Volume 2

Capítulo 81: Irreconhecível

— Você está bem? Eu nem acredito que é você mesmo — disse Celina, empolgada frente ao amigo de infância. — Você está mais velho! Então realmente passaram-se nove anos. Isso não importa. Como você está? O que aconteceu nesse tempo?

— Eu estou bem, Celina. Eu vou contar tudo, mas não agora — respondeu Aldren com um sorriso leve no rosto. — Primeiro, vamos te levar para fortaleza Última em Finn, lá é seguro.

— Certo. Mas o Colth e o Koza, eles...

Sem avisos, Aldren abraçou a guardiã. A envolveu em seus braços com um afeto morno e que jamais havia demonstrado. Celina se surpreendeu com a quela reação dele, mas não desgostou, na verdade, até se sentiu aliviada e segura. Finalmente ela havia encontrado quem tanto procurou, mesmo assim, não parecia completamente satisfeita.

— Não se preocupe, Celina. Você está segura — disse Aldren passando uma confiança além da que era conhecida da guardiã de Tera. Em seguida, ele se virou para o homem mais velho e ordenou: — Edgar, leve a Celina em segurança para Última.

O velho acenou positivamente com a cabeça e esticou a mão para a mulher que ainda tentava entender o que estava acontecendo em meio ao convés da embarcação voadora.

— Por favor, senhorita, venha comigo — solicitou Edgar, calmo e paciente.

Celina olhou para Aldren, desfazendo o abraço, como se perguntasse sobre a credibilidade do mais velho. Aldren sinalizou com os olhos sua confiança para ela. Mesmo assim, a guardiã hesitou:

— Mas, e os outros, eles...

— Vá na frente, Celina — interrompeu Aldren, deixou evidente sua tranquilidade e controle sobre a situação. — Deixe o resto comigo. Eu vou dar um jeito em tudo.

Aldren levantou seu braço direito, mostrando um acessório que cobria a palma de sua mão e era preso ao pulso como uma joia das mais excêntricas.

O acessório emitiu um brilho e, diante deles, no meio do convés, uma porta aberta surgiu. Uma passagem inteiramente constituída de magia.

— Um portal — sussurrou Celina, impressionada.

O portal mágico cintilou com intensidade, suas bordas vibrando em uma variedade de cores deslumbrantes. Era como um espelho embaçado semitransparente que exibia formas distorcidas do outro lado, quase indistinguíveis.

— Vamos — disse Edgar caminhando até a passagem mágica e esperando pela mulher. — Esse mundo não é seguro para você.

Celina olhou uma última vez para Aldren.

— Vá, você precisa descansar, eu estarei logo atrás — afirmou ele cordial e sereno. — O portal leva para o mundo de Finn, na fortaleza última, não se preocupe.

— Tudo bem — a guardiã de Tera concordou.

Ela caminhou em direção ao portal e, à medida que se aproximava, seus passos ficavam mais lentos. Mas não havia o que temer, com o Aldren, ela estava segura. Tomou coragem e avançou até atravessar a passagem mágica por completa. Celina já não estava mais naquele mundo.

Celina emergiu do portal para um lugar desconhecido, sentia que não estava mais em Tera. Ela encontrou-se em uma grande câmara circular, as paredes de pedra cinza subiam majestosamente ao seu redor, decoradas com intrincadas inscrições misteriosas e runas luminosas que pareciam pulsar uma energia antiga.

Notou que a câmara possuía diversos objetos por toda a parede que a circulava. Se impressionou com a grande quantidade de painéis, alavancas e botões. Parecia um grande laboratório de engenharia avançada muito bem organizado, mas com uma aura mágica notável no ar. Como se estivesse em um mundo onde a magia e a tecnologia se fundissem de maneira única.

Ela não estava sozinha. Celina foi recebida por um grupo de pessoas que a observava com uma mistura de curiosidade e respeito. Homens e mulheres estavam vestidos com roupas um tanto exóticas em tons de cinza que pareciam combinar com o ambiente. Usavam túnicas que evocavam o aspecto da magia, mas com um toque de modernidade, como aventais de cientistas.

Celina sentiu que estava em um lugar onde a ciência e a magia se entrelaçavam de maneira única.

— Bem-vinda a Última, guardiã de Tera — disse um homem destacado do grupo, ele era mais velho e demonstrava um sorriso caloroso, mas seus olhos escondiam uma sombra de preocupação.

— Obrigada — Celina respondeu a gentileza.

— Talvez você não se lembre de mim, meu nome é Caio. Eu era um emissário em...

— Eu me lembro, foi você que me atacou no exame do ministério da Defesa — Celina foi sincera.

— Nossa. Você lembra. — O homem foi pego de surpresa, ficou sem graça e disfarçou: — Isso foi... a muito tempo. O passado, é só o passado. É o que falamos por...

— O que é esse lugar? — perguntou ela, interrompendo-o.

— Ah, esse lugar? — Caio parecia orgulhoso ao ver a curiosidade radiando dos olhos de Celina. — É baseado em magia de Finn. Chamamos de portal zero. É como o ponto de partida para uma viagem.

— Isso é impressionante — comentou a guardiã observando os maquinários e equipamentos interligados ao portal que continuava operante ao centro da câmara. — E isso leva a qualquer lugar?

Caio se empolgou antes de dar a sua resposta, abriu um sorriso e piscou os olhos alegremente:

— Construímos de acordo com os escritos deixados na biblioteca Última, e graças a isso, temos a possibilidade de conectar o portal a vários lugares pré-estabelecidos. Como coordenadas que levam ao local exato de destino.

— Espera. Você construiu isso?

— Sim — respondeu ele, orgulhoso melhorando a sua postura. — A parte mais difícil, na verdade, foi decifrar os escritos da biblioteca. Depois, foi só seguir as instruções nelas. Mas tudo isso só foi possível graças a liderança do Aldren.

— Liderança?

— Sim. O Aldren é que comandou todo o progresso da magia aqui em Última. É claro que tivemos sorte, por ter ao nosso lado a...

— Você já falou muito, Caio — disse Edgar, interrompendo a conversa ao passar pelo portal, e surgir naquele mundo.

— Ah, eu não falei nada que...

— Já chega — o velho bem vestido foi firme. — Se concentre em manter o portal aberto.

— Sim, claro — Caio reduziu a sua empolgação a um simples cumprimento de ordem.

Ele se despediu da Celina com apenas um olhar e se voltou a um dos diversos equipamentos, se misturando ao restante do pessoal que fez o mesmo.

Edgar caminhou até Celina e continuou com as suas ordens:

—  Vamos. Eu vou lhe mostrar o quarto onde ficará hospedada.

— Mas o Aldren, ele...

— Ele já vem, não se preocupe — respondeu burocrático.

— Tá, tudo bem — concordou Celina estranhando minimamente.

Edgar deu meia volta e caminhou em direção a única porta da câmara. A guardiã seguiu o homem, no entanto, algo nela percebeu que nem tudo estava certo naquele lugar.

O homem saiu daquela grande sala e Celina olhou ao redor antes de fazer o mesmo. Percebeu os olhares curiosos das pessoas que ficaram para trás e sussurravam entre si em voz baixa observando-a.

— Por favor, vamos — apressou Edgar.

— Ah, sim, claro — Celina não se opôs.

Ao passarem pela porta, chegaram a um belo corredor espaçoso e bem iluminado. Luxuoso, do teto com belos lustres, ao piso com um belo tapete vermelho que percorria toda a sua extensão amortecendo os passos de ambos, o lugar era impecável. Celina sentiu a sensação de que já estivera ali, naquele lugar.

Ela continuou sendo conduzida pelo homem sério enquanto se segurava para não fazer perguntas. O corredor possuía grandes janelas por toda a parede da direita, onde era possível notar a noite do lado de fora. Mas algo a intrigava, uma iluminação incomum que parecia vir do sentido contrário ao natural. O próprio céu noturno estava sendo iluminado por uma forte fonte de luz que vinha de baixo.

A guardiã não resistiu a essa curiosidade, se aproximou da janela e se esticou para colocar os seus olhos sobre o parapeito alto. Viu algo incrível.

A fortaleza Última, onde estava, era no alto da montanha e permitia observar todo o vale entre suaves colinas e florestas abundantes. Sem dúvidas ela já havia estado ali e observado aquela mesma paisagem por aquela mesma janela, não esqueceria tamanha beleza vindo daquele cenário, mas havia algo diferente.

Uma característica da paisagem que era impossível de passar desapercebida quando comparada com sua memória de quase uma década atrás, ou seriam messes?

Não importa. O vale entre as colinas estava tomado de construções. Pequenos prédios, ruas e até praças. Uma cidade completa que era completamente iluminada pelos postes de luz azuladas contornando as vias, estradas, e destacando as janelas de cada casa e construção naquela noite que deveria ser de uma completa escuridão.

Uma cidade mais iluminada do que a cidade Capital de Albores e tão desenvolvida quanto.

“É possível levantar uma cidade dessas em nove anos? Foi você que fez isso, Aldren?” Se perguntou Celina.

Após se impressionar com a paisagem quase irreconhecível, ela voltou a acompanhar o homem. Tentou algumas perguntas, mas Edgar se recusou a responder todas elas apenas se calando.

— Por aqui — O homem abriu uma das tantas portas do corredor para evidenciar uma escada de pedra que descia além daquele piso.

As escadas se estendiam de uma forma um tanto claustrofóbica. Mas Celina não temeu nem por um segundo. Aquele lugar era de completa confiança de Aldren, era o lar dele, não havia com o que se preocupar.

Ao terminarem de descer as escadas, estavam prestes a passar por um arco de metal que contornava as paredes para então, entrarem no corredor de pedra bem menos luxuoso e espaçoso que o anterior.

Assim que Celina atravessou o arco, adentrando ao corredor sem janelas, ela teve uma sensação estranha. Sentiu um frio na barriga incompreensivo.

— Não se preocupe. É para sua segurança — afirmou Edgar ao ultrapassá-la no corredor e abrir uma porta à frente.

O velho esperou por ela, indicando que aquele era o tal quarto de hóspede.

— Segurança? — perguntou Celina, parando em frente a porta no meio do corredor extenso.

— Nessa ala da fortaleza, há um grande inibidor de magia. Não podemos correr o risco de você sofrer um ataque. Isso vai garantir que ninguém vai se utilizar de magia para tentar te machucar.

— Isso é mesmo necessário?

— Isso foi solicitado pelo Aldren — afirmou Edgar.

Celina hesitou por um segundo. Mas de fato, Aldren era superprotetor com ela. E isso até a fez se sentir bem, como nos velhos tempos. Acenou positivamente com a cabeça se desapegando do receio e adentrou ao quarto o observando.

O lugar era aconchegante, havia uma poltrona frente a uma bela lareira acesa, um grande guarda roupas, uma escrivaninha, e uma luxuosa cama sobre um carpete grosso. Mas o que mais chamava atenção, era a enorme estante de livros que consumia toda a parede dos fundos do quarto. Além disso, não havia janelas, e toda a iluminação vinha do lustre preso ao teto e do fogo da lareira crepitante que também esquentava o ambiente.

Assim que Celina tomou conhecimento do quarto, a porta às suas costas se fechou. O barulho da tranca se movendo, veio logo em seguida.

A guardiã se virou rápida e encontrou a porta trancada com uma pequena abertura engradeada por onde conseguia observar o corredor do lado de fora.

— O que está fazendo? — perguntou ela, ao tentar abrir a porta sem sucesso.

Edgar mostrou seus olhos na abertura engradeada da porta e resumiu:

— Ordens do Aldren. Não se preocupe, aqui você está segura. Se ficar entediada, há vários livros que o Aldren mesmo escolheu para você. Ele disse que você gosta de ler.

— O quê?! O que isso significa?

Edgar já havia dado as costas e caminhado pelo corredor para longe dali.

— Espera! Deixe-me falar com o Aldren! — Celina gritou com toda a sua força, mas foi completamente ignorada. — Espera!!!

                                               ***

— Edgar — Aldren chamou a atenção do homem antes que ele adentrasse ao portal. — Fale apenas o necessário com ela, e a deixe confortável no quarto de hóspedes.

— Como quiser — concordou o homem e, então, desapareceu ao atravessar a passagem mágica.

O silêncio se fez por um segundo, com apenas o barulho do vento soprando sobre a embarcação voadora. O segundo rapaz, o mais jovem, se aproximou de Aldren e iniciou com incerteza:

— Podemos acabar por aqui. Não temos motivos para usar o...

— Hikki — interrompeu Aldren com firmeza. — Você quer encontrar a sua irmã, não?

— É claro, Aldren. Você sabe que eu...

— Então apenas siga as ordens — respondeu firme.

— Mas isso é desnecessário. A Garta não está aqui. E além do mais, o Colth está lá na ilha, ele...

— Já chega! — interrompeu Aldren novamente, dessa vez mais intenso. — Não podemos nos dar ao luxo de deixar qualquer pessoa que possa vir a ser um problema no futuro, para trás.

— Problema? Aldren, você está indo longe demais.

— Eu já entendi. — O líder encarou o rapaz mais novo. — Se não quer sujar as mãos, me passe para cá. Eu mesmo faço. Enquanto isso, leve a guardiã de Nox para as celas da Fortaleza Última.

Hikki hesitou.

— Se não é capaz nem disso, então esqueça a sua irmã — proferiu sério e neutro, Aldren.

O rapaz baixou a cabeça resistente, mas concordou após refletir por alguns segundos sobre o motivo de estar ali. Entregou á Aldren um pequeno artefato, uma caixinha de metal com uma abertura que revelava uma chave encaixada ao mecanismo.

Hikki seguiu calado, cabisbaixo, em direção a pequena mulher desacordada ao canto do convés e, assim que chegou perto de onde Dilin estava, se surpreendeu:

— Onde ela foi?

Suas palavras chamaram a atenção de Aldren que, em conjunto com ele, começaram a procurar pela guardiã de Nox. Miraram seus olhos em todas as direções do convés da embarcação e finalmente encontraram a mulher.

Dilin rastejava pelo chão com o restante de suas forças. Deixou um rastro de sangue oscilante pelo convés na direção das extremidades da embarcação até alcançar o parapeito que delimitava o fim da estrutura.

— Não a deixe saltar! — ordenou Aldren, ao mais jovem.

Hikki até iniciou sua corrida pelo convés, mas não teve tempo de impedir os planos de Dilin. A guardiã passou por de baixo do parapeito do convés e se jogou da embarcação sem pensar duas vezes. Seu corpo foi em queda livre na direção do céu.

— Ah, merda! — gritou Aldren irritado. Em seguida, esticou seu braço com o acessório sobre a palma de sua mão em direção ao céu e se concentrou descontando sua raiva: — Que se foda, não precisamos dela.

No céu, ao lado da embarcação, onde Aldren apontou sua concentração, um portal surgiu cintilante. No momento seguinte, uma criatura apareceu vinda da passagem mágica.

A criatura era grotesca, sua aparência lembrava a de um morcego, mas o seu tamanho era o mesmo a de uma pessoa. Ela esticou as asas mostrando toda a sua envergadura para tomar voo no céu.

Se não bastasse, mais uma criatura semelhante surgiu do portal, e então mais outra. Em segundos, o céu começou a ser tomado por um bando de enormes morcegos do tamanho de pessoas adultas.

Enquanto isso, na embarcação, Aldren ainda não estava satisfeito. Ele caminhou até os controles da máquina voadora e se preparou para puxar uma das alavancas, mas antes disso, olhou para o artefato que Hikki havia lhe entregado e pensou uma última vez sobre.

— O passado, é só passado — sussurrou.

— Espera, Aldren! — implorou Hikki, tentando impedir.

O líder segurou a pequena chave na abertura da caixinha de metal e a girou decidido, ignorando o rapaz. No momento seguinte, uma explosão ganhou o céu perto dali.

No centro da ilha flutuante, uma nuvem de fogo e fumaça se destacou trazendo o barulho da explosão logo em seguida, como uma trovoada percorrendo o céu.

— Caramba... — sussurrou Hikki, boquiaberto e impressionado com seus olhos refletindo a ilha no céu. — O que você fez?

— Só o necessário. Vamos sair daqui.

Aldren observou uma última vez o cenário caótico. Criaturas sombrias com enormes asas que sobrevoavam a ilha, enquanto ela era consumida pela fumaça proveniente da explosão violenta e perdia altitude em queda. Ele finalmente puxou a alavanca no centro de controles de sua embarcação.

A máquina voadora ganhou contornos irradiando uma luz poderosa que ficava cada vez mais intensa com os segundos que se passavam e, no auge de sua irradiância, a embarcação desapareceu do céu, levando consigo Aldren e Hikki.

Haviam sido deslocados para outro mundo, deixando para trás a ilha e seu belo castelo despencando do céu.



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