A Lenda do Destruidor Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 18: Tinta Negra

Falbion era uma cidade grande.

Capital do Reino de Alamar, a maior potência do Arquipélago de Nevra, servia como o local aonde o Exame dos Mármores do Sul ocorreria. Por conta de seu poderio econômico, era considerado como uma cidade abastada, cheia de comércio, tanto para os civis quanto para os visitantes.

Os Mármores não eram famosos por ficar num lugar só. Eles continuamente vinham para as cidades a procura de trabalho, e isso era o que fazia dessa cidade algo tão especial.

Por ser uma ilha localizada entre o Mundo Livre e as ilhas de Uranos e Rhéia, Chronos servia como um porto seguro para comerciantes, além de um local para que os Mármores descansassem e se abastassem para as viagens que seguiriam.

Não só isso, mas a família Alamar foi esperta o bastante para montar um Mercado inteiro ao redor dos visitantes. Seja com iguarias que só se encontravam ali, ou informações privilegiadas dos espiões, Chronos estava sempre cheio de Mármores, que traziam dinheiro e mercadorias que davam ao reino prosperidade.

Logo, uma tradição se formou. Por ser um lugar tão famoso e com tanta circulação, fizeram da capital o lugar onde o Exame ocorreria. Era mais simples atrair Mármores dessa forma, assim como permitiria que os novatos vissem a proeza dos profissionais.

Além disso, por sua longa história, assim como as 3 Masmorras que o reino tinha sobre si, várias Seitas eram atraídas para lá, o que trazia ainda mais poderio militar.

Por isso, Inasa andava pelas ruas com uma expressão de seriedade. Ele seria um dos seguranças para as fases finais do Exame, assim como um dos Examinadores da segunda fase. Buscava algo nos arredores, mas não conseguiu achar.

Estava buscando-os já há algum tempo, mas não teve sucesso algum. As crianças corriam de um lado para o outro. Ao lado direito, havia diversos comércios, todos com várias iguarias servidas apenas ali.

Olhou para o lado e deu de cara com um daqueles que buscava. — Olha só, se não é o certinho.

A frente de si, um rapaz com cabelo azul-marinho, olhos vermelhos, pele bronzeada e dentes serrilhados o cumprimentou. Vestia uma bermuda azul e não portava camisa.

— Distra, a quanto tempo…

— Não importa. Vamos logo, os outros estão esperando! — Notou que o padre não o seguia, o que o fez se virar e olhar irritado para o antigo companheiro. Ambos não se viam a alguns anos, não se separaram nos melhores termos, algo claro visto a tensão na postura dos dois.

— Acho que o hotel é para o outro lado.

— É mesmo… bem, tem um puteiro naquela direção. Se quiser, posso te apresentar a uma ou duas mulheres… quem sabe não te ajuda?

O Padre segurou a língua, mas não deixou de estreitar os olhos. — Vejo que continua o mesmo… não, acho que piorou. Não lembro de você visitando esse tipo de lugar.

O azulado puxou o machado que estava nas costas, um sorriso feral no rosto. — Quer brigar, desgraçado?

Puxou a Espada de Luz da bainha, a postura de ambos atraia a atenção dos pedestres, que olhavam para a cena interessados. — Quem sabe… já faz algum tempo desde que você destruiu aquela igreja, lá em Tarvin… não esqueci da quantidade de mortos que deixou.

Hah, como se vocês religiosos se importassem! Só sabem encher o bolso com o dinheiro dos fiéis e do estado!

Estavam para iniciar a briga quando um vulto parou entre os dois. A pressão os deixou imóveis, o que os fez olhar para o recém-chegado com irritação. — Céus, recém se encontram e já estão brigando? Parece um casal de velhos.

— Ele que começou! — Distra apontou para Inasa, mas se prontificou a guardar o machado ao receber o olhar de Beell. — Desculpe…

— Não importa. — Virou-se para a direção do hotel e caminhou, a capa negra flutuava com o vento. — Vamos… temos que nos encontrar com os outros. Helena e Luxus já foram informados das tarefas, só faltam vocês dois.

— E? Que tipo de tarefa vai ser realizada?

— Bem… vamos apenas dizer que… esse semestre vai ser bem mais severo que os anteriores…

 

A mudança na atmosfera foi perceptível. Num instante, os Bandidos estavam felizes por enfim derrotar o garoto que lhes dera tanto problema, no outro, a tensão era tamanha que podia ser cortada com uma faca.

— Que sentimento é esse?

Ninguém sabia a resposta para tal pergunta. O usuário de Correntes recuperou a arma e ficou em prontidão. Todos olhavam para apenas um lugar, que estava marcado por destroços e ruína. Mas, na mente dos bandidos, aquilo não podia ser real.

Era impossível.

Um ataque daqueles devia ter matado o rapaz instantaneamente. Não devia ter sequer dado a chance dele processar a morte. Por isso que, para os bandidos, e até mesmo para o Trol, aquela mudança não devia ocorrer.

Mesmo para o mundo que viviam, era surreal.

Como uma avalanche, era inesperado e avassalador. Aquela atmosfera, centrada em um único ser, fazia com que lembrassem da escória que eram. Do quão insignificante era a existência de cada um ali perante o mundo.

Um sentimento assustador.

De repente, a pressão retraiu, concentrou-se num único ponto. Os que estavam mais afastados puderam respirar, enquanto os que estavam próximos começaram a fraquejar. Alguns até mesmo caíram inconscientes.

Tudo graças a um único ser.

O silêncio fizera com que pudessem ouvir o coração bater no peito e sentir o sangue correr nas veias. Um dos mais bravos se aproximou dos destroços.

Foi quando ocorreu.

Como uma explosão, o entulho saiu voando pelo ar. Não havia ordem naquilo. Os mais próximos sentiram as pedras impactarem no crânio, e a última coisa que viram foi o rapaz, que deveria estar morto, levantar-se.

Ao redor de si, uma Aura, tão densa e negra quanto tinta, erguia-se e o envolvia. A quantidade de poder era palpável. A tinta cobriu a Bento, assim como costurava os ferimentos do rapaz.

Os bandidos viram no rosto dele uma promessa, que seria cumprida. Naquela hora, perceberam o porquê a desordem e o caos da situação. Os mais supersticiosos rezaram para Seth, não por proteção, mas sim por perdão.

Afinal, estavam na frente de um Destruidor.

A sombra negra pulou na direção dos Bandidos. Mesmo com a desvantagem numérica, Ethan conseguiu cortar cada oponente com facilidade. Desviava de flechas, espadas e lanças enquanto contra-atacava.

A cada corte, corpos voavam e sangue jorrava no chão. A maestria que balançava a arma também era muito maior do que a que demonstrou. O estilo que usava era diferente, focado apenas em ataques rápidos e precisos, que cortavam mais e mais o número de oponentes.

Chegou em frente ao Trol, que tentou balançar a arma, mas Ethan meramente desviou, pulou e cortou o nariz do monstro.

Desviou da foice no ar e puxou a corrente para si, o que forçou o usuário no ar.

Foi forçado à pôr a corrente em frente do peito, colocou o máximo de Aura nela, o que a fez resistir. Contudo, a força foi tamanha que voou contra o chão.

Contudo, antes de cair, viu os olhos do garoto, que eram vazios e livres de consciência. Nisso, soube que, seja lá o que estavam enfrentando, não era o espadachim de antes.

 

Num campo de trigo, Ethan olhava o céu azul com curiosidade. “Mas o quê?” Olhou ao redor, notou a forma como as casas estavam inteiras, como os moradores andavam de um lado para o outro, e apenas engoliu em seco. “Será que…”

— Ei vagabundo, quer ajudar? Não fique sonhando aí o dia inteiro, diacho?

O grito lhe chamou a atenção, assim como tomou a respiração do rapaz. Olhou para os funcionários de seu pai, virou-se para os lados. Tudo estava igual a antes… nada mudara…

— Eu… mas…

— Qual o problema, Ethan? Estava sonhando acordado? — A voz do homem que outrora admirava o trouxe de volta ao presente. O avô do rapaz olhava, com carinho nos olhos negros. — Vem, que tal uma história?

— Ei! Ele ainda precisa ajudar! Ou acha que o lote vai ser capinado sozinho? — O pai reclamou, enquanto dava ao rapaz uma enxada. — Vamos! Ou vai ficar sem…

Não pôde falar, pois recebeu um abraço do garoto.

Ethan chorava e soluçava, enquanto recebia o abraço do pai. — Obrigado… foi tudo um sonho… obrigado!

— Ethan, o que deu em você? — A mãe perguntou para o rapaz, que foi até ela e deu mais um forte abraço.

Ao se separar, notou que estava agindo feito um tolo e limpou as lágrimas nos olhos. — Nada, mãe… só… só tive um sonho horrível. Nele, um demônio matou todo mundo e eu fiquei sozinho.

— Diacho, garoto… deve ter sido um sonho acabrunhado.

Nisso, pegou uma enxada e começou a capinar. Tudo enquanto conversava animadamente com os compatriotas. Tudo enquanto esquecia do sonho de liberdade e independência que tinha.

Enquanto ignorava o olhar sobre si.

Mas não pôde ignorar para sempre, visto que o estranho caminhou até ele. — O que raios está fazendo?

O rapaz parou o que fazia e se voltou para trás. — Que… quem é…

— Responda a pergunta! O que acha que está fazendo? — Não era possível discernir nada sobre o homem, apenas que ele cheirava a tinta. — Uma vida pacífica? Não é isso que você quer, não é? Se fosse, ficaria em Oldale, não é?

Conforme falava, o cenário mudava. O céu começara a se tornar vermelho, o vento prenunciava uma tempestade.

— Não, você quer algo mais. Um aldeão pacato é pouco para você, não é, Jovem? Lembre-se do porquê tudo começou! Lembre-se de fonte de sua vontade, de sua promessa para Ittai, para si próprio! Lembre-se do que deseja!

Com isso, o eclipse voltou. Os pedaços de carne começaram a devastar o vilarejo, enquanto soltavam a mesma risada medonha.

— O que… eu desejo?

Todos os detalhes do que acontecera até então vieram de volta para si. “É mesmo… toda essa dor que eu aguentei tem um motivo… o porquê de tudo ser como é… é para ser um Mármore…”

— Agora, eu te pergunto, o que deseja?

— O que eu desejo… é a liberdade!

A figura pareceu sorrir, o mundo começou a ser envolto pela tinta. As paredes, as chamas, e as pessoas foram engolidas por ela, como se nunca estivessem ali.

— E? Por que a deseja?

Tal pergunta o fez ignorar o líquido, que o engolia lentamente. Era fácil de responder. Tanto que já a tinha na ponta da língua.

— Porque é assim que eu sou!

Após responder, foi engolido pelas sombras. Prendeu a respiração e fechou os olhos, até que foi forçado a respirar de novo.

Foi quando abriu os olhos que viu todos os bandidos olharem para ele, assustados.

Sobre si, jazia um dos braços do Trol.

— Mas… mas o que houve? — Não pôde deixar de se perguntar. Não sabia o que raios acabara de ocorrer, nem o porquê do número de corpos aumentar no campo de batalha. Apenas que não gostava do rosto temeroso dos oponentes.

Huff huff… Não lembra? — Olhou para o rosto confuso e agoniado do monstro. Segurava o cotoco do braço e mostrava clara dificuldade em respirar pelo nariz.

Pôs-se em guarda ao ver os oponentes preparados para continuar. “Isso é mal… tô mais perdido que cego em tiroteio e ainda não… pera… minhas feridas…” Só então que reparou que teve uma recuperação milagrosa.

Aquilo era estranho demais, mas não era algo ruim. Não sentia estar renovado por completo, mas conseguiria lutar. Avançou contra o Trol e desviou de um ataque do mesmo, que estava mais lento.

Partiu para o ataque no lado esquerdo do monstro e usou o Andorinha Raivosa na jugular do oponente.

O sangue jorrou, a dor o forçou a ficar de joelhos, fez com que caísse no chão, mas não sem antes dar um forte soco no lado de Ethan.

O rapaz saiu voando, mas conseguiu se recuperar a tempo de aterrizar.— Bem, menos um problema… — Olhou para as tropas inimigas e notou como a moral deles caiu por completo.

Nisso, tentou avançar, mas sentiu aquilo lhe subir a garganta.

Queimava feito magma derretido, a sensação de fraqueza e de enjoo tiraram a força das pernas. Mas, acima de tudo, o vazio frio que surgiu no peito doía, tanto que parou de se mover e segurou o coração, que ameaçava pular para fora.

“Droga… ainda não… por que agora?”

Antes que pudesse processar, vomitou o veneno negro, que corrompeu o chão. Dessa vez, não parou apenas no que tinha no estômago. Sentiu o sangue ser drenado, assim como um forte queimar nos olhos e ouvidos.

A visão embaçada e os sons embaralhados fizeram com que o rapaz parasse de pensar e agisse por instinto. O mesmo instinto que o forçou a desviar de várias flechas, mas não rápido o suficiente para escapar da foice, que cortou o lado.

Para a surpresa e horror dos homens, o sangue do rapaz estava tingido de negro. Era possível ver que era sangue, mas a coloração abissal era forte.

Nisso, viram como, mesmo naquele estado lastimável, ainda estava de pé, pronto para lutar. Aquilo mexeu com eles, especialmente com o usuário de Foice com Corrente, que não pôde ficar calado.

— Por quê? — Lançou a corrente contra o rapaz, a frustração cresceu com a forma como desviava dos ataques. — Por que não cai logo?

Por mais que sentisse tonto, que não conseguisse ver direito, ainda ouviu o grito do homem. Desviou de várias lanças e, com o balançar da Bento, jogou os inimigos para longe.

— Por que está lutando tanto? Apenas desista… e pare de se machucar!

A resposta do rapaz foi o bloqueio da foice e um olhar tão afiado e resistente quanto aço.

Os inimigos pararam a investida. Estavam intimidados com aqueles olhos, que mesmo naquela situação, continuavam a mostrar uma convicção inabalável.

— Não… sem chance… — Levantou a espada e apontou para os inimigos, que apenas ouviam. — Sabe… meus compatriotas todos morreram num único dia… vi meus irmãos serem mortos sem poder fazer nada… acha mesmo que vou deixar uma tragédia assim ocorrer de novo?

— E pra isso está matando mais gente?

— Mas é claro! Se o Rei dos Ladrões cair, essa cidade vai pelo ralo! Enquanto eu prefiro morrer a carregar mais culpa, eu também não quero matar vocês, mas… eu não quero isso, mas… eu prefiro matar 10 a deixar 100 morrerem!

Aquelas palavras deixaram todos ali impressionados. Podia ser tolice, ou talvez seja por nunca terem alguém que quisesse os salvar, mas queriam seguir aquele rapaz. A verdade é que nenhum deles podia ignorar a verdade e bondade naquelas palavras.

O rapaz sentiu a fraqueja nas pernas subir e estava para desabar, quando um par de braços o agarrou. Tentou se desvencilhar, mas o dono meramente o puxou para perto e o apoiou.

— Não se preocupe… vamos te levar para a Praça Central.

— Mas…

— Não se engane, não estamos fazendo isso só por bondade. Queremos uma recompensa do Rei quando chegarmos lá.

Por mais que sua visão estivesse nublada, viu a forma como sorriam resolutos. Naquele momento, Ethan entendeu um pouco mais da mentalidade daquele povo.

A verdade que todos eram escória, mas havia certo orgulho e vontade de defender a terra onde cresceram. Os laços que formaram com a família, com os amigos de bebedeira e com um estranho na rua eram frágeis, mas genuínos.

Por isso, soube agora que gostava daquela gente.

 

De volta ao centro, Hector fechou os olhos. Havia aceitado o fim.

Viveu uma boa vida, por mais que ainda houvesse coisas que quisesse ter feito, sabia que havia chegado a sua hora, mas… a dor não veio.

— Você… por quê?

Não conseguiu acreditar na cena atrás de si. Em apenas um segundo, a imensa espada havia perfurado o tronco do lanceiro que se intrometeu na batalha.

— Seguinte… se alguém atrapalhar a minha luta… vai morrer. — Não era uma ameaça, mas sim uma promessa. Jack estava sério no que dizia, tanto que os soldados engoliram em seco com aquele olhar macabro.

Virou-se para o assassino com um sorriso de canto. Estava claro que aquilo significava alguma coisa, mas não pôde processar o que era.

A luta recomeçou.

 



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