Volume 1

Capítulo 26: O Fim e o Princípio

— Para onde? — Colth perguntava enquanto corria por uma das apertadas ruas do Norte. Com os moradores escondidos em suas residências, o lugar estava incrivelmente quieto.

Ao lado de Celina, ele pensava em alguma rota para saírem dali o mais rápido possível.

— Podemos tentar um dos trens na estação? — sugeriu ele em resposta a sua própria pergunta.

— Não. Vai estar muito cheio e vigiado. — Celina respondeu ofegante em meio a corrida.

Assim que dobraram a esquina seguinte, se surpreenderam com a situação que estava a se desenrolar em frente.

Em uma das vielas, mais prédios estavam em chamas, mas não foi isso que chamou a atenção. O corpo de uma mulher estava estirado ao chão em meio a rua.

— Merda... — sussurrou Colth com o reflexo flamejante em seus olhos. — Essa é a Runa.

Sobre as pedras do calçamento, o corpo gravemente ferido da mulher minava sangue, agachado sobre ela, um menino chorava afundado em tristeza e desespero. Mais nada além deles.

Colth se aproximou devagar e se colocou ao lado da criança que já havia conhecido.

— O que aconteceu? — perguntou segurando as emoções pelos dentes.

O corpo era ninguém menos do que a senhora Runa, a dona da alfaiataria. Haviam ferimentos em sua barriga, e o seu rosto era completamente tingido pela dor.

Celina se aproximou, mas não interrompeu. Runa somou todas as suas forças restantes para se expressar.

— Eu fui muito estúpida — a mulher dizia com dificuldades. — Eu deveria ter obedecido eles. Deveria ter entregado... Desculpa, Jorge.

— Não... Não fala isso...

As primeiras lágrimas escorreram dos olhos da criança que, mesmo jovem, percebeu que aquilo só poderia ter um desfecho.

— Eu vou sempre estar ao seu lado — disse Runa observando todos os detalhes do rosto do garoto choroso como se quisesse gravar bem aquele momento em sua mente.

Jorge assentiu com a cabeça enquanto segurava a mão dela. Mesmo em dor, ela sorriu uma última vez.

A expressão no rosto da mulher foi perdendo intensidade, sua respiração foi cessando e, finalmente, seus olhos perderam a luz.

— Não, por favor, não me deixa sozinho. — A criança balançava os braços da sua figura materna em uma tentativa frustrada de fazê-la responder.

Colth engoliu sua tristeza ao assistir a cena enquanto Celina acompanhava com seu olhar discreto desviado.

Algo chamou a atenção dos dois em meio aquele momento fúnebre. Ficaram em alerta imediatamente assim que dois policiais viravam a esquina e se encontraram na viela, ambos estavam armados e se aproximavam gritando palavras de ordem:

— Vocês aí! Fiquem onde estão!

— Colth, temos que ir — apressou Celina.

“Eu não posso deixar esse garoto aqui.” Pensou o rapaz ao ser duplamente pressionado. “Deixá-lo seria o mesmo que o condenar a uma vida de miséria nas minas de extração do império.”

— Jorge, vem. — Colth segurou firme a mão da criança em prantos e a puxou para si.

— Não! — Jorge se debateu imediatamente em resposta. — Me solta! Eu não vou deixar ela para trás!

— Eu sinto muito garoto — retrucou Colth usando a força física de um adulto a seu favor.

Arrastou o garoto e até tirou os pés dele do chão para que fosse feita a sua vontade. Seguiu atrás de Celina a passos ligeiros em direção oposta aos policiais. A garota, por sua vez, já corria a procura de uma rota de fuga ou lugar que pudesse servir de refúgio dobrando a esquina mais próxima.

Os policiais até chegaram a apontar as suas armas, mas não dispararam, seus alvos estavam longe. Baixaram as armas e correram em perseguição ao grupo sem nem mesmo olhar para o corpo falecido ao chão.

Celina percorreu dois blocos inteiros de construções por aquela viela, os outros a seguiam sem contestar. Assim que Colth passou por mais uma esquina, percebeu que o local era minimamente familiar.

Diminuiu a velocidade e observou o muro de tijolos colado ao meio fio. Havia uma passagem aberta na parede, a mesma passagem que ele próprio tinha visto anteriormente há alguns dias quando visitou o lugar com acompanhando Garta em suas tarefas diárias.

“Mas por que está aberta?” Se perguntou e em seguida se desfez da dúvida.

— Celina! — chamou a atenção da garota que ia à frente. — Por aqui.

Não perdeu tempo, se esgueirou pela passagem escura em meio aos tijolos falsos arrastando consigo a criança em prantos. Fez sinais com as mãos para que a garota os seguisse.

— Mas o que... — Ela não se deu ao tempo de entender. Seguiu as instruções do rapaz e adentrou ao local.

Atravessou a passagem e encontrou, em uma sala apertada e escura, Jorge e Colth em meio a uma única fresta de iluminação vinda de fora.

O rapaz rapidamente encontrou o que parecia uma alavanca, sabia que era possível fechar aquela passagem, e era óbvio que aquela manivela de madeira faria aquilo. Não pensou duas vezes, a puxou e esperou a consequência.

A parede se fechou aos poucos ao ritmo das engranagens se movendo no mecanismo e, em segundos, a passagem foi totalmente bloqueada, o interior virou breu. Colth segurou a respiração para não fazer qualquer som ao ouvir os passos dos policiais do lado de fora.

— Para onde foram? — disse a voz ofegante no exterior.

— Eu não sei. — respondeu o outro oficial na viela. — Continue procurando, não podem ter ido muito longe.

As vozes do lado de fora se afastavam e traziam o silêncio pleno no escuro absoluto. Colth finalmente respirou e sentiu um cheiro ferroso no ar. Não era possível ver nada, e ele não fazia ideia do que poderia ter naquele lugar, mas a sensação não foi agradável.

— Algum de vocês, estão vendo alguma coisa? — disse ele sem direção.

— Eu não enxergo nada nessa escuridão — respondeu o óbvio Celina.

— Jorge, você está bem? — Se preocupou Colth.

— Hum — respondeu o garoto desanimado.

— Colth, por que você trouxe esse garoto? — perguntou Celina em uma real dúvida.

— Você não queria que eu o deixasse lá, né? Droga. Eu pisei em alguma coisa.

O barulho de algo caindo ao chão como um objeto pequeno, chamou a atenção. A angústia de não possuírem a visão acertava a todos.

— O que foi isso? — Se manifestou Colth.

— Eu derrubei algo. — A voz de Celina aliviava a tensão. — Espera aí. Eu suponho que tenha achado...

Um barulho de riscar, seguido por uma faísca solta no breu, chamou os olhares para garota. O barulho voltou a ser ouvido e, então, uma pequena chama se acendeu.

Puderam finalmente enxergar. Celina segurava um pequeno palito de fósforo em chamas. De imediato, encontrou uma vela sobre um pires com a pouca luz emitida na superfície de uma pequena mesa ao seu lado.

Transferiu o fogo para o pavio gasto da vela e, finalmente, todos puderam ter uma visão mínima do local que estavam.

O quarto minúsculo como um corredor, era cercado por paredes de tijolos sem qualquer acabamento, apenas armários e uma portinhola compunham o ambiente inacabado.

— Bom trabalho, Celina. — Colth quebrou o silêncio sorrindo discreto, mas logo viu algo que chamou a sua atenção de modo destrutivo. — Jorge, fecha os olhos — disse seriamente e colocou uma de suas mãos sobre o rosto do garoto triste, tapando totalmente sua visão de um modo nada sútil.

— Por quê? O que foi? — perguntou o garoto sem resistir a intervenção.

Celina também perguntou, mas usou apenas o seu olhar incerto para fazê-lo. Colth respondeu do mesmo modo, apontou os olhos em direção ao chão e apertou os seus lábios um contra o outro.

A garota procurou pelo o que o rapaz queria destacar, viu dois corpos estirados sobre o piso ensanguentado. Reagiu desviando o rosto para cima e guardou os pensamentos para si.

— Os policiais já devem ter passado por aqui — disse o óbvio.

— É. Pois é. — respondeu Colth e gesticulou gentilmente um sinal para a garota ficar quieta. Ele reconheceu os dois corpos, mas conteve qualquer emoção sobre aquilo, ficou aliviado ao não encontrar a garotinha Iara ali, apenas os seus pais, já era suficientemente chocante.

— Policiais? — Jorge perguntou com curiosidade.

— Não é nada. Só estamos pensando em algum jeito de sair daqui. — mentiu Colth com a primeira coisa que veio a sua cabeça.

— Tem razão. Precisamos pensar em um jeito de sair da Capital — interpretou Celina.

— A gente pode usar a passagem no muro que a mulher dos bolinhos usa. — Jorge disse despretensioso como qualquer criança da sua idade. Ele não podia ver, mas estava atentamente escutando a conversa.

— Passagem no muro? Está falando do muro entre a Capital e as outras cidades? — Colth se mostrou curioso.

— Sim. A mulher dos bolinhos usa ele as vezes. — Jorge respondia naturalmente ainda desanimado e vendado pelas mãos do rapaz ao seu lado. Parou para pensar um pouco e só continuou após um segundo em silêncio. — Mas eu não posso levar vocês lá. Eu prometi para ela que não ia mostrar para ninguém aquele buraco.

— O quê? Isso é sério? — Colth assumiu a frente da conversa.

— Sim, ela me traz bolinhos, e em troca eu não conto nada pra ninguém.

— Escuta Jorge, você sabe onde fica isso?

O garoto apenas balançou a cabeça positivamente.

— Então nos leve até lá. — Celina interviu sendo direta e fria do jeito dela.

— Não. Eu já disse que não posso.

— Esse garoto só vai nos atrapalhar, Colth. Eu não entendo o porquê de você trazer ele.

— Celina... — Colth a reprimiu. Em seguida, voltou as suas palavras mais gentis ao garoto vendado por suas próprias mãos. — Eu sinto muito pela Runa, mas se deixarmos ser pegos por aqueles homens maus lá fora, você estaria jogando no lixo o último desejo dela, não é?

— Tem razão — respondeu em tom tristonho, mas compreendido.

— E se você nos levar até a passagem no muro, posso te dar alguma coisa em troca, que tal?

— Sério? — Jorge se interessou pela proposta de Colth.

— Sim, claro.

— Mas eu vou quebrar a promessa que fiz com a mulher dos bolinhos...

— Não tem problema, essa mulher aí é bem bobinha, ela só falou isso para brincar com você. — Colth usava de tudo para convencer a criança. — E então, do que você gostaria?

— Eu não sei... Não parece certo quebrar a promessa.

— Vamos lá garoto, me dá uma força.

— Certo. Então eu vou querer um bolo.

— Um bolo?

— Isso, eu vou dividir com a mulher dos bolinhos, assim eu devolvo o que eu devo para ela, e a quebra da promessa não vai chateá-la.

— Ah, é nisso que você está pensando é? — Colth se surpreendeu com a pureza do seu negociador, mesmo que aquilo não fizesse sentido algum. — Então tá bom, eu vou te dar um bolo imenso. O maior que você já viu.

— O bolo vai ter creme de baunilha?

— Se vai ter creme? Ele vai ser coberto pelo melhor creme de baunilha de todo império.

— E vai ter recheio?

— Sim. Muito recheio. Do que você quiser.

Colth respondeu com a voz mais gentil possível que uma criança poderia ouvir. Ele era especialista em fazer Agnes, sua sobrinha, sorrir. Aquilo chegava a ser nostálgico. Sentiu saudades da pequena garotinha, ao perceber que utilizou do mesmo tom que usava com ela.

 — Hã... Tudo bem, eu levo vocês lá. — O garoto concordou com um sorriso tímido no rosto.

— Isso. Então eu vou abrir a porta do esconderijo.

Colth comemorou comedido e olhou para Celina que desviou o olhar. Eles rapidamente se posicionaram até a passagem da parede de tijolos que servia de porta.

O rapaz empurrou a manivela e a luz começou aos poucos entrar no cômodo secreto. Assim que a passagem ficou grande o suficiente, todos saíram. Colth finalmente libertou a visão do garoto que logo começou a mostrar o caminho.

— Você realmente confia nele? — Celina perguntou preocupada em voz baixa para que apenas Colth escutasse.

— Eu não tenho mais nenhuma ideia. Acho que essa é a nossa melhor chance.

— Sei. E aquelas pessoas lá trás?

— Sinceramente, eu não quero nem pensar nelas nesse momento.

“Que cruel, que cruel.” Pensava mesmo assim. — “Mãe e pai mortos. Se eu pudesse fazer alguma coisa por aquela garotinha. Espero que aquele velho Oskar tenha escapado com a Iara, espero que estejam bem, mas essa não pode ser a prioridade agora, precisamos sair daqui.” Pôs um ponto final temporário naquele sentimento horrível que tentava corroer o seu coração, sua vida e a dos outros dois que o acompanhavam dependiam desse ato egoísta.

O garoto era o guia pelas vielas do Norte próximas ao muro da divisa. O trio caminhou com cautela e chegaram a pensar que não encontrariam resistência alguma durante todo o caminho. Foram poucos segundos até finalmente o muro da divisa ficar visível.

Era apenas atravessar a rua e passar por um pequeno terreno com carros abandonados em meio ao mato crescido e pronto, estariam diante da passagem, mas nesse momento, uma dupla de homens uniformizados os surpreendeu e chamou a atenção do grupo adentrando ao lugar.

Aqueles não eram policiais comuns, aqueles dois vestiam os uniformes da guarda Real e pareciam realmente determinados.

— Vocês aí. Parados. — O homem apontou o mosquete Sathsai para os três em meio à rua.

— Calma aí! — Colth gritou se colocando à frente com as mãos para o alto. — Nós só estamos voltando para casa.

— Avisa ao coronel que achamos eles. — O homem que apontava a arma ordenou ao outro.

— Sim. — O guarda Real que parecia mais novo, se virou e correu pela rua para seguir as ordens de seu veterano.

— Escutem — Colth sussurrou para os dois atrás dele. — É só uma arma, se corrermos agora, é bem possível que o guarda erre o seu...

— Nem pense nisso! — O guarda uniformizado, mesmo sem ouvir, supôs o que era discutido metros a sua frente. Mostrou o que segurava junto ao seu mosquete que mantinha apontado para o grupo. — Sabem o que é isso? Uma granada Sathsai, se eu puxar esse pino, ela fica instável a qualquer impacto. Uma explosão, é mais do que suficiente para fazer todos vocês em pedaços.

— Você está blefando! — Colth gritou para o homem que não perdia a atenção. — Tem uma criança aqui...

— Acha mesmo que eu estou blefando? Eu não me importo nenhum pouco com essa criança. Eu não me importo com ninguém dessa maldita região!

Colth engoliu seco, não poderia apostar na sensatez daquele homem. Realmente parecia falar sério e depois do que viu momentos atrás não apostaria no contrário.

— As suas ordens é exterminar o povo do Norte? — perguntou em tom nervoso provocante.

— O quê? Não. As ordens são para encontrar Celina de Rasuey. — O guarda foi honesto.

— Tudo isso, é por minha causa? — a garota pensou alto em tom soturno.

Um homem mais velho uniformizado com as suas medalhas no peito se aproximava da situação.

— Não me surpreende vê-los. O rebelde, e a cobiçada. — disse a voz poderosa caminhando pela rua até se posicionar ao lado do aliado guarda Real armado.

— A Garta tinha razão, tem infiltrados por todo império. — Colth se convenceu sussurrando ao ver aquela figura poderosa.

— É bom encontra-los novamente. — complementou o homem seguro de si. De barba farta e olhos nada emotivos, era imediatamente temido por todos ali, inclusive pelo guarda Real. — Sabem como é difícil ver algo desejável a sua frente, algo precioso, e não pode-lo tocar?

— ...

— Não, é claro que não. Vocês nunca nem se quer sabem da existência de algo assim... Tanto faz, finalmente posso ter a guardiã. Soldado, atire no menino e no rapaz — ordenou o homem sem piedade ao subalterno.

O guarda Real arregalou os olhos e conferiu duas vezes as palavras do superior para entender de fato as suas ordens. Hesitou enquanto se mantinha com a dupla de procurados na sua mira.

— Mas senhor, é só uma criança — disse contrariando as próprias palavras ditas.

— Só uma criança, é? — o mais experiente retrucou sereno e, aparentemente, compreensível.

O superior retirou calmamente um belo revólver de seu coldre acoplado ao cinto de suas vestimentas poderosas, e respirou fundo contrariado antes de explodir:

— Seu imprestável de merda! Um soldado que não cumpre ordens é o mesmo que um traidor!

Apontou o revólver para a orelha do homem contestador e disparou imediatamente sem tempo para reação.

O corpo do soldado já sem vida desmoronou sobre o calçamento, todos os outros foram impactados.

— Quantas vezes eu tenho que dizer, é senhor Coronel Helm!

Colth tremeu com o susto do disparo repentino, seus olhos saltaram incrédulos sussurrando sua inquietude. Celina e Jorge também ficaram boquiabertos e paralisados com o desfecho surpreendente. O coronel, que já era uma figura conhecida dos exames de admissão da Defesa, havia acabado de assassinar o seu subordinado sem qualquer razão ou sentido lógico.

Helm, ainda em fúria e com os olhos mais sérios do que antes, apontou a arma na direção de Colth e o viu temer a morte. O coronel estava pronto para puxar o gatilho.



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