Volume 2

Capítulo 80: Inesquecível

O lugar estava praticamente vazio, à exceção de um pequeno grupo de amigos que ocupava os bancos do balcão. Eram quatro pessoas, todos homens, os amigos pareciam estar se despedindo com alegria, seus rostos corados denunciavam o consumo de álcool. Três deles se levantaram com alguma dificuldade de se equilibrar.

— Até amanhã, guardião! — gritou um se afastando com os outros dois em risos.

Era evidente que a noite estava chegando ao fim, o que explicava a sensação de vazio e melancolia que pairava no ar, como o fim de uma festa.

Os três bêbados saíram pela porta principal da taverna e deixaram o ambiente ainda mais silencioso e pragmático.

O último cliente permaneceu sentado ao balcão, olhou para o seu copo com a bebida quente e suspirou fundo com apenas a solidão lhe acompanhando.

A porta principal se abriu novamente e, por ela, uma bela mulher de vestido vermelho adentrou a taverna e seguiu até o bar.

— Se você quer um autógrafo, vai ter que esperar até amanhã — disse com a voz áspera o homem solitário reverberando pelo bar.

A mulher manteve-se determinada, sentou-se ao lado do homem no balcão e então respondeu a grosseria:

— Muitos estão de olho no seu posto, guardião Montague.

Mon virou-se lentamente para encará-la, avaliando-a com desconfiança. Ela parecia conhecer muito mais do que revelava.

— Me conta uma novidade — respondeu o homem em tom sarcástico. — E você é?

A mulher lançou um sorriso enigmático e se apresentou:

— Me chamo Lashir. Estou aqui para te oferecer uma oportunidade única, Montague.

Ele respondeu com um resmungo cético:

— O que você quer?

Lashir não se intimidou com a hostilidade dele. Pelo contrário, parecia esperar por isso.

— Quero que você se junte a mim, Montague. Eu também sou uma guardiã, assim como você. Juntos, podemos mudar o destino dos mundos e dos guardiões. Podemos nos libertar.

Mon franziu o cenho, desconfiado:

— Por que eu faria isso?

Lashir inclinou-se um pouco mais para ele, os olhos vermelhos brilhando intensamente:

— Porque você não é o guardião que quer ser. Você está fadado a ser esquecido, Montague. Você já tem até uma substituta pronta para entrar no seu lugar. E você será apenas uma lembrança distante. Mas comigo, você pode ser mais do que isso. Pode ser alguém que deixa sua marca na história e muda esse ciclo cruel. Juntos, podemos derrubar os deuses.

Mon bufou, parecendo irritado:

— Você é alguma maluca, não é?

Lashir sorriu, como se estivesse esperando essa resposta:

— Montague, você é apenas um peão nas mãos de Nox. Ela não se importa com você, apenas com o que você pode fazer por ela. Comigo, você será livre. Livre para escolher o seu próprio destino.

Mon balançou a cabeça, recusando a oferta:

— Eu não vou trair Nox. Ela me deu um propósito, e eu vou cumpri-lo.

Lashir suspirou, como se estivesse lamentando a decisão dele:

— Uma pena, Montague. Você poderia ter sido grande, mas escolheu ser apenas mais um servo da deusa. Aposto que a sua sucessora vai aceitar a minha oferta.

— Não me importo. Espere mais alguns anos e tente novamente, quando ela estiver no meu lugar.

Lashir sorriu com o canto da boca, enfatizando os contornos de seus lábios pintados pelo batom vermelho, e se levantou para deixar Mon sozinho com suas reflexões ao sair da taverna.

                                                ***

A criança adentrou ao quarto e bateu a porta com rebeldia as suas costas, antes de saltar sobre a sua cama, e socar o travesseiro de pluma descontando a ira que sentia em seu coração:

— Isso é ridículo! É tão injusto! — gritou abafada em meio as dobras da almofada. — Eu odeio esse lugar!

A porta do quarto voltou a se abrir com a entrada de um homem velho de cabelos curtos com mechas grisalhas entre os fios escuros:

— Não diga isso, Dilin. A deusa Nox te elogiou muito. Se não fosse tão nova, tenho certeza de que seria a escolhida. Você não tem nem dez anos. Quando for maior, tenho certeza de que será uma menina incrível — amenizou ele positivo.

— Eu odeio esse lugar! Odeio essas pessoas!

— Pare com isso, imediatamente! — aumentou o tom em uma bronca considerável sobre a menina que esperneava na cama. — É por isso que você não foi escolhida. Você ainda é muito criança, Dilin. É infantil e não sabe o que representa ser a guardiã de Nox.

— Você é igual eles, Telmo! Só falam besteiras! Só escolheram o Montague, por que ele é um palerma que se acha o intocável.

— Ser benevolente e audaz não é ser um palerma — rebateu Telmo, ainda em bronca.

— Isso são apenas distrações. Nenhum guardião deveria se importar com nada além de manter Nox segura.

— Está errada, Dilin. O Mon é prestativo e se importa com o povo de Nox, assim como a nossa deusa. Ele é reflexo dela, como um verdadeiro guardião precisa ser. Foi por isso que seu irmão foi escolhido.

— Ele não é meu irmão!!! — O ódio da pequena menina angelical assumiu seus olhos e suas palavras. Com seu rosto em vermelhidão furor, ela encarou o homem. As veias de sua testa saltavam para fora e pareciam estar prestes a explodir. Cuspiu o desabafar em poucas palavras rosnadas: — E você não é meu pai!!!

Telmo perdeu a respiração, deu um passo para trás e colocou a mão no peito tentando recuperar o fôlego atingido pelas palavra cruéis. A garotinha, por sua vez, calou-se, mas desistiu de se arrepender dos dizeres. Agarrou o seu orgulho e correu para fora do quarto desviando-se do homem sentido.

Já no corredor, a criança com os olhos lacrimejando em fúria passou pelo jovem rapaz de grandes músculos que acabara de chegar em casa. Dilin escondeu o rosto após ver o conhecido com quem dividia o quarto.

— Dilin, o que aconteceu? — perguntou Mon, minimamente preocupado. Não obteve resposta.

A garota simplesmente o ignorou e aumentou a velocidade de seus passos até sair pela porta da frente da casa sem dar maiores satisfações.

Dilin correu para fora, longe de seu lar, o furor ainda queimando dentro dela. Precisava escapar, precisava de ar. A porta da frente se fechou com força atrás dela, e o som ecoou como uma declaração de sua raiva por toda a casa.

Lá fora, o céu completamente vazio refletia a solidão da garota enquanto ela sussurrava os seus pensamentos ofegantes:

— Por que o Montague? Por que ele é que foi escolhido guardião? — A pergunta martelava em sua mente como uma enxaqueca.

Ela tinha sido treinada incansavelmente para esse papel, mas no final, a deusa Nox escolheu Mon. Não conseguia aceitar isso. Principalmente por ser dita como a mais promissora e talentosa dentre todos os candidatos.

A garota continuou correndo pelas ruas da sua vila flutuante sobre os penhascos, sem rumo definido. Seus olhos estavam embaçados pelas lágrimas de raiva e decepção. Se sentia traída, não apenas por Mon, mas também por seu próprio destino.

Enquanto corria, ela passou por outros moradores da vila, que a observaram com curiosidade. Todos sabiam que Dilin tinha sido a pupila mais promissora dentre os dois que Telmo, o líder da vila, acolheu. A jovem com o potencial mais brilhante para se tornar a guardiã, mas sem dúvidas, a menos compreensiva e mais revoltosa.

Dilin se afastou da vila e finalmente parou à beira de um penhasco que oferecia uma vista espetacular do oceano. Ela se sentou, ofegante, olhando para as águas agitadas abaixo. As lágrimas quentes rolavam pelo seu rosto enquanto ela lutava com suas emoções.

O vento soprou forte, fazendo seu cabelo branco como a neve dançar ao redor de seu rosto. Era como se a natureza também compartilhasse de sua agitação interior.

— Não é justo, não é? — perguntou a voz feminina da mulher que se aproximou sem a garota notar.

Dilin se surpreendeu, levantou-se rápida e sacou sua adaga que sempre levava consigo.

Diante do abismo, ela se preparou contra a mulher de olhos rubis e cabelos negros que aparentava ser poderosa e cheia de mistérios.

— Calma, eu não sou sua inimiga — disse Lashir. — Na verdade, eu sou sua aliada.

— Você não é daqui. O que você quer? — perguntou a garotinha direta, sem baixar a lâmina.

— Eu vim ajudar esse mundo. Uma guerra inevitável se aproxima, e eu preciso avisa-los.

— Está falando com a pessoa errada. Deveria procurar alguém da polícia ou então o guardião — respondeu em tom seco, a garota de rosto delicado revel.

— Eu tentei. Ontem, em uma taverna no centro da cidade. — Lashir coçou a bochecha de forma a tapar parte de sua boca. — Mas o guardião estava muito ocupado, bebendo e se vangloriando de sua conquista. Ele não quis ouvir, mesmo sendo o primeiro dia dele na atribuição. Talvez o seu povo devesse cogitar uma troca, não?

Dilin parou pensativa, guardando sua adaga, desviou os olhos por um segundo antes de retorna-los para a mulher e responder prática:

— Eu não me importo.

Lashir sorriu de maneira misteriosa e deu um passo adiante, mantendo-se fixa aos olhos da garota.

— Você diz isso agora, mas tenho uma proposta que pode lhe interessar. Sei que você tem... aspirações, Dilin. Eu posso realizar seus desejos, torná-la a guardiã como você sempre quis ser.

Os olhos de Dilin se estreitaram de desconfiança.

— Eu não sei do que...

— Apenas uma guardiã como eu, reconheceria o seu potencial.

— Você é uma guardiã? — a criança levantou a curiosidade.

Lashir mostrou a palma da sua mão com uma luz constante que emanava dela. Dilin ficou impressionada.

— Não enclausure o seu sonho — disse a mulher com um enfeitiçar em seus olhos vermelhos.

— Como você pode fazer isso? — Dilin finalmente se interessou, impregnando seus sonhos e erguendo seus objetivos.

Lashir sorriu de maneira tranquilizadora, escondendo suas verdadeiras intenções.

                                               ***                                                       

— Me diga onde a Garta está! — ordenou ousado, o homem condutor da máquina voadora que permanecia aos arredores da grande ilha fortaleza de ponta cabeça.

O velho gritou para Dilin, do outro lado do convés da embarcação, em tom atormentado.

— Eu já disse, eu não faço a menor ideia — rebateu Dilin, séria.

— Já chega dessas mentiras! Eu sei muito bem o que fez com o seu povo. Você não é nada confiável. É alguém que faz tudo por poder. — O homem desvestia o seu paletó enquanto continuava com suas palavras de forma serenamente agressivas. Jogou a peça de roupa para longe e focou mais uma vez a pequena mulher: — É muito parecida com alguém que eu conheci. E eu odeio isso.

— Você não sabe nada sobre mim — refutou Dilin com um olhar odioso.

O homem levou a mão esquerda ao bolso da calça e retornou com um pequeno objeto maleável de metal que cintilava alguns pontos de luz. Ele o ajeitou sobre o punho e evidenciou que se tratava de algum tipo de munhequeira.

Fechou o punho com força, abraçando o acessório com seus dedos e, em seguida, mirou seus olhos para Dilin:

— Vocês já não são tão especiais como acham.

O homem avançou em corrida, pronto para reiniciar o combate com a garota.

Dilin não recuou, se preparou para o que viria, tendo atenção naquele acessório estranho do qual o homem parecia confiar sua vitória.

Ele socou com a direita, a guardiã de Nox desviou sem problemas com um passo para trás. O homem então trouxe o punho esquerdo, aquele com a munhequeira, no que parecia mais um simples soco que passaria no vazio após Dilin se esquivar novamente, mas algo inesperado aconteceu.

O homem, repentinamente, ganhou um passo à frente, como se tivesse simplesmente se deslocado no espaço. Foram poucos centímetros, mas o suficiente para que o seu golpe ficasse ao alcance do rosto da mulher surpreendida.

Dilin se espantou. Estava fora de perigo e, no momento seguinte, sem nem mesmo piscar os olhos, o imigo estava prestes a lhe golpear forte no rosto.

Não conseguiu impedir. Um soco forte, em cheio, na maçã direita do rosto da pequena mulher. Seu corpo girou no próprio eixo e, quando estava prestes a cair desajeitada no chão do convés, ela esticou uma das mãos em direção ao piso e se concentrou em evitar a queda. Seu corpo girou no sentido contrário de uma forma nada natural, efeito da sua magia empregada que, mesmo enfraquecida, suprimiu o tombo evidente.

Ela recuperou o equilíbrio. Parou de pé, mas sem tempo de pensar no que havia acontecido. O homem avançou novamente.

A guardiã, sem entender como evitar o golpe de seu inimigo, tentou se antecipar ao ataque. Levou seus braços para trás em direção ao chão e usou de sua magia debilitada. Seu corpo leve ganhou um impulso absurdo, para frente e para o alto. Em direção ao inimigo, com uma aceleração inumana, ela preparou um chute frontal certeiro no rosto dele.

O homem viu as botas de cano alto, feitas de couro resistente adornadas por fivelas de metal polido, se aproximarem do seu rosto na velocidade e potência de uma bala de canhão. Fechou a mão se concentrando na munhequeira, em seguida, se viu alguns centímetros deslocado para o lado.

O chute furioso da guardiã passou rapando pela orelha do velho, mas não acertou nada. Ao invés disso, o homem se aproveitou da situação e agarrou a segunda perna de Dilin que estava no ar.

Ela não tinha mais apoio algum, e ele é quem tinha o controle. O velho girou a garota leve e a puxou para o chão de uma forma abrupta, fazendo com que sua nuca sob os cabelos albino atingisse em cheio o piso do convés violentamente.

— Você desistiu de seu mundo! Entregou ele por puro poder! — provocou o velho.

Dilin resistiu a dor forte, esticou seus braços na direção do homem enquanto ainda tinha sua perna para o alto agarrada por ele. Se concentrou na sua magia emitindo um pulso gravitacional contra o rosto do velho.

— Eu sei o que fiz! — respondeu ela em fúria.

O acertou.

O inimigo sentiu o golpe, sua cabeça balançou e seu nariz escorreu sangue quente, mas não foi forte o suficiente. A magia de Dilin realmente estava enfraquecida, se estivesse em uma situação normal, provavelmente teria decapitado o velho, mas definitivamente não foi o que aconteceu.

— Você merece acabar fraca assim! — gritou o homem.

Ele agarrou o braço da jovem com a mão direita e, com o punho esquerdo, acertou mais um soco em cheio no rosto angelical já dolorido.

Dilin sentiu o impacto perverso, viu estrelas que nunca existiram brilhar frente aos seus olhos, mas resistiu. Se concentrou na sua magia e acertou mais um pulso gravitacional no homem.

Dessa vez, o velho mal se importou, a magia da guardiã parecia ainda mais enfraquecida. Ele aproveitou a brecha para dar mais impulso ao seu punho revestido pela munhequeira, socou mais uma vez.

O rosto de Dilin já estava longe de parecer ao de uma boneca. Sangue escorria pelo seu nariz e lábios inchados, enquanto se esforçava para manter os belos olhos abertos.

“Eu sei o que fiz. Eu não consigo esquecer. Mas eu vou conviver com isso, pois não é só a minha culpa que eu carrego.” Pensou Dilin, se lembrando do dia em que se tornou guardiã.

Se recusou a desistir e, em um último suspiro, se concentrou ao máximo para reunir todo o seu poder mágico na palma de suas mãos, sentiu o calor corroer as células de sua pele e os vasos sanguíneos de seus braços pulsarem poder e, então, mais um soco lhe atingiu em cheio.

Dilin apagou. Acordou logo em seguida devido a dor vinda de mais um golpe do velho em fúria. O homem estava prestes a acabar com aquilo, mas uma voz robusta masculina chamou sua atenção:

— Pare com isso imediatamente, Edgar.

O dono das palavras era um homem que aparentava ter em torno de trinta anos de idade e que veio do nada. Ele parecia ter simplesmente surgido no convés da embarcação da máquina voadora.

Edgar, o velho com a munhequeira encharcada de sangue, respirou fundo sua ira e largou a garota quase desacordada ao chão.

— Eu acho que me empolguei — disse ele ofegante lembrando-se da época de que era chamado de Gerente.

— Seu velho idiota, eu lhe dou um mínimo de poder, e olha o que você faz. Que estardalhaço desnecessário — disse em tom de bronca, o homem que parecia liderar.

Ele vestia uma simples camisa preta, com os primeiros botões próximo ao pescoço despregados, e tinha o cabelo escuro desarrumado como a noite caótica.

Enquanto ele observava ao longe a guardiã de Nox no chão ensanguentado tentando se manter acordada, algo ganhou o céu sobre a máquina voadora e pousou no convés entre eles.

Era mais um tripulante. Mais novo do que o velho Edgar e o líder de cabelo desarrumado, o rapaz jovem adulto se destacava por algo que levava às costas, um objeto metálico como uma mochila que se prendia aos ombros largo dele e cintilava uma luz na parte inferior. Em seus braços, ele carregava um corpo feminino quase completamente desacordado.

— Finalmente — disse o líder sério, com algum alívio ao ver aquela mulher trazida pelo rapaz. — Você se acostumou bem com a propulsão mágica dessa roupa. Fez um ótimo trabalho, Hikki.

O rapaz deixou a garota desacorda sentada sobre as caixas de ferramentas do convés. A colocou delicada e esperou pelo homem que liderava.

O líder se aproximou da mulher desacordada e gentilmente passou sua mão pelo rosto dela como uma caricia contemplando sua visão.

Ele tirou o cabelo loiro do rosto da bela mulher e sussurrou ao ver seus olhos claros se abrirem confusos:

— Eu prometi que não iria te deixar, Celina.

O homem sorriu leve ao ser reconhecido pela mulher ainda um pouco vagarosa. Celina o respondeu com o arregalar de seus olhos, surpresos pela visão do homem que conhecia tão bem e que estava tão mudado.

Ela sussurrou confirmando o que pensava à medida que ganhava entusiasmo nos olhos e um sorriso nos lábios:

— Aldren, é você mesmo.



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