Volume 2

Capítulo 79: O Selo do Passado

O quarto duplo estava apenas parcialmente iluminado, criando uma atmosfera aconchegante que parecia envolver o ambiente. As paredes, decoradas com detalhes artísticos, emolduravam o espaço de forma acolhedora em conjunto com as duas camas de lados opostos. O único som que quebrava o silêncio era a voz neutra de Colth:

— E agora? É só esperar? — perguntou ele, seu tom carregado de tédio.

O rapaz estava sentado em uma simples cadeira frente à grande janela central do quarto duplo. Ao seu lado, Lashir repousava sentada sobre a escrivaninha com as pernas cruzadas sem apoio enquanto escorava suas costas no vidro da janela. Ela suspirou impaciente antes de responder:

— Sim, é exatamente o que eu disse cinco minutos atrás. Seu selo já está pronto para ser usado.

Mon, por sua vez, estava inquieto, sentado no chão sobre o tapete empoeirado bem ao centro do seu próprio quarto com uma expressão preocupada. Ele continuou o assunto:

— É bom que esse selo funcione mesmo.

— Se estiver com medo e quiser desistir, essa é a hora. Mas vai ter que viver com aquela sombra te perseguindo — retrucou Lashir sem qualquer empatia.

— Não. É claro que não. Eu tenho muito trabalho a fazer, quando a deusa Nox precisar dos meus serviços como guardião. Não posso ficar me preocupando com aquela coisa — Mon ficou um segundo pensativo. — Mas vocês têm certeza de que não é a Dilin, né? Eu não quero machucá-la ou então...

— Não. Eu já disse. — Lashir interrompeu. — Não é a Dilin, é uma sombra de corrupção que vai ser atraída por você, que é o grande guardião covarde de Nox. Qual é o problema de vocês, são surdos, ou simplesmente só conseguem acreditar em quem faz o mal a vocês? — respondeu ela, revirando os olhos. — Aliás, você é bem inocente, não é, Montague?

Mon, agora intrigado, voltou seu rosto para a mulher de olhos vermelhos, sem compreender:

— O que quer dizer com isso?

Lashir se levantou com um ar sério e enfatizou suas palavras:

— A Dilin vai tomar o seu posto para ela.

Mon deu de ombros com resignação.

— A Dilin já é tão habilidosa quanto eu. Mais inteligente, sem dúvidas. Assim que ela estiver mais crescida, vai se tornar a Guardiã. É questão de tempo, mas eu já me conformei com isso. A minha posição é provisória por alguns anos.

Lashir, por outro lado, não parecia satisfeita em deixar o assunto morrer.

— Você não entendeu. Dilin vai te trair. Vai trair o seu povo e a sua Deusa, muito antes desses “anos” que você imagina.

— Lashir, não... — Colth tentou conter as palavras da mulher sobre o futuro que a mente de Mon não se recordava, mas ela continuou inabalável:

— O que você acha que vai demorar alguns anos — ela enfatizava cada palavra —, Dilin vai apressar e fazer acontecer em algumas semanas.

A mulher consumia a atenção de Mon com seus olhos sérios e cheios de verdades que atormentaria qualquer um.

— Como... como você sabe disso? — perguntou o grandalhão fisgado pelas palavras.

— Você tem medo, Montague. E não é medo de não conseguir proteger o seu povo, e muito menos de proteger sua deusa. Mas é o medo de ser esquecido por eles. O medo de que a Dilin simplesmente passe por cima de você, de modo que ninguém sequer lembre da sua existência.

— Não é verdade — disse o homem discordante se levantando do chão.

— Pobre Montague. É tão verdade, que isso já aconteceu. Você já perdeu tudo isso, só não se lembra. — A mulher continuou com sua voz firme e implacável. — Já é um completo ninguém. Nem mesmo você se lembra do seu destino.

O quarto se transformou em um poço de tensão enquanto as palavras de Lashir ecoavam. Mon lutava contra a crescente ansiedade em seu peito e suas lembranças que tentavam despertar. Ele reprimia o medo que começava a tomar conta de seus pensamentos.

Colth, ainda tentando acalmar a situação, fez uma última intervenção:

— Pare, Lashir... — Suas palavras caíram no vazio, pois a mulher de atitude poderosa estava determinada a abrir os olhos de Mon para a realidade.

— Você é um simples prisioneiro de sua própria mente, Montague. Prisioneiro das suas lembranças, é o que restou para você. E a prova disso — a mulher sorriu orgulhosa de si —, é essa sombra atrás de você.

Lashir apontou com os olhos para a porta da entrada do quarto. E lá estava, como havia desconfiado. O ser de sombra, uma entidade sinistra e opressiva que avançava com uma lentidão deliberada na direção deles. Sua presença ameaçadora enchia o ambiente, como se estivesse devorando a luz que restava.

— Ah, sua mulher irritante — disse Colth, quando percebeu os planos de Lashir. — Você fez o Mon trazer a sombra para cá, enchendo a cabeça dele de besteiras até que seus medos se materializassem novamente. Tsc. Bem pensado, mas completamente perverso.

— Chame de besteiras, se quiser. Mas eu não disse nenhuma mentira — concluiu ela.

— Aí! O que fazemos agora? — perguntou Mon, enquanto alvo da sombra que caminhava em sua direção.

— Colth, ative o selo — solicitou Lashir.

O rapaz acenou positivamente com a cabeça antes de juntar as palmas de suas mãos e encaixar os dedos um aos outros. Em seguida, esticou a face das mãos novamente em um movimento sincronizado para baixo. O brilho característico assumiu as paredes do quarto de forma a lembrar a cor transparecida da cela que um dia prendeu a deusa Tera.

Assim que a barreira mágica se formou, tomando as paredes e a abertura da porta da entrada, o ser de sombra estremeceu enfraquecido, mas não foi o único, Mon dobrou uma das pernas e se ajoelhou colocando ambas as mãos na cabeça em dor:

— Ah! — Seu cérebro pulsava irradiando tormento.

Colth se surpreendeu sem entender. Já a mulher, simplesmente começou a caminhar serenamente em direção a saída do quarto:

— É isso — aprovou Lashir. — Venha, Colth.

— O quê? Mas o Mon, ele...

— Ele está sendo afetado pelo selo. Não é óbvio? Eu disse que essa magia prenderia e enfraqueceria qualquer pessoa dentro do selo, até mesmo memórias. Menos o conjurador, nesse caso você, Colth.

Lashir comentou como se fosse algo banal. Ela deu mais alguns passos e atravessou a barreira mágica para fora do quarto sem qualquer efeito ou algo que a impedisse. Já no corredor, voltou seus olhos ousados para Colth, como se tivesse orgulhosa de si.

— Você não disse “qualquer um”? — perguntou Colth, estranhando o fato de Lashir estar irretocável.

— Eu faço parte de você, esqueceu? O selo não me afeta.

— Eu não vou conseguir me acostumar com isso — comentou o rapaz com desgosto.

— Não precisa, vai durar só até eu tomar o seu corpo para mim. Enquanto isso, deveria me agradecer por estar carregando minha magia — concluiu Lashir, as palavras até pareciam se tratar de uma piada ou um descontrair, mas seu tom era sério. — Agora, Colth, podemos ir logo? Temos que sair daqui para você receber o seu prêmio, afinal, missão cumprida.

— Mas eu não posso deixá-lo aqui — rebateu Colth, apontando para Mon que estremecia em conjunto com o ser de sombra no centro do quarto.

— Ah! — gritou em dor o grandalhão.

— Deixa ele aí, é só uma memória — resumiu Lashir sem dar um pingo de sua atenção ou importância. — Aposto que Dilin até te daria um bônus por fazer o Montague esquecer das piores partes dela.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Colth sério, ainda dentro da barreira de sua própria magia com os olhos fixos na mulher insensível do lado de fora.

— Ah, você sabe. Ela é uma garota bonita, talvez ela deixe você passar a mão nela ou então...

— Não. Não isso. Você é asquerosa, sabia? — pontuou ele antes de continuar: — O que quer dizer com fazer o Mon esquecer das piores partes dela?

Lashir respirou fundo de forma impaciente, chegou a fechar os olhos e contou até três mentalmente. Finalmente trouxe o esclarecimento:

— Montague vai esquecer essas partes de sua memória, pois elas estão presas junto com a corrupção. Mas não se preocupe, ele vai voltar ao normal, só não vai se lembrar de nada que aconteceu após a cerimônia da atribuição de sua função como guardião de Nox e, consequentemente, nem da traição de Dilin nas semanas seguintes.

— Ele não vai se lembrar... — sussurrou Colth para si mesmo digerindo a informação. Então, decidido, caminhou em direção a parede que emanava a luz da barreira mágica do selo. — Não. Isso não é justo. Eu vou libertá-lo.

— Se desfazer o selo, a corrupção vai ficar à solta novamente — resumiu Lashir com impaciência, destacando as duras consequências da libertação: — Você só estaria determinando que o Montague seja uma besta corruptiva para sempre.

Colth parou por um segundo, ponderando as palavras dela. Em seguida, dirigiu seus passos para o centro do quarto novamente.

— Tem razão. Então eu vou acabar com a corrupção.

— Não! Não é possível acabar com a corrupção. — Lashir pareceu se preocupar de fato pela primeira vez, principalmente pela firmeza do rapaz. — Por que isso é tão importante, em? Não vai fazer diferença nenhuma.

— Você não entende como é viver sentido falta de uma parte de você. Sabendo que suas memórias não estão completas — disse o rapaz sério, se preparando frente ao ser de sombra que estremecia em dor. — Memórias são parte de alguém. Deixá-las para trás, é o mesmo que deixar quem você é, para trás. Acredite, eu sei disso.

— O que pretende fazer? — perguntou a mulher preocupada.

— Você disse que qualquer um ficaria preso no meu selo, não foi? — Colth estava convicto, a determinação brilhando em seus olhos. — O que significa que essa sombra não é só uma coisa. É alguém. E se é alguém, tem algo que eu possa acessar. Sejam sonhos, sentimentos ou memórias.

— Vai usar a magia de Anima na corrupção — sussurrou Lashir ao finalmente entender o objetivo do rapaz. Ela arregalou os olhos surpresa e gritou como última tentativa de detê-lo e evitar o que estava prestes a acontecer: — Não faça isso!

Tarde demais. Colth esticou a palma da sua mão que já cintilava o brilho de sua magia, prosseguiu em direção as sombras enfraquecidas que tremiam sob a influência do selo.

A sombra, inicialmente ameaçadora, começou a hesitar à medida que Colth exercia sua magia de Anima sobre ela. Parecia haver uma luta silenciosa, uma batalha de vontades acontecendo enquanto o guardião tentava acessar os recantos mais profundos daquela escuridão corrompida.

O rapaz sentiu flashes de memória, emoções e fragmentos de sonhos perdidos dentro da escuridão. Cada lembrança quebrada e emoção torturada que ele tocava era como um choque, um eco do que Mon, Dilin e, até mesmo Lashir, haviam experimentado enquanto a corrupção existia.

Colth se agarrou a esses fragmentos, puxando-os com força e determinação. Ele sabia que estava arriscando tudo, que a sombra poderia se voltar contra ele a qualquer momento, mas não podia recuar. Estava determinado a isso.

A corrupção contorceu-se em forma de sombra sobre Colth, enquanto o rapaz continuava a mergulhar fundo no mar de fragmentos dissipados.

Finalmente sentiu o que estava procurando em suas mãos. Ouviu um sussurro em seus ouvidos, a voz de Mon em tom desesperado:

“Eu renuncio a posição de guardião.”

Colth agarrou aquele fragmento e o interpretou. No momento seguinte, uma explosão de luz e energia irrompeu, envolvendo o quarto em um clarão cegante. Estava feito.



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