Volume 2

Capítulo 89: Reflexo Distorcido

— Que lugar é esse? — se perguntou Colth, adentrando ainda mais fundo à floresta densa. 

Em direção ao sul, ele seguia em busca das últimas pistas que obteve com a velha Lúcia. Sair de Albores e encontrar a floresta Oeste não foi difícil, mas se locomover por ela era o mesmo que fechar os olhos e caminhar sem rumo. 

Para onde o rapaz avistava havia uma árvore com um tronco largo impedindo de ver além. Em meio a vegetação ele caminhava tomando o cuidado de não tropeçar nas grandes raízes que permeavam todo o solo rico.

“Você não faz a menor ideia de onde está indo, não é?” Perguntou a voz provocante em sua mente. 

— Tem que estar por aqui — sussurrou ele em resposta para si mesmo. 

Caminhou olhando para todos os lados, sem nem ao menos saber de onde viera. 

“Você é patético. Seu plano suicida nem vai chegar a ser colocado em prática, por que você está completamente perdido.” 

— Tenho a impressão de já ter visto essa árvore — comentou Colth pensativo. — Você lembra desse lugar, Lashir? 

“O quão patético você ainda consegue ser?” 

— O plano vai funcionar, não precisa ter medo. 

“Medo? Eu? Ah, até parece. A única coisa que me incomoda, é você tentando se tornar o herói que nunca vai ser, e me levando junto nessa merda de...” 

— Achei! — disse Colth, empolgado interrompendo a voz em sua cabeça. 

Avistou uma bela casa em meio às grandes árvores. Sobre uma fundação de pedra, a simpática residência era completamente construída em madeira, robusta e natural, mesclando-se harmoniosamente com o ambiente exuberante da floresta. 

A casa apresentava um telhado inclinado coberto por tábuas de madeira envelhecida, evidenciando a passagem do tempo. A varanda, um convite à contemplação, circundava a casa, proporcionando uma visão panorâmica da densa vegetação da floresta temperada. Flores silvestres, cuidadosamente dispostas em vasos e jardineiras, acrescentavam cores vivas ao ambiente. 

O ambiente ao redor da casa emanava uma sensação acolhedora, como se a própria floresta abraçasse a morada. Uma fumaça que fugia pela pequena chaminé no alto da construção evidenciava a ocupação do lugar. 

— Que lugar bonito — suspirou Colth, invejando quem tinha o privilégio de viver ali.

Ele se aproximou a passos lentos, ainda encantado pela visão. A porta da frente da casa, adornada com detalhes em madeira, rangeu suavemente ao ser aberta por completo, revelando um homem despreocupado. O sujeito carregava uma caneca na mão direita, da qual emanava o aroma tentador de café recém-preparado, e um livro na mão esquerda, para o qual não tirava os olhos. 

Absorto em sua leitura, o homem não havia percebido a presença de Colth. Ele caminhou pela varanda, preparando-se para se sentar em uma velha cadeira de balanço disposta entre alguns vasos de flores bem cuidadas, cujas cores vibrantes contrastavam com o verde monótono da vegetação ao redor.

Colth continuou se aproximando até se evidenciar: 

— Com licença...

O homem imediatamente levou sua atenção a ele, fechando o rosto ao perceber a companhia, e vociferou em tom defensivo: 

— O que você quer?! Está perdido?

— Não — respondeu Colth, levantando as mãos e mostrando que não representava ameaça. — Estou procurando por Hui, filho de Hueh.

O homem rebateu de imediato:

— Não conheço ninguém com esses nomes. Saia daqui.

"É ele. Está um pouco mais velho, mas tenho certeza", confirmou Lashir na mente de Colth.

— Hui, eu preciso realmente falar com você — insistiu o rapaz.

— Como você... — O homem foi surpreendido. — Não importa. Quem é você?

— Meu nome é Colth. Sou o guardião de Anima — afirmou Colth, destacando o título com seriedade.

O homem na varanda pasmou mais uma vez:

— Nem fodendo.

O olhar do homem oscilou entre desconfiança e perplexidade. Colth podia sentir a tensão no ar enquanto Hui, em roupas simples e uma barba por fazer, processava a revelação.

— Eu estou aqui para falar sobre Bernard — resumiu Colth.

— Você está sozinho? — perguntou Hui. Lançou um olhar inquieto ao redor, como se estivesse constantemente alerta para alguma ameaça invisível na floresta circundante.

— Sim — respondeu o rapaz ignorando a voz de Lashir em sua cabeça.

— Tá, tudo bem — Hui deixou sua caneca sobre o seu livro de capa dura na sua cadeira. Retornou de onde havia saído. — Espere, só um segundo.

Ele adentrou minimamente apressado na sua casa e encostou a porta da entrada deixando do lado de fora apenas Colth com a sua companhia peculiar:

“Hui continua estranho, como sempre.” Comentou Lashir.

— Eu espero que isso dê certo — sussurrou Colth.

“Aff. Você é realmente patético. Estava completamente certo de que seu plano funcionaria minutos atrás, e agora está em dúvida. Deveria confiar mais em si mesmo.”

— Está me dando conselhos, guardiã de Rubrum?

“Ah! Até parece. Estou tentando manter você vivo. Ainda é o meu corpo, esqueceu?”

— Foi o mesmo que você me falou quando me ensinou a fazer os selos — rebateu ele com bom humor.

Lashir elevou o tom, mais sério e intenso:

“Não pense que fiz isso por consideração. Na primeira oportunidade, vou ganhar o controle do seu corpo e te expulsar dele. Vou fazer você um servo que vai se arrepender de ter sobrevivido a explosão de Lux.”

Colth se segurou com o fechar dos punhos e o baixar da cabeça sem poder calar as palavras que percorriam o interior de sua mente. A mulher continuou:

“Eu matei a sua irmã e a filha dela, além de aniquilar cidades inteiras, incluindo a sua. Não somos amigos, não se esqueça disso.”

O rapaz segurou firme o seu próprio punho, consumido por um sentimento único, mas então a porta da casa se abriu novamente quebrando a tensão:

— Por favor, Colth, entre. Que tal um café? — Hui o convidou com uma risada nitidamente desconfortável no rosto barbado e uma animação completamente duvidosa.

Colth respirou fundo, deixou de lado qualquer resquício da conversa do seu próprio interior, levantou a cabeça escondendo um pouco do seu sentimento e mostrou um sorriso simpático em resposta à Hui:

— Eu vou aceitar o café.

O convidado adentrou a casa simples e foi imediatamente envolvido pelo calor acolhedor que emanava do interior e contrastava com a frieza da floresta lá fora. Hui, ainda um tanto desconfiado, fechou cuidadosamente a porta atrás de Colth, mantendo-se atento ao entorno. 

Dentro da casa, Colth observou a decoração simples, mas aconchegante. Móveis de madeira rústica, tapetes coloridos e algumas peças de artesanato adornavam o ambiente. Um objeto em particular lhe chamou atenção, causando-lhe familiaridade, um espelho grande de corpo inteiro, semicoberto por um pano acinzentado sobre a peça.

Hui limpou a garganta para atrair a atenção de Colth, indicando uma cadeira na mesa da cozinha, onde duas xícaras fumegantes aguardavam.

Colth se desfez do espelho e seguiu o homem. Aproveitou o momento para examinar Hui mais detalhadamente. O anfitrião tinha cabelos escuros completamente bagunçados que, em conjunto com sua barba por fazer, dava-lhe uma aparência descontraída. Os olhos, no entanto, revelavam uma certa inquietude e desconfiança.

Ambos se sentaram à mesa, um de frente para o outro, enquanto a luz do sol se esforçava para atravessar as copas das árvores e a grande janela para trazer uma luz morna ao cômodo em silêncio.

Hui tomou um gole de seu café e finalmente, ao colocar a xícara de volta sobre a mesa de madeira maciça, iniciou:

— Então, o que você quer comigo?

Colth ponderou por um momento, escolhendo suas palavras com cautela:

— Como eu disse. Eu estou aqui em busca de respostas sobre Bernard.

Hui pegou a sua xícara novamente, parecia inquieto, indagou antes de mais um gole:

— O que você quer saber?

— Quero saber como matá-lo.

Hui cessou o gole com um mínimo arregalar de olhos. Dispersou a evidente tensão e fingiu indiferença. Voltou a tomar o café enquanto Colth aguardava uma resposta.

“Ué? Você mudou de ideia?” Perguntou Lashir um tanto impactada, na mente de Colth.

— Como matá-lo? — repetiu Hui. — Como qualquer um. Cortando a garganta, apunhalando-o no coração, eu sei lá.

Colth manteve o olhar fixo em Hui, discernindo a ambivalência em sua resposta. O rapaz não conseguia ignorar a estranha aura de desconexão que emanava do homem à sua frente. Hui, por sua vez, parecia oscilar entre a paranoia e a tentativa de parecer despreocupado.

— Você sabe do que eu estou falando. Aço algum vai penetrar a pele dele, Hui. É impossível acabar com Bernard usando isso, enquanto ele tiver a magia de Calis em seu poder, qualquer lâmina ou arma vai se partir ao tocá-lo. Quero algo que o acerte de dentro para fora. Eu sei que você ainda tem resquícios da magia de Anima e que já adentrou à mente de Bernard, só preciso saber como fez isso.

— Pretende entrar na mente de Bernard? Você não duraria um minuto lá dentro.

— Você durou.

— Eu tinha a confiança dele! — Hui se levantou da cadeira de maneira brusca. Rebateu irritado como se tivesse sido insultado. — Eu não estava tentando prejudicá-lo, muito menos matá-lo. 

— Você não precisa sujar as mãos, Hui. Só precisa me dizer como fazer. 

— Eu não vou trair o Bernard, se é o que está pensando... 

— Ele te deixou para trás! — Colth se levantou da cadeira em conjunto com o aumentar do tom de voz. 

Um segundo de silêncio se fez no ambiente tenso. 

— Como sabe disso? — perguntou Hui, com os olhos efusivos sobre Colth. 

— Se me ajudar... 

— Como sabe disso?! 

O homem vociferou como um animal. 

— Eu sei de tudo o que aconteceu, Hui — disse Colth, amenizando o tom. — Lashir, Índigo, Dilin, Mon, não há volta. 

— O que quer dizer? — perguntou aflito. 

— Quer dizer que Bernard é o próximo. 

Colth deixou claro cada palavra, olhando fixamente para os olhos de Hui e erguendo o queixo como se o desafiasse. 

Hui se sentiu impactado, pensativo por um segundo, mas logo em seguida deu um passo em direção a sala: 

— Vai sonhando. 

O homem caminhou até o espelho na sala e puxou o tecido acinzentado que o cobria para revelar a peça completamente. 

A superfície do espelho emitiu um brilho e, onde deveria estar o reflexo da sala e de Colth na entrada da cozinha, havia uma passagem para um lugar totalmente diferente, com uma dúzia de homens armados esperando prontos para agir. 

— Ah, então é assim — sussurrou Colth, elucidando suas dúvidas. 

Não era um simples espelho, era uma passagem. Os homens avançaram, quase como em uma marcha, e adentraram a sala da casa aconchegante. 

“É, definitivamente, não há dúvidas. Esse é o portal. Bom trabalho fazendo o doente do Hui revelar ele, mas agora você está com problemas.” Complementou Lashir na mente de Colth. 

Os homens armados com mosquetes nunca antes vistos por Colth o cercaram ao centro da sala e esperaram. O último que atravessou o espelho veio de encontro ao rapaz e se pronunciou esperançoso: 

— Colth? Você sobreviveu. 

O rapaz ao centro novamente foi atingido por uma sensação de familiaridade. 

— Espera, você é o... 

— Hikki — chamou o homem mais velho que acabara de passar pelo portal. — Prenda-o rápido, e vamos sair daqui. 

— Merda. Edgar — disse quase inaudível o homem ordenado. 

— Hikki? — sussurrou Colth, tendo as suas mãos seguradas pelo rapaz à sua frente. 

— Desculpa, Colth — respondendo em sussurro, Hikki acorrentou as mãos dele mostrando os seus olhos em lamento. 

Colth observou os seus pulsos algemados por um estranho artefato que possuía uma pedra de Sathsai acoplada. Era, sem dúvidas, um inibidor de magia. 

— Vamos! — O homem mais velho ordenou a todos os outros. 

Levando Colth como prisioneiro, eles passaram pelo portal e deixaram para trás a casa, a florestas e Tera. 

Edgar, o último a retornar pela passagem no espelho, disse a Hui, o único a não atravessar: 

— Seu pai estaria orgulhoso. — Ele sorriu como uma provocação e, então, passou pelo portal. 

O espelho voltou a refletir a casa quase completamente vazia, com apenas um homem solitário sendo acertado por suas decisões. 

Hui respirou fundo fechando os olhos. Se agachou, e em seguida se sentou ao chão. Levando as mãos a cabeça, ele dizia a si mesmo em repetição: 

— Tá tudo bem. Tá tudo bem. Tá tudo bem. 

Do outro lado do portal. Colth se viu em meio a uma sala pequena e escura com paredes de pedra sem janelas. O ambiente era permeado por um ar úmido e frio, criando uma atmosfera de opressão.

— Bem-vindo a sua prisão, guardião. Hehehe — disse um dos homens que também era um dos guardas. Gargalhou perverso acompanhado de seus companheiros. A luz de tochas na parede projetava sombras dançantes, acrescentando um tom sombrio ao local.

— Vem, Colth. Não liga para eles. — disse Hikki em sussurros, segurando as algemas do prisioneiro e o guiando para o corredor da masmorra.

Ao longo do corredor, as celas com grades de aço se espalhavam e indicavam o desespero, acompanhadas pelo eco de passos ressoantes as paredes de pedras, entregavam a sensação plena de confinamento.

Hikki parou diante de uma das celas, abrindo-a amplamente antes de conduzir Colth para o seu interior. As correntes nas paredes e o chão frio completavam a paisagem desoladora. Em seguida, retirou-se, trancando a cela com um som metálico, deixando o prisioneiro sozinho.

Antes de afastar-se das grades, Hikki lançou um olhar para ambos os lados do corredor, certificando-se de que não havia guardas próximos. Sussurrou para dentro da cela, buscando a atenção de Colth:

— Você sabe onde está a Garta?

Colth se aproximou das grades e respondeu no mesmo tom miúdo:

— No momento, não. Mas tenho certeza de que ela está bem. Ela é forte, esqueceu? — tranquilizou Colth.

— Ah, espero que você tenha razão — Hikki respirou fundo recolhendo sua esperança. — Droga, Colth. Você não deveria ter sido capturado. Não faz ideia do que está acontecendo aqui em Finn.

— Hikki, me diz uma coisa. A Celina está bem? Ela está aqui?

O homem do lado de fora da cela desviou o olhar, ponderando por um momento, antes de acenar levemente com a cabeça, indicando um "sim".

“Tá bom, então, você conseguiu, Colth. Mas e agora? Pretende comer pão mofado e esperar até te libertarem?” Perguntou Lashir, ácida.

Colth recebeu a resposta de Hikki, um tanto aliviado. Ouviu as palavras de Lashir ecoar pela sua cabeça como uma desafiante.

Sorriu com o canto de boca surpreendendo o homem do outro lado da cela.



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