Volume 1

Capítulo 24: PREDIÇÃO

Kai flutuava num mar cinza de um imenso nada.

Quanto tempo passara ali? Quanto tempo mais ficaria ali? Será que estava morto?

Ou será que era apenas uma nova alucinação?

Uma alucinação como quando apagou e viu caminhos se formando sob e sobre ele; como quando um par de olhos lhe espreitaram.

Mas, à guisa de comparação, desta feita foi diferente.

Na verdade, não havia fundo negro pontilhado por luzinhas longínquas e, muito menos, no entanto, estrelas formando estradas estelares para ilhas flutuantes e tronos de cristais brilhantes.

Era somente ele e sua consciência.

Tão terrivelmente calmo. Quieto.

Nada acontecia, até que houve uma mudança.

O lugar vibrou como uma onda. Até ali, Kai não havia sentido nem seu próprio corpo. Mas a onda ele foi capaz de notar.

E veio uma terceira, quarta, quinta, sexta... Vinte ondas!

Em seguida, badaladas. Houveram mais vinte. 

Uma imensa sombra se precipitou sobre ele, e um arrepio lhe tomou de assalto. Dois pontos, brilhantes e carmim, apareceram bem lá no alto. Foram se aproximando até estar numa distância considerável.

E Kai notou que não eram pontos normais, eles se moviam, como se o fitassem. Ele percebeu dali um tempo que, na verdade, se tratavam de dois olhos imensos como sinos de grandes catedrais.

Mas, ao notar sua presença, ele ficou tão calmo quanto poderia ficar naquela situação.

Muito quieto.

Desses olhos, não havia nada além de uma imensa aura de pacifismo. Kai ficou irremediavelmente feliz. Estava certo de que quem quer que fosse esse ser ou, caso isso fosse mesmo uma alucinação, não lhe faria mal algum.

Um novo tremor tornou e, junto dele, uma imensa sombra com vários pontos se ergueu sobre Kai. Lentamente, ela se dirigiu até sua testa.

Assim que a tocou, fortes palavras carregadas de um tom grave ribombaram em sua consciência. Então ele acordou.


***


Erde do alto clã Vildret e sua unidade batalhavam contra criaturas na base dos postos avançados sobre as árvores.

Era noite e, como era do conhecimento de todos, os batedores adoravam escuridão.

Cerca de cinquenta vitanti batalhavam com uma hoste de bichos ossudos com rostos monstruosos; tinham fendas no lugar dos olhos e quatro braços aquosos e escuros que pareciam lodo ao toque.  

Era uma batalha até que simples se não levasse em consideração a quantidade massiva dos bichos. Entrementes, o restante da unidade tentava acionar a barreira de proteção dos postos das árvores.

Como fazia mais de cinquenta anos que estavam desativados, um novo feitiço deveria ser lançado. Mas, como a unidade de Erde era composta por recém soldados, levaria mais do que a metade do tempo para ativar a todas.

Erde ergueu sua espada dentada e partiu um batedor ao meio ao mesmo tempo que um vitanti ao seu lado ergueu as mãos e lâminas de ar passaram entre eles, partindo os membros das criaturas nojentas.

Eram poucos os vitanti que conseguiam manipular a natureza ao redor com éter. Somente aqueles mais dotados de dom.

Erde havia reunido em seu batalhão aqueles que mais se mostraram qualificados nesses feitiços durante o treinamento na academia vitanti. Ele realmente prezava por esse estilo de luta. Era único, ao seu ver.

Mas não fazia diferença, era sempre a mesma coisa: quanto mais batedores eram mortos, mais surgiam, como pragas.

– Esses desgraçados se reproduzem como humanos... – gritou um vitanti, que arrancou boas gargalhadas de seus companheiros.

– Temos que mantê-los longe até que a barreira esteja estabilizada, não percam o foco. – Gritou Erde.

– Sim, senhor. – Ouviu em resposta.

Ele deu dois passos à frente e prendeu sua espada nas costas. Em seguida, cruzou o dedo indicador e o médio; fechou os olhos e anunciou um encantamento:

Das sombras hão de vir
Os prenúncios do caos
Da noite vão surgir
Os filhos da repugnância
Venham até mim, menores
Ó, prendas da perdição

Enormes gavinhas de escuridão se precipitaram do chão e das árvores, atravessando e mutilando vários batedores de uma só vez. Quanto mais apareciam, mais gavinhas lhes partiam ao meio.

– Vejam, são as sombras mágicas de Erde, o negro.

– É realmente como nas histórias.

– Uou! Ainda bem que vivi para ver isso.

As reações foram diversas. Erde se sentiu até que bem.

Finalmente a quantidade de criaturas diminuiu e o último batedor foi cortado ao meio.

Erde caiu sob um joelho, vários vitanti batendo palmas e gritaram, felizes pela vitória. Na verdade, poucos haviam sido feridos, tudo graças ao forte trabalho de Vildret.

Ele suspirou, o feitiço que acabara de usar era muito exaustivo.

– Muito bem, comandante. Você é mesmo do alto clã.

Erde se ergueu, fitando os vitanti que lhe encaravam com um brilho no olhar.

– Esqueçam isso de clã e linhagem. Aqui, somos todos iguais, visando proteger nosso próprio povo.

Houve uma comoção em uníssono, gritos de entusiasmo sendo bradados.

Erde, no entanto, não estava muito feliz. Apesar de ter sido uma batalha um tanto fácil, ele estranhou o tamanho dos batedores. Eram pequenos em comparação com aqueles que lera certa vez num livro.

Ele olhou para a escuridão enquanto os soldados conversavam, claramente muito felizes.

Alguma coisa não batia. Fosse pela facilidade da vitória, fosse pela demora de erguer um escudo, estava tudo muito estranho.

Um sujeito se aproximou dele, uma tigela de sopa numa mão. Era seu vice em comando, Carolo da casa Milito.

– Algo lhe incomoda, comandante?

– Não, é só... – Ele olhou em volta e suspirou. – Não é nada.

Entrementes, ouviu-se um grito.

Erde rapidamente se virou para a unidade, estavam alarmados e assustados. Outro grito e mais outro. De onde estava vindo?

Ele saiu andando apressado entre os seus soldados até encontrar de onde partira o som.

Era tão agudo e tão terrível. Tão carregado de dor, de consciência.

Até que ele percebeu que o som não vinha dali, e sim da floresta.

Ele novamente caminhou até o ponto onde estivera, nas delimitações de onde a luz dos orbes iluminava. Para além daquele ponto era somente escuridão e a tensa aura da Floresta de Bulogg.

– Essa Floresta está finalmente se comportando como os humanos ditam... – ele balbuciou.

– Mas não é normal, senhor. Não deveríamos ter imunidade a ela? 
 
– Eu também costumava pensar assim, só que...

Ele foi interrompido quando uma enorme flecha se fincou na cabeça de Carolo.

Antes dele agir e da tigela de sopa cair no chão, uma série de flechas começaram a atingir os vitanti sentados que observavam.

Erde rapidamente juntou as duas mãos e gritou:

Empódio: Barreira das Trevas.

Um grosso escudo de escuridão se ergueu ao redor dos vitanti, protegendo-os.

– Se preparem, minha manti não aguentará por muito tempo. – Ele gritou.

Enquanto várias flechas batiam e resvalavam na barreira negra, os vitanti que ainda estavam de pé já tinham se preparado.

Seis deles se puseram um do lado do outro, as mãos erguidas e apontadas para o escudo. Quando Erde desfez o feitiço, várias coisas aconteceram.

Faíscas de luz saíram das mãos dos vitanti na dianteira e se ergueram pelas árvores, iluminando o possível campo de batalha.

Em seguida, uma dúzia de vitanti se precipitou com espadas e lanças em mãos, prontos para lutar. Correram até metade do campo iluminado antes de perceberem que não havia ninguém ali.

Todos estavam confusos enquanto Erde notou algo ao esquadrinhar o local: as flechas tinham todas sumido. Será que...

Quando ele voltou sua atenção para o campo iluminado e se ergueu, os feitiços de iluminação foram desfeitos. Em seguida, ouviu-se uma grande gritaria. Desta vez eram mesmo os vitanti.

Era uma armadilha, caímos direitinho...

Haviam criaturas capazes de desfazer feitiços, capazes de matar uma dúzia de vitanti de uma só vez.

Então a própria batalha contra os batedores fora uma armadilha? Será que eles foram enviados ali somente para lhes cansar? Isso explicaria o fato de os batedores terem aparecido sem dar descanso.

A pessoa por trás era inteligente... não, não poderia ser considerado uma pessoa. Era, muito provavelmente, um xamã.

Erde olhou para os vitanti antes atingidos pelas flechas. Alguns mais próximos estavam com suas peles pálidas, os rostos sombrios. Será que continha algum veneno?

Ele olhou de novo para o lugar que os vitanti correram. Buscava alguma lógica para aquilo quando sentiu uma forte dor no braço, como se tivesse sido mordido.

Quando baixou o olhar, viu seu vice em comando, Carolo, mordendo seu braço. Mas... como? Ele ainda tinha a ponta de uma flecha saindo pela sua nuca.

Carolo morrera a poucos minutos, como...?

Erde agiu rápido: socou o rosto de Carolo e puxou uma lâmina de seu bolso. Arrancou o braço mordido fora e, com rapidez e esperteza, fez uma bandagem no lugar.

Uma dor excruciante já subia pelo seu ombro e pescoço, mas ele não tinha tempo para chorar. Ele lutava para ignorar a frieza que teve ao arrancar o próprio braço, sem contar na dor imensa que estava vivenciando.

Ergueu o rosto para os vitanti que ainda restavam. Boa parte estava como Carolo ou a caminho disso.

– Não se aproximem, sejam mordidos ou entrem em contato com aqueles que foram feridos pelas flechas... elas continham algum tipo de feitiço... somente o toque os transformará em algo... algo realmente ruim.

– Mas comandante, você...

– Não se preocupe. – Ele gritou. – Quero que aqueles que não foram feridos, subam até os postos avançados e ajudem na restauração da barreira.

– Não, senhor – um vitanti deu um passo à frente. Ele tinha cabelo claro e olhos escuros. – Não deixaremos que morra aqui, o senhor é de suma importância para...

– Não seja tolo, rapaz. Minha vida não é tão importante, assim como essa discussão. Temos que agir com pressa. Quero que formem escudos e protejam os que ainda podem andar. Aos que estão passando pelo mesmo que eu, peço que lutem uma vez mais... por favor.

– Como assim? O que quer dizer com isso? O senhor pretende mesmo...

– Eu já disse, tolo. Essa discussão é inútil. Essa guerra depende dos esforços que fizermos aqui, não percebeu ainda? Quer que o sacrifício de seus irmãos seja em vão só porque não consegue seguir uma ordem? E ainda se diz um Púrpuro?

Essas palavras bateram com força no outro sujeito. Ele rapidamente ajeitou suas costas e assentiu.

Erde ergueu a mão esquerda e, com mais um pouco de esforço, lançou uma magia que criou um caminho entre as árvores em direção aos postos avançados.

Ele sabia que teria poucos minutos.

Quando os remanescentes se foram, ele respirou fundo. O feitiço já tinha percorrido todo seu corpo, mas ele não seria tomado tão rapidamente. Fechou os olhos e lâminas escuras surgiram ao seu redor. Nem precisou de um encantamento.

As lâminas tomaram direção para os abatidos que lentamente se transformavam em criaturas horrendas.

Entrementes, gritos e lamúrias vieram de suas costas, mas ele não tinha tempo para o que quer que estivesse se precipitando por ali.

Foi com dor no coração que ele aniquilou seus últimos companheiros. Caiu sob um joelho e lágrimas lhe brotaram. Mais de vinte vitanti tinham perecido para o feitiço e, não fosse graças a ele, outros também teriam. 

Logo, se virou para os gritos em suas costas e, puxando a espada desajeitadamente das costas, se pôs em pose de batalha.

Não demorou muito para que uma verdadeira hoste de batedores com duas vezes o tamanho dos anteriores, aparecesse, as fendas negras espreitando a fim de lhe estraçalhar.

Gavinhas de escuridão brotaram logo atrás dele, bem como a própria escuridão se dobrou à sua vontade. Ele criaria tempo o suficiente para os remanescentes de seu batalhão.

As imensas gavinhas mergulharam no chão e brotaram dele já empalando vários batedores.

Flechas fincaram no peito e nas pernas de Erde, mas ele não diminuiu o ritmo.

Já não ouvia nada. Um imenso vermelho inundou seus olhos e seu rosto começou a enxarcar de sangue.

Ele ergueu a espada e desceu-a sobre o batedor mais próximo. Em seguida deu um chute circular em outro.

Duas flechas se fincaram em seu abdome. Mais gavinhas se condensaram com a escuridão, ficando mais fortes a cada instante.

Ele ouviu gritos vindo das árvores: tinha abatido os irritantes arqueiros. Não precisava nem checar para saber que eram caranguejos.

Dali a pouco, seu feitiço falhou e, num instante, quatro pares de dentes pontiagudos fincaram-se em seus ombros e pernas.

Ele berrou de dor, sua voz pôde-se ouvir por quase 10km.

Erde finalmente soltou a espada, enquanto era feito de lambedor pelos batedores. Tirando certa força de algum lugar, ele elevou a mão esquerda e gritou:

Drain: Morte Secular.

Vários espinhos se formaram da escuridão, acima e abaixo. Começaram a rodar em uma velocidade tão impressionante que só ele podia ver. Ele deu um suspiro e, neste instante, uma densa aura permeou os arredores.

Eles tinham conseguido criar a barreira.

Mas que conveniente,
pensou Erde, com um sorriso ensanguentado no rosto. Finalmente, fechou a mão bem como os olhos e um sorriso enorme se fez em seu rosto.

Os espinhos desceram e empalaram os batedores e ele.

Erde do alto clã Vildret morreu com um grande sorriso no rosto e um imenso senso de dever cumprido.


***

BANG!

Um soco na mesa.

– Aquele Bulgu idiota, burro, estúpido, INÚTIL! – Pele-pétrea jogou uma série de objetos nas paredes do pequeno espaço em que estava.

Seu pelo branco tinha ficado mais cinza do que nunca.

Ele se levantou do trono e começou a caminhar pelo espaço escuro, que era iluminado apenas por uma luzinha muito no alto.

Havia, no lugar, apenas seu trono, grande o suficiente para lhe caber e uma mesa baixa para se apoiar.

– Ele quase colocou meu plano em risco, aquele idiota.

– Você mesmo colocou seu plano em risco quando atacou aqueles vitanti, Gorila.

Um homem alto de ombros largos se adiantou, saindo da escuridão. Ele tinha cabelos negros e um nariz grande e torto. A cor de seus olhos era de um cinza doentio.

– Aquilo foi apenas um aperitivo, macaco pelado, apenas para dar início à guerra. Os de pele roxa precisavam saber quem é que manda, não é mesmo?

– E, de novo, não adiantou de nada. Você mandou, sob o falso pretexto de uma ordem indireta do mestre, que os Bulgus atacassem. E, ciente que Bulgus não deixam pontas soltas, ignorou totalmente nossos conselhos. Esse plano já estava anunciado para falhar, tolo.

– Olhe como fala comigo, garoto, não pense que por ser um mensageiro dele, eu não te mataria.

– E você, não pense que por ser um macaco velho que comanda uma dúzia de bestas peludas, eu não o mataria. Seria muito fácil, na verdade, trocar o líder dos gorilas. Uma mudança nunca faz mal, ainda mais quando se troca um tapete velho por um novinho em folha.

Pele-pétrea estralou a língua, mas ficou calado.

– Mas não pense que tudo está perdido, Gorila, afinal, nosso acordo foi firmado com você – o homem ergueu um sorriso que não chegaram aos seus olhos. – E, também, tudo tem ocorrido bem como o mestre planejou. Apesar de seus esforços para que tudo seguisse ao contrário, o Bulgu morreu e o garoto mostrou suas garras.

A atenção de Pele-pétrea foi fisgada.

– Aquele moleque... qual é a dele? Era um sujeitinho muito resistente para um humano comum.

– Bom, não tenho a obrigação de responder essa pergunta. Agora, a respeito dos outros planos, o mestre está feliz em compartilhar.

– Quer dizer que os postos avançados caíram? – Pele-pétrea se animou.

– Também não. Mas isso não é importante. Os outros planos correm exatamente como o mestre previu.

– Quer dizer que você fala daquilo?

– Por que você fala como se outras pessoas estivessem ouvindo esta conversa? Tem medo de que alguma coisa vaze?

O Gorila bufou, irritado. O homem, por sua vez, começou a caminhar, as duas mãos para trás.

– Respondendo a sua pergunta: sim. Deixaremos que eles pensem estar na vantagem; permitiremos que vão atrás de seu povo perdido.

– Isso resultará em mais força para eles, não?

– Sim. Mas, mesmo que toda a tribo vitanti se juntasse, ninguém poderia contra a força do mestre.

O gorila engoliu em seco.

– Falando em mestre... quando vou vê-lo? Não acha uma falta de educação que eu fale com ele através de intermédio?

– E o que sabe sobre educação, seu chimpanzé inútil? Aliás, quem disse que é por intermédio? – A voz do homem mudou para uma mais grave, serrilhada.

– I-isso é...

– Deixemos isso de lado, primata. Agora, diga o que tanto quer falar comigo.

– A cabeça de Abwn Eblomdrude, é tudo o que quero.

– Sim, eu sei. Tom disse durante a primeira condição do acordo. Não é possível que tenha me chamado apenas para falar disso, ou é?

– N-não... eu também quero o moleque. Ele é de...

– Não! – A voz ribombou pelo lugar, fazendo Pele-pétrea tampar os ouvidos.

Ele ergueu a cabeça e encarou Tom, cujos olhos estavam castanhos e repletos de confusão. Ele não parecia saber onde estava, um medo se formando em seu rosto.

Aos poucos, sua feição foi voltando ao que era antes. Ele ajeitou seus negros cabelos para trás, endireitou a coluna e seus olhos ficaram cinza outra vez.

– Espero que tenha dito tudo o que precisava...

Ele se virou e, caminhando lentamente, voltou para a escuridão. 


***


Kai ergueu o olhar e havia um imenso dragão azul no céu alaranjado.

Nuvens passavam lentamente enquanto a enorme enguia perfurava suas planícies brancas e molhadas.

Ele estava calmo – não o dragão; ali, sentado num enorme campo esverdeado. Logo a frente estava o mar, o céu laranja resvalando em sua superfície calma. O cheiro de maresia corria até ele. O vento vindo do leste. O cheiro de terra, de árvores, de areia, do mar. Tudo misturado.

O dragão rugiu. Uma figura sem rosto apareceu.

Acorde.

Ele se levantou, ofegante demais. Estava suado, irrequieto. Seu ombro ainda latejava muito, mas sabia que era uma dor fantasma.

Deram a ele uma poção que curou imediatamente a ferida; no entanto, uma cicatriz ficou, já que a poção não era capaz de fazer crescer membros perdidos. Muito embora ele tenha perdido uma parcela de carne, e uma cicatriz tenha ficado na aparência de um buraco vermelho e fechado; seu osso não fora atingido.

Ainda assim, teve sorte.

Ele colocou os pés para fora da maca na enfermaria improvisada. Olhou para além da tenda, uma forte chuva caía.

Essa era real?

Fazia uma semana que ele tinha febre durante os sonos. Sonhos estranhos, enxaqueca, ânsia de vômito.

Meteu a mão no bolso da calça e tirou uma pílula branca. Engoliu e, tão logo a febre foi passando.

Deitou-se outra vez na cama e fechou os olhos.

Para ele, um minuto se passou. Quando acordou, era dia e uma forte agitação se fazia do lado de fora da tenda. Fazia muito calor.

No tempo que passou ali, ficara de fora do que realmente estava acontecendo, mas tinha noção de uma coisa ou outra.

Se levantou e, com a cabeça girando, se forçou a se limpar. Vestiu uma nova leva de roupas e pegou a Amencer. O toque em seu cabo estava bem mais... acolhedor.

Quando saiu da enfermaria, um tessaya veio correndo em sua direção e prestou continência. Ele tinha uma estatura mediana e ombros largos. Seu cabelo era parecido com uma tigela marrom e seus olhos eram marrons feito lama.

Atrás dele, uma moça o acompanhou. Ela também era tessaya e tinha um cabelo cor de acaju.

Ambos usavam trajes da guarda vitanti.

– Muito prazer, sr. curo... – o rapaz ia se apresentando quando a mocinha lhe deu um forte soco na costela. Ele berrou. 

– Seja respeitoso com quem nos ajudou, Midfordgard. – Ela disse. – Perdoe meu primo, ele não tem modos. Bom, sou Julenefutiazin do sangue Pringan e este é Midfordgard do sangue Prendor. Fazemos parte dos tessaya que foram junto de você e do sr. Mael. Gostaria de dizer que é uma honra e...

Entrementes, ela recebeu um beliscão no braço. Imediatamente, seus olhos encheram de lágrimas.

– AU! Por que fez isso?

– Porque você me socou, idiota. E olha só quem não tem modos? Céus! Dê espaço ao homem. – Ele se virou para Kai. – A comandante Arjuani pediu que eu lhe escoltasse até ela assim que você acordasse.

– Que nós o escoltássemos. – Julenefutiazin corrigiu.

Kai franziu o cenho.

– Obrigado, Mid e Jul. Poderiam me levar até a comandante?

– Sim, sr. vice comandante. – Jul sorriu, envergonhada. – Mas, hã, poderia me chamar pelo meu nome inteiro? É que é uma honra para nós vitanti se...

– Não. – Kai bufou. – Seu nome é grande e eu tô com uma tremenda dor de cabeça. Então, por favor, só me diz logo o caminho.

Mid olhou para a prima, que ficou claramente chateada, é claro.

Enquanto caminhavam, Mid e Jul continuaram conversando e se alfinetando logo a frente. Kai não deu bola.

Sua cabeça parecia que ia explodir. Ele estava cansado, seu corpo latejava e, pra piorar, tinha a constante sensação de dentes mordendo seu ombro. O clima também não ajudou muito. 

Ele sempre preferiu o frio.

Logo chegaram numa tenda escura. Havia uma série de vitanti parados em fileiras e de braços cruzados para trás.

– Pronto, senhor, aqui está a unidade Fronteira.

Ah, deram um nome, é? Que fofinho! Pensou Kai, irritado.

Logo ele passou pelos vitanti mais atrás. Alguns olhares caíram sobre si. Ele caminhou até as bordas laterais da tropa; Arjuani dizia algumas palavras.

Mesmo que estivessem em sentido, alguns até viraram os rostos para encarar o recém chegado.

Para sua surpresa, viu alguns conhecidos entre a tropa: o irmão de Plumrose, Oseias; Ómra, irmão de Fioled e, por fim, a própria Fioled.

Ele não ficou tão animado assim.

Haviam alguns tessaya, também. Estes, no entanto, estavam mais felizes em ver o rapaz.

Ao todo, era uma unidade com 50 a 70 vitanti.

Arjuani terminou o que estava falando e veio em direção de Kai.

– Está melhor?

Ele a encarou, estranhando.

– Não me leve a mal. Você ainda é vice comandante e a vida destes vitanti depende tanto do seu bem estar quanto do meu. Preciso saber que meu grupo terá um líder caso eu sucumba.

– Tão comovente. Que tem acontecido?

Começaram a caminhar para o campo aberto da floresta, a vitanti ignorando o mau humor do companheiro.

– Uma tropa com cem soldados conseguiu chegar aos postos avançados sobre as árvores e, com muito esforço, refizeram o feitiço de escudo.

– Alguma baixa?

– Infelizmente sim. Um dos três comandantes, Erde do alto clã Vildret e outros vinte soldados sucumbiram durante uma luta contra batedores. Parece que inventaram um feitiço que transforma os mortos em criaturas vivas, mas altamente contagiosas. Um soldado viu quando um outro que já havia morrido voltou a vida e mordeu Erde, que teve de decepar o próprio braço para conter o avanço do feitiço.

– Não é um feitiço. – Disse Kai, sombrio.

– Como assim? – Ela parou e se virou para ele.

– É um vírus.

– Que sabe sobre isso?

– Se eu não estiver enganado, isso se parece bastante com uma doença que assolou o continente Reiqin há quase quinhentos anos. Mais da metade da população morreu, mas foi criado, em comum acordo entre os humanos, anãos e elfos, um antídoto que erradicou esse vírus.

– E você sabe como criar esse tal antídoto?

– Infelizmente não. Apesar de ter sido feito para o uso de todos, virou um segredo de estado. – Kai levou a mão à cabeça, ela voltara a girar. Ele meteu a outra mão no bolso e retirou uma pílula branca. – Droga, se os inimigos tem um arsenal tão pesado quanto esse, então...

– Então o que?

– Então eles são bem mais perigosos quanto pensamos. Eu não contei isso, mas...

E Kai contou para Arjuani sobre sua experiência com o Bulgu que, de uma hora para outra, passou a agir estranho.

Ela suspirou fundo, irritada.

– Droga, então Mael estava certo.

– Como assim?

Ela o encarou, como se avaliasse a possibilidade de contar o que sabia. Mas lembrou da ordem de Mael.

– É melhor que Mael te conte sobre isso. Eu não tenho permissão.

– É tão grave assim? – Indagou ele.

Arjuani o encarou e balançou a cabeça.

Ele deu um longo suspiro; estava exausto.

– Então temos que falar com Mael. Preciso saber.  

Arjuani fez uma careta. 

– Não vai dar, ele foi até os postos avançados. Muita coisa precisa de seu aval para funcionar.

Kai coçou a cabeça. Não iria pressionar para saber sobre esse problema que Mael exigiu segredo. Quanto menos soubesse, melhor.

– Ok. E o que faremos?

– Temos que iniciar a missão que foi atrasada quando você se feriu.

– Ir atrás dos mudanti?

Arjuani abriu um sorriso extremamente falso.

– Estamos começando a nos entender, irritadinho.



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