões.

Só posso imaginar como ele se sentiu enquanto saía com elas, como eles terminavam, ou por que ele parou de aceitar confissões. Mas tenho certeza que a Kokone e o Daiya tiveram um papel nisso.

— E o Daiya?

— Hm?

— Você não acha que o Daiya e a Kokone deveriam sair?

Haruaki não respondeu imediatamente. Ele parou de balançar e esperou o balanço parar completamente. Quando toda a força do balanço havia acabado, Haruaki pulou dele com um Ho!, pousou e disse claramente:

— Não.

— Por que não? Eles não são…

— Diferente de mim, Daiya pode alcançar uma determinação que não é meia-boca.

Ele provavelmente leu na minha expressão “do que diabos você está falando” e continuou com um sorriso torto:

— Por causa disso, eles não podem ser felizes juntos.

Não entendi imediatamente.

— Aquilo não é amor! A relação deles simplesmente não é saudável.

Naquele dia, eu não tinha conhecimento sobre as experiências que eles tiveram na infância, então aquelas palavras me deixaram confuso. Mas eu conhecia alguém parecido com o Daiya.

Alguém que sacrificaria sua própria felicidade pelo bem dos outros! Então instintivamente entendi que a relação dos dois era complicada e já havia terminado.

— Então por que você desistiu da Kokone? Se você acha que o Daiya está fora de cena, por que se segurar?

— Você está completamente fora de foco. Não estou me segurando! Você não ouviu? Não há mais necessidade de protegê-la! Meus sentimentos já mudaram!

— …Kokone se tornou forte o bastante para se proteger?

— Não foi isso que eu disse.

— Hein?

— Ela continua sendo tão fraca quanto era! Afinal de contas, as pessoas não podem mudar tão facilmente. Mas não há mais necessidade de protegê-la. Porque…

Naquele momento, Haruaki fez uma expressão que eu nunca tinha visto antes em seu rosto. Não era raiva, ódio ou pena. Com um sorriso que me dava arrepios, ele disse:

 

— Kiri está quebrada.

 

Depois daquilo, eu percebi que sentimento estava enterrado por trás daquele sorriso. Era…

Resignação.

 

 

Haruaki estava esperando por mim no mesmo parque. Não é mais do que dois ou três minutos a pé do apartamento da Maria. Dessa vez, já estava escuro. Haruaki e Yuuri-san estão sentados em um banco iluminado pela lâmpada de um poste.

— Kazuki-san…

Yuuri-san me encara com os olhos cheios de lágrimas. Ainda sinto pena dela, mas não me sinto mais incomodado em ver suas lágrimas. Afinal, tenho tido que aguentar ela chorando constantemente já há algum tempo. Já estou completamente acostumado com seus canais lacrimais quebrados.

Yuuri-san está sentada no banco comportadamente de sua própria vontade. Haruaki me disse pelo telefone que quando ele se aproximou dela, ela escolheu ouvi-lo.

— Haruaki, só para confirmar: o que ela estava fazendo?

— Bem, como te disse, ela estava rondando perto do apartamento da Maria-chan. Ela não resistiu ou perdeu o controle, e até mesmo me explicou a situação em que está! Aparentemente, ela foi [controlada] pelo Daiyan para espiar você e a Maria e descobrir o que estão fazendo.

— Hmm.

Eu já esperava por isso. Eu sabia que Daiya usaria as pessoas que ele pode [controlar] para nos espiar, já que não pode deixar o cinema. Dito isso…

— Yuuri-san. Está mesmo tudo bem em nos dizer o que o Daiya te ordenou a fazer?

Afinal de contas, nos contar isso pode atrapalhar o Daiya.

— Sim, está. Não posso dizer com certeza, mas acho que a “caixa” dele não é poderosa o bastante para me dominar completamente.

Meu coração se aperta quando ouço a palavra “caixa” vindo da boca dela. Apesar de ela ter tido sorte o bastante para se esquecer sobre as “caixas”, agora ela está sendo forçada a se lembrar. E quanto mais vívidas forem as memórias, mais ela se culpará. Mas agora não é hora de ter pena da Yuuri-san. Por hora, preciso arrancar todas as informações que conseguir dela.

— Yuuri-san, você poderia nos dar detalhes sobre o que você sabe?

— Sim… Ah, por favor, lembre-se de que não posso esconder nada do Oomine-san. Se ele me [ordenar] a falar, tenho que obedecer. Então tenha cuidado sobre o que diz para mim.

— Certo, eu entendo.

Mas tudo bem para ela me dizer até isso? Acho que ela não se tornou aliada do Daiya só porque ele usou sua “caixa” nela.

— Você foi [controlada] pelo Daiya para espiar a mim e a Maria, correto?

— Certo. Nós fomos [ordenados] a descobrir o que você fez com ele e o que fará a seguir. Além disso, ele [ordenou] àqueles que descobrirem algo para entrarem na “caixa” em que ele está aprisionado.

— Daiya te disse para entrar na “Wish-Crushing Cinema”?

Isso quer dizer que os [servos] não podem passar informações diretamente para ele?

— Como você sente essas [ordens], Yuuri-san? Pelo que posso ver, sua mente parece perfeitamente clara, e não parece que você sofreu uma lavagem cerebral.

— Sim, não é algo como lavagem cerebral. Provavelmente, sou apenas forçada a obedecer as [ordens] dele.

— Quão poderosas elas são? E o que acontece se você rejeitar uma?

— …Não sei o que aconteceria exatamente se eu ignorasse uma das [ordens] dele. Talvez não tenha penalidade alguma, mas como princípio, não posso desafiá-lo.

— É absolutamente impossível resistir às ordens dele?

— Sim. E isso provavelmente se aplica a todos os [servos]. Meio que sinto como se minha… alma estivesse sendo mantida como refém. Pensar em desobedecê-lo me faz sentir como se estivesse abrindo mão da minha própria vida.

— Entendo… por que você não resistiu ao Haruaki quando ele se aproximou de você? Isso não significa que você desobedeceu ao Daiya? Como você foi capaz de fazer isso? Com uma expressão incomodada, Yuuri-san olha para o chão.

— Se Haruaki-san não fosse um amigo seu, eu poderia ter tentado escapar.

— O que você quer dizer?

— Minha [ordem] foi espiar você e a Otonashi-san, então, ser pega por um de seus amigos e esperar você vir aqui está de acordo com minhas instruções.

Então, basicamente…

— Você está falando comigo por causa de sua [ordem]?

Certamente é verdade que ela pode tirar informações de mim dessa maneira. Yuuri-san assente levemente, com um ar de arrependimento.

— Mas, por favor, acredite em mim: como você deve ter percebido, nós não somos desprovidos de vontade própria. Nós meramente recebemos instruções que nós temos que seguir. Portanto, eu ainda sou a sua Yuuri — ela diz, pegando minha mão e olhando nos meus olhos. — Ainda estou do seu lado.

Senti o calor das mãos dela, o que naturalmente me fez corar…Sim, realmente. Yuuri-san sempre me deixa envergonhado, e nunca consigo dizer se ela está fazendo isso deliberadamente ou não.

— Uma coisa está me incomodando um pouco — Haruaki diz, quebrando seu silêncio.

— Você não é a única espiando o Hoshii… tem outras pessoas se movendo também, certo?

Yuuri-san esteve dizendo “nós”. Para conseguir informações, mover uma única pessoa não seria o ideal. Se possível, Daiya [ordenaria] várias pessoas ao mesmo tempo.

Yuuri-san aperta mais a minha mão e responde.

— Sim. Acho que a [ordem] foi para todos os [servos].

— Para… todos?

— Sim, para todos.

…O que isso significa para mim? Quero dizer, há um grande número de [servos] apenas em nossa escola.

E todos eles estão atrás de nós…?!

— …Quantos [servos] existem?

— …Quase mil.

— Mil…

Fiquei sem palavras. Imaginei-me sendo cercado por mil pessoas nesse parque, encurralado e forçado a dizer tudo. Confessar tudo. O vídeo no YouTube das pessoas se ajoelhando diante do Daiya, se submetendo a ele, cruzou a minha mente.

Havia apenas umas dez pessoas envolvidas naquela vez. Independente disso, aquela imagem teve impacto o bastante para ir parar na TV. Ele causou uma impressão tão forte que após vê-la, minha irmã Luu-chan chegou a se perguntar se pessoas são como ele que revolucionam o mundo. Devem ter tido outros com pensamentos similares após verem o vídeo.

Provavelmente, Daiya meramente deu a [ordem] para “se ajoelharem diante dele com lágrimas nos olhos”. Ele causou um grande impacto apenas fazendo isso. Mas Daiya é capaz de forçar mil pessoas a fazerem o mesmo.

Certa vez vi uma reportagem na TV sobre psicologia de grupo que lidava com a seguinte questão: quantos estranhos em uma rua movimentada tem que olhar para o céu antes que outros pedestres comecem a olhar, mesmo que não tenha nada para ser visto?

A resposta é três. Se tiverem três pessoas olhando para o céu, você suspeita que há algo lá e é tentado a olhar para cima também. Então, alguém vê você e as três pessoas originais olhando para o alto e também olha. Através desse efeito dominó, um grande número de pessoas acaba olhando para o céu sem razão alguma.

Meros três indivíduos podem causar esse poderoso impacto. Agora, e se mil pessoas agissem unidas? Por exemplo, se mil pessoas fossem ao mesmo restaurante, você poderia facilmente criar uma tendência. Se você encontrar um blog que te irrite, você poderia facilmente aterrorizar o escritor psicologicamente fazendo-os o atacarem pela web. Não… essas ideias ainda são muito triviais. Você não precisa de mil pessoas para executá-las.

Mil pessoas seriam capazes de usar um poder que vai além da minha imaginação. Além disso, esse número não é o máximo que o Daiya pode [controlar], então ele pode aumentar seu poder ainda mais.

Ugh, estou começando a perceber o quão poderosa a “caixa” dele é. Sem exagero, a “caixa” do Daiya tem o poder para mudar o mundo.

 

E nesse momento…

…Ele está usando esse poder apenas para me derrotar.

 

Antes que eu perceba, meus dedos começam a tremer.

— …Yuuri-san? Quão específica foi aquela [ordem]? Pelo que entendi, o Daiya não te deu instruções detalhadas, certo? — Pergunto, tentando controlar minha perturbação.

— Sim, não houve instruções especificas, então podemos escolher como seguir suas [ordens]. Além disso, não vamos fazer nada que vá contra nossos valores morais. Estamos todos fazendo o melhor para executar a [ordem] de uma forma aceitável. Não sei em que apartamento a Otonashi-san vive, mas sei que é naquele prédio, foi por isso que vim até aqui.

— …Hmm.

Penso sobre o que a Yuuri-san acabou de me dar.

— Então, por exemplo, se você soubesse em que quarto ela está, você não seria capaz de invadir quebrando as janelas porque acredita que é errado agir dessa forma?

— Exato.

Então o poder das [ordens] é surpreendentemente restrito? Parei e chacoalhei a cabeça antes de começar a relaxar. Não posso me sentir aliviado: Yuuri-san pode não ser capaz de invadir, mas podem ter outros que são.

…Afinal de contas, existem pessoas que casualmente quebrariam uma janela sem precisar de uma [ordem]… tipo a Maria… ou a Maria… ou a Maria.

— Certo, Yuuri-san, agora entendo porque você está nesse parque. Além disso, deixe-me confirmar uma coisa: você disse que foi capaz de vir até aqui porque sabe em que prédio a Maria vive, certo? Isso quer dizer que os outros não podem chegar aqui porque não sabem onde ela mora?

— Sim. Eles não podem chegar aqui.

— …Você não pode compartilhar informações com os [servos]?

— Não… sinto como se estivéssemos conectados em algum lugar no fundo de nossas mentes… mas nossos pensamentos realmente não estão conectados. Portanto, meu conhecimento sobre a localização da Otonashi-san não é passado a eles.

— Mas pessoal — Haruaki subitamente nos interrompe com os olhos franzidos. — Por que vocês precisariam de qualquer habilidade especial para compartilhar informações? Quero dizer, vocês não poderiam simplesmente usar o celular?

 

Os olhos da Yuuri-san se arregalaram diante dessa pergunta.

— Vo-você está certo. Por que não percebi isso? …Oh não… eu posso fazer isso, na verdade… — seu rosto fica pálido e ela começa a gaguejar. — Agora que você me deu essa ideia, eu preciso fazer.

Ela pega seu celular.

— Eh?

Yuuri-san? O que você está fazendo? Ela está tentando entrar em contato com…? Mas ela não acabou de dizer que está do meu lado? Mas, independente disso, Yuuri-san começa a teclar em seu celular com os olhos arregalados e lábios trêmulos. Para me derrotar. Antes que eu consiga entender o que está acontecendo, ela escreve uma mensagem e está para enviá-la quando Haruaki subitamente a segura por trás.

— Ugh…!

Ela acidentalmente larga o celular.

— Droga! Desculpe Hoshii! Erro meu!

— …Eh, hã?

— Você não entende, Hoshii? Yuuri-senpai nos disse sobre a “Shadow of Sin and Punishment” mesmo que isso coloque Daiyan em desvantagem. Ela é capaz de se opor a ele até certo ponto, então ela está tentando nos ajudar o máximo que pode. Mas ela ainda precisa tomar as melhores medidas que ela conheça para cumprir a [ordem]. Certo, Yuuri-senpai?

Ela assente de leve, me observando com lágrimas em seus olhos.

— Exato. Ah… o que, o que devo fazer…?

— Você não pode me superar fisicamente então posso te segurar dessa forma, se você quiser. — Haruaki sugere.

— Nã-não, acho que é inútil me impedir. Apenas fugiu da minha mente que eu poderia entrar em contato com os outros, mas outra pessoa com certeza terá a mesma ideia. Se alguém localizar a Otonashi-san, essa pessoa ligará ou mandar mensagens para outros [servos]. Depois disso, é só uma questão de tempo. A informação irá se espalhar cada vez mais e mais…!

— Uh, entendo. Você está certa… Hoshii, alguns [servos] podem já saber o endereço da Maria-chan. Vocês deveriam fugir.

— Ma-mas…

Se eu fizer isso, Maria certamente perceberá que estou enfrentando o Daiya e a sua “caixa”. Preciso evitar isso a todo custo.

Mas podemos sequer fugir dos [servos]? Quero dizer, mil pessoas estão atrás de nós. Por capricho, abro uma página de internet no meu celular e pesquiso o meu nome. Os resultados da pesquisa em tempo real me deixam pálido.

 

²

 

— O que…

O que é isso? Até meu endereço está na internet. A página do twitter de onde veio a mensagem original está praticamente vazia antes disso; ele obviamente registrou apenas para postar essa mensagem. Além disso, ele até mesmo colocou uma foto minha e da Maria na moto dela.

Parcialmente por causa da aparência da Maria, o tweet dele se espalhou rapidamente no curto tempo desde que foi postado. Alguns usuários até expressaram suas dúvidas sobre a legitimidade da mensagem, mas isso não importa: as pessoas cegamente compartilharão a mensagem pelo propósito de “encontrar estudantes desaparecidos”.

Talvez alguns dos [servos] já tenham visto aquele tweet?

Inconscientemente ergo minha cabeça e olho ao redor. Vejo uma mulher com roupa social caminhando e olhando para o seu celular, um homem de meia-idade passeando com seu cão, um aluno do fundamental usando capa e andando de bicicleta.

…Meus olhos se encontraram com os do estudante.

…Talvez aquele aluno também esteja procurando por mim. Talvez ele também tenha visto aquele tweet. Talvez ele seja um [servo]. Não seria surpresa se aquele garoto chamasse outras mil pessoas para nos cercar.

Meus pensamentos me fazem congelar. Felizmente, o garoto desvia o olhar sem qualquer reação em especial.

— …Ugh.

Por que estou com medo de um garoto do ensino fundamental…? …Mas não posso simplesmente dizer que isso é um exagero. É um fato que existem vários [servos] por aí. Além disso, eles são pessoas aleatórias que não se destacam, diferente de policiais uniformizados, por exemplo.

— Yuuri-san… — Digo, tentando esconder minha preocupação. — Você disse que é impossível fazer coisas que vão contra seus valores morais, certo? Então você seria capaz de invadir o quarto da Maria se nós nos trancássemos lá dentro?

— Não poderia. Mas podem ter pessoas não tão éticas entre os [servos]. Não… temo dizer que definitivamente existem algumas. Também tem alguns fanáticos pelo Oomine-san. Acredito que eles fariam qualquer coisa pelo bem de suas [ordens], então eles poderiam invadir um apartamento sem pensar duas vezes…

É possível que alguém, após ler aquele tweet, vá lá para casa e ataque minha família?

— Você ou a Otonashi-san… podem ser torturados…!

Quase chorando, Yuuri-san está se debatendo para se livrar do Haruaki e enviar sua mensagem. Acho que ela realmente não quer contatar ninguém, mas não parece que ela é capaz de se controlar. Provavelmente porque o ato de mandar uma mensagem a alguém por si só não viola seus valores morais, mesmo que isso possa ter consequências não tão inocentes. Caso contrário, ela não estaria nos vigiando. Esse é o poder de uma [ordem].

— …como eu posso…

Estamos sendo perseguidos por mil pessoas. Todas elas estão quebrando a cabeça para capturar a mim e a Maria e reunir informações sobre nós. É só uma questão de tempo. Não seremos capazes de aguentar até o fim da “Wish-Crushing Cinema”, está tudo acabado…Ah, não, é muito pior. A situação atual, em que mil pessoas estão nos investigando, ainda é inofensiva.

Se Daiya falhar em obter as informações que quer, ele não se restringirá à mesma [ordem] para sempre. Ele tem um tempo limite. Se ele ficar sem tempo, fará uma aproximação mais direta. A [ordem] atual é apenas um movimento inicial… uma tentativa de mover seus “capangas”, para ver qual a minha reação.

— Yuuri-san?

Se não houver progresso, Daiya usará uma maneira mais efetiva e direta de sair da “Wish-Crushing Cinema”. Ou seja…

— E se ele te [ordenar] a me matar?

…Matando o “portador”.

Isso é obviamente imoral. Algo que não deveria ser possível, de acordo com a explicação dela. Mesmo assim, Yuuri-san respondeu firmemente.

— Eu te mataria.

— …Por que você seria capaz de fazer isso?

Acho que já sei a resposta, mas quero que ela confirme para mim.

— Uma [ordem] por si só deve ser executada não importa o quê. Nossos valores morais não fazem diferença. Por exemplo, a [ordem] atual é para descobrirmos o que vocês estão fazendo. Somos forçados a obedecer, mas os meios que usamos são escolha nossa. Eu considero invasão um crime, então posso me abster de fazer isso. Mas se a [ordem] fosse para invadir o apartamento dela, eu ficaria sem escolha. Valores morais se tornam irrelevante.

Quanto mais concretas forem as [ordens] do Daiya, mais poderoso é o seu [controle]. A [ordem] atual é algo vago apenas porque ele não tem uma ideia geral da situação. No momento, ele pode querer evitar cometer um assassinato, mas ele pode recorrer a isso, se encurralado.

Se isso acontecer, serei perseguido por mil assassinos. Preciso fazer algo. Qual a minha melhor opção…?

— …Yuuri-san.

Ainda sendo restringida pelo Haruaki, ela ergue o rosto.

— Explicarei tudo sobre nossa situação atual para você.

— Eh?

Esse som de confusão vem de Haruaki.

— Está falando sério, Hoshii? [Servos] que descobrirem algo precisam ir até o Daiyan! Se ele conseguir mais informações, seus ataques certamente ficarão mais intensos!

— Não tenho outra escolha. Além disso… Aposto que Daiya já deduziu com precisão o que eu e Maria estamos fazendo agora. Nesse caso, é melhor dar a ele uma quantidade apropriada de informações e fazê-lo pensar que não será difícil escapar.

Dessa forma, ele não terá que recorrer ao método de matar o “portador”.

— Tem outra razão. Eu quero enviar a Yuuri-san à “Wish-Crushing Cinema”.

— Eh?

Ainda restringida pelos braços de Haruaki, Yuuri-san arregala os olhos.

— Você não gosta do Daiya, certo, Yuuri-san?

Ela permanece imóvel por um instante… mas então, talvez adivinhando onde quero chegar, ergue os cantos dos lábios levemente.

— Está certo. Eu o odeio.

Sabendo que irá conseguir novas informações, ela para de se debater contra o Haruaki. Com uma expressão quase que contente, ela continua:

— Jamais o perdoarei por me matar e mostrar meu corpo naquele estado horrível para você durante aquele jogo assassino. Se eu puder descobrir as feridas emocionais dele, quero enfiar uma faca nelas, fazê-lo sentir dor e agonia intensas, a ponto dele cometer suicídio.

…Hum, bem… eu não pedi por tudo isso… e você está me assustando… e olhe, até o Haruaki te soltou porque suas palavras foram tão alarmantes…

— De…de qualquer forma, você está do meu lado, certo?

— Sim.

Yuuri-san é bastante ardilosa e inteligente, apesar de sua aparência adorável. Ela também tem coragem o bastante. Em outras palavras: ela é um Cavalo de Tróia. Se ela estiver com o Daiya, pode atrapalhar as ações dele.

Depois disso, contei a Yuuri-san que estou enganando a Maria. Também contei a ela que deveria ir para o shopping para entrar na “Wish-Crushing Cinema”. Ela me contou que já sabia disso instintivamente porque Daiya usou a “Shadow of Sin and Punishment” nela. Supostamente, a “caixa” dele é compartilhada, e devo considerar que ela é como uma “portadora”.

Não sei por que, mas quando ouvi isso, não consegui evitar pensar que… ela lembra a “caixa” da Maria de certa forma. É difícil explicar por que senti isso, mas se tivesse que dizer algo, “elas dão uma impressão parecida” é provavelmente a melhor resposta que eu poderia dar.

Elas são baseadas em emoções fortes, mesmo assim são frias e frágeis, e não consigo compreender seus motivos ocultos. São “caixas” cujos significados não consigo entender. Provavelmente por causa dessa linha de pensamentos, uma nova ideia passou pela minha mente.

 

Ah, poderia ser que…

Aquele que a compreende melhor não sou mais eu, mas…

Daiya Oomine?

 

Chacoalho minha cabeça. Por que estou perdendo o foco do nada? Eu deveria estar pensando sobre os planos do Daiya.

— Ei, Hoshii. — Haruaki começa a falar. — O alvo do Daiya será a Kiri!

Certo. Também acho. Portanto…

Nesse momento preciso proteger a Kokone — não a Maria.


Notas:

1 – “Cinema Destruidor de Desejos”

2 – A mensagem original em japonês possui 144 caracteres



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