Volume 2

Capítulo 91: Eco

Iara observava Garta, a guardiã de Finn, deitada em uma cama improvisada, completamente desacordada. À sua frente, uma fogueira crepitava no centro de uma pequena caverna esculpida entre os destroços da antiga cidade de Albores, que um dia floresceu naquele local.

— Ela é durona, não é? — perguntou Goro, puxando assunto e tentando quebrar a tensão daquela noite escura ao perceber o silencio pensativo da garota.

— É... — respondeu Iara, sem nem sequer movimentar os olhos ou entregar parte de sua atenção ao rapaz do outro lado da fogueira.

— O que foi? Qual é o problema? Está assustando os pulguentos com essa sua tristeza. — Se preocupou Goro, ainda tentando diminuir a tensão depois de tanta adrenalina fugindo dos lunáticos sem alma.

Os tais pulguentos, eram os três Lobos Sirveres que guardavam a entrada da pequena caverna onde o grupo tomou como acampamento para passar os próximos dias, enquanto Garta se recuperava dos ferimentos causados pelas garras dos lunáticos sem alma.

— Ainda acho que seria melhor a gente voltar. Você tem certeza de que Garta vai ficar bem?

— E isso importa? — perguntou Goro no alto de sua certeza esnobe. — Eu só não quero que ela acorde e venha descontar a raiva em mim por termos voltado atrás. Já imaginou o quão brava ela ficaria se descobrisse que voltamos por causa dela?

— É, acho que você tem razão.

Iara manteve os seus olhos na guardiã de Finn que dormia profundamente. O calor da fogueira contrastava com a frieza dos escombros. Ela suspirou fundo e colocou para fora o seu sentimento:

— Eu só queria ser tão incrível quanto ela. Eu me contentaria com um décimo da coragem dela.

— Ser igual a Garta? — desconfiou Goro. — Que coisa estranha.

— Por qual motivo isso seria estranho? — A garota finalmente desviou os olhos para encarar o rapaz com uma dúvida defensiva. — Não viu o que ela fez contra aqueles frenéticos? Ela não recuou, nem por um segundo.

— Nem por um segundo? — Goro perguntou sarcástico. — Nah. Mas não estou falando dela. Estou falando de você.

O rapaz apontou com o dedo indicador para a própria Iara que ergueu uma de suas sobrancelhas surpreendida.

—Eu?

— Tentar ser igual a Garta, só faria de você uma cópia, e não tem nada de corajoso em ser uma cópia. Além disso, as roupas pretas e a cara fechada da Garta não combinam com você.

— É, eu nunca achei que combinariam, mesmo — concordou Iara balançando a cabeça suavemente.

Goro abriu um pequeno sorriso de canto de boca. Em seguida, voltou os olhos para a guardiã desacordada e então retornou para Iara. Disse mais sério:

— Mas sabe, isso não significa que você não tem a sua própria coragem. Você enfrentou coisas que a maioria das pessoas nem imagina. Só porque não está sempre na linha de frente não faz de você menos corajosa. Às vezes, a coragem está em resistir, em continuar, mesmo quando parece impossível. E foi o que você fez, por todo esse tempo.

Iara ouviu as palavras de Goro cada vez mais com atenção, seus olhos mostraram uma surpresa sobre ele. O rapaz continuou:

— Na verdade, assim como o Colth, eu acho a Garta bem cabeça dura. Eles preferem sair correndo na frente de todo mundo para tentar salvar os outros ou não os deixar se machucarem, mas isso é bem imprudente, na verdade. Em um caso desses, eu preferiria recuar e pensar numa solução melhor, todo mundo sabe que esse é o melhor método de se agir. Mas sei lá, talvez eu só esteja tentando justificar minha falta de coragem naquela hora. No final, estou usando da mesma desculpa que todo mundo. Ah, eu sou péssimo em dar conselhos! — gritou Goro, com raiva de si mesmo.

 Iara mantinha-se surpresa. Não esperava pelo jeito simplório que o rapaz, repentinamente, começou a revelar os seus pensamentos enquanto se lembrava dos acontecimentos na cratera da cidade Capital horas atrás.

Goro continuou os seus dizeres de uma forma ainda mais apressada e menos pomposa do que normalmente fazia:

— Eu fiz um plano apenas pretendendo a segurança. Derrubar aquela torre e trancar os lunáticos naquele buraco sem correr risco algum. Sem que eu corresse risco algum. Por sorte, você estava lá, Iara. Você foi quem deu a flechada no lunático e salvou a Garta. — Goro ficou sério, contemplando o fogo frente a guardiã que possuía uma expressão de sofrimento no rosto, mesmo que desacordada. — Se fosse só por mim, Garta estaria morta e eu apenas seguro, sem poder dizer que o meu plano não funcionou. O seu método é o mais certo, Iara. Você não se atirou para a morte como essa idiota. Recuou, mas não para fugir ou simplesmente se proteger, como eu. Recuou para salvar a guardiã de Finn e, eu diria, salvar esse mundo de merda.

A garota sorriu timidamente, e Goro percebeu que talvez estivesse conseguindo amenizar um pouco da melancolia que a envolvia. Encorajado, ele prosseguiu:

— Sabe, quando vi você atirar daquele jeito, mesmo com aquele arco velho, pensei que era a coisa mais corajosa que já tinha visto. Você não hesitou, sabia exatamente o que queria fazer e fez, com uma precisão que até a Garta ficaria com inveja. Sem contar que foi muito incrível.

Ela desviou o olhar por um momento, como se não estivesse acostumada a receber esse tipo de elogio:

— Acha mesmo?

— Sim, sim. Foi fantástico! — Goro se levantou e reproduziu os movimentos de um arco e flecha em suas mãos através de gestos com as mãos vazias: — A garota fofinha atirou uma chuva de flecha nos lunáticos feios e sanguinários que perseguiam a guardiã de Finn encurralada. E com ajuda de seu amigo bonito e carismático...

Um dos lobos que guardava a caverna, grunhiu para o rapaz que contava a história com acenos e maneirismos, enquanto Iara se mantinha sentada sobre o chão com o abrir de um sorriso acanhado.

 — Tá certo pulguento, não vou esquecer de vocês. — Goro respondeu ao lobo, como se tivesse entendido aquele grunhido. Voltou ao seu conto: — Além do belo homem, a garota também tinha ajuda de seus destemidos lobos Sirveres...

Arf-arf, grunhiu o Sirveres, novamente interrompendo. Goro continuou:

— É, esses são vocês, seus pulguentos convencidos — disse o rapaz antes de retornar para a sua história: — E então, a garota fofinha meteu flecha nos lunáticos que caiam um a um enquanto a guardiã de Finn ainda estava em apuros. E, no momento em que ela saltou sobre o precipício do inferno, a garota estendeu sua mão e agarrou a guardiã com todas as suas forças. E foi assim que Iara, conhecida como a arqueira fofinha, salvou o dia com bravura e deu esperança ao mundo de Tera com coragem. Caramba, espera até eu contar isso para o Colth.

Iara tentou esconder o sorriso, mas não conseguiu. Ela abraçou suas próprias pernas e desviou os olhos felizes depois da animada apresentação pífia de Goro.

— Não foi bem assim que aconteceu e ninguém me chama assim — disse ela. — Além disso, foi você quem segurou a Garta para não cair na cratera.

— Ah, não estraga a história — rebateu Goro com bom humor.

Iara não segurou a risada brilhante e a transformou em uma gargalhada pura e contente. O rapaz sorriu em resposta com felicidade estampada em seu rosto e comentou voltando a se sentar frente à fogueira:

— Não foi tão ruim assim, vai?

— Foi horrível. Hahaha — Iara caiu na risada como a muito tempo não acontecia. Já havia se esquecido desse tipo de sensação. Seus olhos chegaram a lacrimejar com a verdadeira alegria. — Hahaha. Mas você tem talento. Deveria tentar o teatro.

— Sério? Eu deveria, mesmo?

— Sim. Hahaha. Deveria tentar, de verdade.

— Quer saber? Da próxima vez, eu vou tentar o mesmo que você. Posso até recuar, mas não vai ser para me manter seguro.

Iara sorriu. Acenou positivamente com a cabeça, aprovando os dizeres de Goro.

Ambos ficaram ali, conversando por horas na penumbra da caverna, compartilhando um momento estranhamente feliz em meio ao caos. A noite avançava, mas, naquele instante, o calor da fogueira e a companhia um do outro eram suficientes para afastar os piores pensamentos.

                                               ***

— Não me deixem sozinha de novo. — sussurrou Iara baixando a cabeça.

As lembranças passaram por sua cabeça como o vento frio vindo de fora e acertando os seus cabelos em meio ao salão iluminado por velas. Ela ergueu a cabeça novamente e viu Garta, resistindo aos ataques de Bernard sobre uma das mesas de madeira ao centro do lugar, mesmo após o guardião Calis lhe acertar com a magia. Em seguida, Iara olhou para o buraco na parede e viu os fundos do prédio do ministério da Defesa. Pensou ao entender:

“Como que eu caí nessa? Você não tinha apagado, não é, Goro? E também não fugiu, apenas recuou por uma solução melhor, não foi? Eu não sei se é sorte, ou se é alguma estratégia sua. Mas a Garta ainda está consciente, sem sofrer qualquer dano pela magia de destruição de Bernard. O que quer que seja, é melhor você retornar logo com uma solução.”

Iara pegou de volta o seu arco e armou uma flecha apontando em direção às costas de Bernard que se concentrava na briga com Garta. Por algum motivo que ele não conseguia desvendar, a guardiã de Finn continuava sem sofrer dano da sua magia de Calis. Era como se a magia de destruição se recusasse a agir sobre o corpo dela.

— Por que você não morre?! — berrou Bernard com a raiva plena sobre Garta. — Não importa! Eu vou acabar com você do mesmo jeito!!!

No instante em que Bernard proferiu sua ira, ele levantou sua mão sobre sua cabeça e se preparou para um golpe forte e certeiro com o seu punho em encontro ao rosto de Garta. A guardiã já estava quase no limite de suas forças.

Quando desceu o braço para acertá-la, algo o interrompeu, perfurou o seu ombro pelas costas como uma faca adentrando a pele, ele imediatamente arregalou os olhos com a dor percorrendo o seu corpo.

— Que merda é essa?!

O guardião com seu cabelo completamente bagunçado ficou abismado ao entender que havia uma flecha presa ao seu ombro. Ele deixou de lado a guardiã e, olhando ao redor, começou a procurar pela garota arqueira.

A achou do outro lado da sala e gritou com a raiva corroendo sua garganta:

— Como foi que você me acertou, sua inútil?!

 Iara estava tão surpresa quanto ele. Ela balbuciou elevando as sobrancelhas de uma forma completamente espontânea:

— Eu acertei?

“Como eu acertei? Ele não era inatingível? Agora pouco mesmo, eu tentei acertar uma flecha, e o Goro tentou acertá-lo com um disparo de Sathsai, e não conseguimos nem um arranhão nele. Mas agora, como foi que aquela flecha se cravou no corpo do guardião de Calis?” Pensou Iara observando a sua flecha ser arrancada por Bernard.

Ele segurou o cabo da flecha, abraçando-a com os seus dedos e apreciando a dor que ela emanava em seu corpo, puxou de uma só vez arrancando o artefato. Em seguida, trouxe-a para frente de seus olhos e observou bem o objeto. Não havia nada de diferente nela, era simplesmente uma flecha com ponta de ferro já ganhando ferrugem e cabo de uma madeira leve e flexível, mas, mesmo assim, o seu sangue, o sangue do guardião de Calis, escorria por ela.

Bernard largou a flecha ao chão e mirou os olhos em Iara. Não tinha uma resposta para o que havia acontecido, afinal, nenhum projétil, seja disparado por um arco ou arma de fogo, havia o acertado até aquele momento em sua vida, mas então, qual foi o motivo para aquela simples flecha o ter acertado? A pergunta corroía sua cabeça. E já que a resposta não estava na flecha, ela deveria estar na garota que a disparou.

Com isso em mente, o guardião de Calis partiu a passos velozes em direção a arqueira admirada.

— Opa... — Iara se viu alvo da ira de Bernard.

Apressadamente, a garota retirou mais uma flecha de sua aljava e a armou no seu arco, tensionou a corda e realizou um disparo rápido. Talvez conseguisse cravar mais uma flecha, foi o que pensou. Precisa, a flecha foi em direção ao peito de Bernard.

O homem não teve tempo de desviar, mas não foi necessário. A ponta flecha acertou o guardião como se acertasse uma parede sólida de pedra. Simplesmente bateu e caiu ao chão. Novamente era inatingível.

— Então, você não é tão poderosa assim? — se perguntou Bernard sem sentir qualquer dor vinda da segunda flecha. — Que seja, alguém que tenha conseguido me ferir, mesmo que apenas uma vez, merece uma morte honrada pela minha magia.

Bernard apontou a palma de sua mão para Iara enquanto se aproximava. A garota sem entender como havia ferido o inimigo e como poderia o ferir novamente, deu um, dois passos para trás, antes de começar a correr na direção oposta.

Ela tentou mais uma vez. Enquanto corria, armou mais uma flecha e, em alta velocidade, girou o seu corpo e disparou a flecha antes de terminar o seu giro e voltar a correr.

A flecha disparada acertaria a perna de Bernard, mas novamente, simplesmente atingiu o alvo como se encontrasse algo plenamente sólido e intransponível. A flecha desviou e caiu ao chão com a ponta gasta.

Iara não perdeu tempo, continuou correndo, mas o salão estava no seu fim. Encontrou a parede de madeira da direita e não teve por onde mais fugir. Se virou para apontar mais uma flecha para o seu imigo, mas quando o fez, Bernard já estava perto o suficiente. Ele agarrou o pescoço da garota e a empurrou contra a parede, erguendo seu corpo.

Iara perdeu o chão e teve de soltar o seu arco para ter as mãos livres e agarrar o braço do guardião na tentativa de não perder o ar.

— Urgh...

Bernard mantinha a garota sobre o seu controle enquanto a observava por completo, ainda não havia encontrado uma resposta:

— Você é apenas um animalzinho. Uma cachorrinha assustada, não é? — Como foi que você me acertou?

Iara se debatia sem qualquer chance de se desvencilhar da mão do poderoso guardião orgulhoso. Quase sem fôlego, ela tentava resistir a presença de sua morte.

Bernard cerrou os dentes, completamente irado. Aquela flecha não apenas o feriu fisicamente, mas também atingiu seu orgulho, deixando-o enfurecido. Desesperado por encontrar uma resposta, ele vasculhou a garota com os olhos novamente, buscando qualquer indício que chamasse sua atenção. Ao não encontrar nada que explicasse o feito da garota, ele cuspiu com puro ódio:

— Como diabos você conseguiu me acertar?!

A garota, incapaz de articular palavras, limitou-se a balançar a cabeça em um gesto negativo. Estava prestes a implorar por sua vida quando Bernard ameaçou vociferando:

— Não vai me dizer?! Que seja, eu vou descobrir, mesmo que eu tenha que abrí-la em dois...

— Aí!!! — gritou o rapaz no meio do salão. — Cabelinho!

O rapaz provocou Bernard e conseguiu a atenção dele da forma mais banal que podia se imaginar. O guardião respirou fundo o seu próprio ódio, ainda com o pescoço de Iara em sua mão. Olhou sobre o próprio ombro e enxergou Goro, convencido e esnobe, com o canto dos olhos:

— Eu já vou aí para acabar com você. Primeiro, eu tenho algo para tirar dessa garota — voltou-se a Iara que continuava a se debater em sua mão. — Vai me dizer como você me feriu, ou eu vou matar o seu amiguinho, bem devagar, na sua frente e...

— Ah, você não deveria se preocupar tanto com a garota fofinha. E muito menos comigo. — disse Goro, usando toda sua maestria no tom provocativo. — Tem coisas piores lhe esperando.

— Pare de me interromper, seu insignificante! — Bernard, irritadiço, se virou para o rapaz ao centro do salão, lhe dando mais atenção, mas sem perder o controle sobre a garota apertada à parede.

Quando colocou os olhos em Goro, o guardião de Calis atentou-se.

Goro auxiliava Garta de uma forma completamente inesperada por Bernard. O rapaz segurava um pequeno objeto de metal, como uma chave pequena, com as pontas dos dedos, o qual havia acoplado no esquisito colar que a guardiã de Finn carregava no pescoço.

Garta, sentada sobre a mesa de madeira no centro do salão, permanecia desorientada, com os olhos cerrados como se estivesse à beira do desmaio, prestes a sucumbir ao esgotamento. No entanto, Goro exibia confiança e até mesmo uma certa segurança em seu olhar. Esse contraste aguçou os sentidos de Bernard. Algo estava estranho aos olhos do guardião de Calis.

— Você tá muito ferrado — disse Goro cantarolando suas palavras, sorriu esnobe com o girar da chavinha que abriu a coleira de Sathsai inibidora de magia. Libertou Garta.

— Recuou e voltou com a solução certa, Goro — sussurrou Iara, com a esperança lhe ganhando.

Até a garota que estava em completo controle de Bernard, estava convicta e confiante. Algo, definitivamente, estava estranho, o Guardião de Calis só não conseguiria prever.

O estridente som de metal contra metal reverberou pelo salão. O colar de Sathsai cedeu, dividindo-se em dois enquanto sussurrava magia. O objeto inibidor de magia caiu ao chão e reverberou um ruído agudo e longo ao choque. Quando, finalmente, o barulho se extinguiu, o ambiente se carregou de tensão, um silêncio palpável que capturou a atenção de todos na sala, todos apreensivos e atentos a guardiã.

Garta ergueu lentamente a cabeça e abriu os olhos, não um, mas os dois olhos saudáveis. Nenhum som preencheu o espaço, no entanto, o silêncio tangível foi rompido, destroçado. A guardiã de Finn fixou seu olhar determinado em Bernard, marcando o início de algo, ou talvez, o fim.



Comentários