Volume 1

Capítulo 34: JUNÇÃO





– O xamã... Greylous, aquele que tomou seu corpo.

Kai piscou, surpreso ao ouvir tal nome.

Greylous...? Quem será esse? Pensou.

– Meu corpo...?

Nada fazia sentido... quem era esse falando por meio do filho de Kai? Que história mais mirabolante era essa?

– Quem é você? – indagou, dando um passo para trás.

Como se não tivesse sido afetado pela pergunta, o sujeito se virou. Mantinha uma face inexpressiva e olhar frio, apesar de atento.  

– Eu sou uma junção de consciências... uma junção de vontades... Eu sou você, Amencer e o chi.

Eu, Amencer e chi? Kai pensou. Que raios de conversa é essa?

– Vamos, Aidan. Isso é uma brincadeira, certo?

O falso Aidan o encarou, como se ele é quem estivesse brincando. Ergueu uma sobrancelha.  

– Pareço ter emoções? Neste momento, só possuo a habilidade de falar pois carrego sua vontade impressa em mim. Sou apenas um lapso de consciência, enraizado tão profundamente em sua alma, que apenas a conexão entre você, o chi e a espada do alvorecer me despertaram. Não sou possuidor de emoções nem tenho opiniões formadas.

Kai franziu o rosto.

– Então por que está me alertando?

O falso Aidan o encarou. Colocou as mãos para trás e começou a andar.

– Sou como o sistema de segurança imunológico de uma pessoa, Kai. Agi quando seu corpo entrou em alarme, o chi tomou consciência disso... a espada teve grande mérito..., mas você foi o principal causador disto. Sua grande vontade de viver, mesmo inconscientemente... sua determinação, sua resistência alta. Estou aqui apenas para lhe livrar de tudo isso. Tudo que sei é o que você sabe.

– E o que sei?

– Você foi raptado por um espectro de nome Greylous... eu sei disso pois você ouviu este nome enquanto cativo. Neste momento, tenho conhecimento do que ele está fazendo com seu corpo, mas é complexo para explicar. Em algum momento no futuro... não, em algum momento no presente, a vontade de Greylous é deixar este corpo... e isso está próximo de acontecer. Quando acontecer, você voltará a si.

Kai olhou para o chão. Tudo ia ficando lentamente branco... Jim havia sumido.

– Você está em transe, num feitiço nomeado por Greylous como Ilusão Onírica...

Kai ergueu o rosto. Ele sabia que tal feitiço havia sido abolido pelo homem há muitas eras..., mas se algo assim estava sendo feito, então seu portador era realmente poderoso.

– Pelo que vejo, a Ilusão Onírica consiste em prender a vítima numa série de sonhos, em vontades que o próprio guarda no fundo do coração. Com pequenas mudanças aqui e ali, isto se torna a realidade de quem cai neste feitiço... É como se...

– ...Como se aquilo que você mais quer do fundo do seu coração, se torna realidade... – Kai interrompeu, encarando o vazio que o seu redor ia se tornando.

Pela primeira vez, o sujeito encarou Kai com certa emoção. Estava surpreso. O canto de sua boca tremeu levemente e ele inclinou a cabeça pra frente.

– Perfeitamente colocado. Mas... não realidade exatamente, uma vez que seu corpo permanece em transe. Somente sua consciência cai num sonho quase inquebrável.

Alguns minutos se passaram; Kai tornou a olhar para o rosto de seu filho.

– É mentira, não é? Meus filhos... minha esposa... as pessoas da cidade... por que isso...?

– Há coisas demais para explicar, Kai. Mas a principal delas é que quando você voltar a si, tudo o que você passou, também voltará como uma enxurrada para sua mente. Você se lembrará de toda dor, de tudo o que passou durante o tempo em que esteve sob a Ilusão Onírica. Terá de lutar contra a sanidade, haverá de infringir grande força espiritual para não enlouquecer.

– Mas isso... é mentira... diga...

A consciência apenas olhou Kai de soslaio. Não era mentira.

– E minha filha... meu Aidan... minha Ardara... tudo foi... mentira? Uma... ilusão?

Lágrimas caíram dos olhos de Kai. Ele estava devastado.

Uma vida inteira. Uma mentira. Mas seu ódio começou a crescer, como uma onda enorme. Todo esse ódio tomou seu corpo.

– Isso é bom. Mas não deixe que o ódio o domine, Kai Stone. Tendo certa sabedoria acerca do chi, acredito que ele pode ser tanto maligno quanto benigno. Não deixe o ódio lhe consumir. Nem a dor nem a tristeza.

Eles ficaram se encarando por um tempo.

– Preciso que tente despertar, Kai.

O homem ergueu o rosto, surpreso.

– Despertar do que exatamente? Isso tudo ainda é muito suspeito.

– Tente se lembrar de sua vida como Kai Stone. Deve saber que algo está errado.

E ele tinha uma leve noção, realmente.

Lembrou-se de cada vez que encarava Gunter Dito e tinha a breve sensação de que ambos eram próximos. Ou quando olhava para Ómra e sentia que o rapaz não deveria estar ali.

Lembrou-se de todas as vezes que acordou à noite, imerso em sonhos profundos e reais demais para serem apenas... sonhos.

Ele tornou a encarar as próprias mãos. Como isso era possível?

– No momento, a Ilusão Onírica está perdendo um pouco seu efeito.

Kai encarou Aidan.

– E como isso seria possível...? Supondo que seja verdade, uma Ilusão Onírica só era desfeita com a morte do próprio portador...

– De fato. Mas e como seria o efeito e reação quando o lançador de tal feitiço proibido fosse, na verdade, um espectro?

Kai ergueu as sobrancelhas.

Espectros eram, na grande maioria das vezes, espíritos de antigos bruxos e feiticeiros, cujo espírito rancoroso não conseguia se desvencilhar do plano físico, sendo incapaz de ingressar no Hell. Mas, para se manterem com total poder, tinham de ser auxiliados por feiticeiros igualmente poderosos.

Sendo assim necessário uma magia de invocação.

– O feitiço tem prazo de validade...

Aidan assentiu.

Então algo inundou a mente de Kai.

Como se soubesse o que ele estava pensando, Aidan se precipitou.

– Greylous é um Espectro diferente. Foi um xamã em vida... e pelo que sei, ele já estava se precipitando sobre o plano físico, com ideias cruéis demais para sua mente sequer supor. Ainda assim, não posso imaginar quem estaria por trás da sua magia de evocação. Isso continua sendo um mistério para mim, e há de ser seu dever descobrir.

– Qual o nível de poder dele?

– Próximo de um Arquimago.

A expressão de Kai escureceu.

Poucas pessoas poderiam enfrentar um mago tão poderoso... e ele era um desses.

– Não se engane, Kai Stone. Sua força atual não se manterá quando a Ilusão Onírica se desfizer... ledo engano você pensar que seria capaz de enfrenta-lo de frente.

Outra vez ele ficou em choque.

– Mas você terá ajuda. O chi e a Amencer serão de grande importância, além de seus companheiros que hão de lhe ajudar. Você será crucial para a derrocada de Greylous... você entende, não é?

Kai encarou o sujeito por um tempo, hesitação pintando seu rosto. Mas isso durou por meros segundos.

Ele assentiu, decidido.

– Você disse que o transe é quase inquebrável... quer dizer que pode ser desfeito. Me diga... como posso sair disso?

Aidan o encarou.

– Prepare-se então.


***


Sentado numa cadeira dentro de sua tenda, Mael encarava o Quadro Rúnico que criou runas com Kai, na noite em que passaram nos postos avançados na Floresta de Bulogg.

Um sorriso triste pintou seu rosto. Uma ponta de ansiedade inundou seu peito.

Ele vinha tendo essa sensação mais vezes do que gostaria de contar.

Não conseguia dormir ou comer. Sua mente sempre preocupada com algo ou alguém. Essa guerra estava lhe trazendo seus piores dias.

Isto é, se isso pudesse ser definido como uma guerra.

Mael continuou encarando o Quadro Rúnico, esperando por algo.

Já tinha perdido as esperanças quanto à sobrevivência de Kai. Isso era fato.

De repente, o pano de entrada da tenda se mexeu, com alguém passando pelo arco.

Mael não precisou erguer os olhos para saber quem era.

– Acho que tenho uma pista. – Disse a pessoa.

Mael suspirou. Ele ergueu o olhar e parada a sua frente estava Fioled.

A garota tinha vindo muito ao seu encontro, alegando ter pistas de possíveis lugares em que Kai pudesse estar.

Mas a verdade era apenas uma. Ninguém sabia onde ele estava há pelo menos seis meses.

Tudo que tinham como pista era o lugar onde ele foi visto pela última vez.

Mas ao chegarem lá, tudo que encontraram foi um amontoado de pedra sobre pedra, sem qualquer vestígio de que tinha tido alguém ali.

Eles haviam sumido.

E, estranhamente, tudo ficara quieto desde então.

Sem ataque de monstros, sem ataque de Gorilas.

Isso deu tempo para que os vitanti pudessem se organizar, aumentar o poderio militar e treinar a nova leva de soldados.

Eles sabiam que isso não tinha acabado ainda. Principalmente com um Xamã por trás de tudo.

Mael ergueu o olhar, cansado. Não dormia há várias noites.

– Onde? – Perguntou. Ele não queria acabar com as esperanças da garota, mesmo. Não ainda.

Ela piscou, feliz. Se adiantou e colocou um pequeno mapa em cima da mesa de Mael.

Segurou na ponta de baixo e cima e colocou o dedo bem onde tinha um X grande e vermelho.

– Com base na última investigação, os Púrpuros disseram que sentiram certa energia vindo de alguns lugares ao leste de onde Kai foi visto pela última vez. Mas posteriormente descobrimos...

– Descobrimos que era apenas o mana ambiente. Sim, eu li o relatório. Onde quer chegar?

– Aí é que está, Mael. O relatório disse que havia grande concentração de mana naquele exato lugar, quase como se um feitiço viesse dali... Não é estranho? Digo, a própria caverna que estivemos foi absolutamente destruída... Isso é suspeito.

Mael piscou várias vezes. Ele olhou para o mapa, depois olhou para a garota.

Então franziu a testa e suspirou mais uma vez. Massageou os olhos por trás dos óculos de aro redondo.

– Há alguns problemas nisso, Fioled, você sabe...

– Sim, mas...

– Lugares como este que você marcou são conhecidos por sua alta concentração de mana. A própria Floresta de Bulogg é como um imenso pulmão, sendo bombeado diariamente por veias de mana naturais. E tem o éter, possivelmente chi... e mais outra quantidade inconclusiva de energias rodeando.

– Mas...

– O outro ponto é: – Mael ergueu a voz, junto do indicador direito. – Aquela área é uma das mais próximas do território do homem, é natural que tenha concentração de mana em excesso. Sem contar os animais... não podemos simplesmente correr de lugar em lugar só porque um ou outro ponto teve uma explosão de mana. Coisas desse tipo acontecem mais vezes do que você pensa.

A menina tornou a olhar para o mapa e de novo para ele.

– Eu sei, é que... podemos tentar mais uma vez, não é? Digo, só dessa vez.

Mael queria gritar com ela. Mas não o fez. Ele apenas suspirou mais uma vez, cansado demais para outra briga dessas.

– Você sabe que não, Fioled... sabe que não...

– Só dessa vez...

– Não... – Mael socou a mesa. – Não posso ordenar que mais um pelotão perca dias e mais dias atrás de um único sujeito.

Fioled o encarou, os olhos marejando aos poucos.

– Foi esse único sujeito que deu um jeito de encontrar o seu povo que estava perdido por essas florestas... Esse único sujeito que salvou a vida de vários mudanti... inclusive a minha, em troca da dele próprio. Não seja egoísta a ponto de...

– Egoísta? – Mael berrou, interrompendo-a. – Fui o único a mover pelotões para procura-lo, mesmo sabendo que era uma busca infrutífera.

– E ainda assim não é o suficiente. – Disse ela, magoada. – Não cometam o mesmo erro duas vezes, Mael.

A feição do homem escureceu. Era óbvio que ela se referia à Raira do clã Mollis, que teve sua busca anulada antes mesmo de começar.

Apesar de pertencer a um clã, este era de baixo calão, com poucas pessoas influentes. O clã Mollis que uma vez fora prestigiado e imponente, hoje era apenas a poeira de um tempo longínquo e pacífico.

Foi apenas por Fioled ter sumido que os Púrpuro saíram em seu auxílio.

Nem mesmo o Neru’dian tinha autoridade quando se tratava dos Púrpuros. Visto que este era apenas um líder espiritual.

Mael suspirou. Até mesmo Kai teve o privilégio de pessoas saírem procurando-o. A jovem do clã Mollis nunca gozou disto.

– Eu não irei mandar mais gente atrás de Kai, Fioled. Temos que saber a hora de parar. Qualquer um que se atrever a sair da...

Antes de continuar, Mael sentiu pressão aguda correr por todo seu corpo.

Era como se um sistema de alerta gritasse no seu pescoço.

Ele sentiu a gravidade, o clima mudando.

Logo ficou pálido.

Fioled o encarou.

– Mael, está tudo bem?

Antes que ele pudesse responder, ela também sentiu o mesmo.

Ele sabia o porque disso.

Sendo alguém que compreendia a razão, ele era mais sensível a magia ambiente. E, neste momento, todos os seus sentidos alertavam para um único lugar.

Ele se levantou rapidamente de sua cadeira e correu passando pelo vão de entrada.

Do lado de fora, muitos soldados se reuniam, encarando uns aos outros.

Alguns mais pálidos que outros, como se sentissem o perigo real.

Mael varreu seu olhar pelas várias tendas e soldados que ali estavam.

Então começou a andar lentamente, indo em direção à onde seus sentidos apontavam.

Logo, vários vitanti o acompanhavam. Estes eram alguns daqueles que compreendiam a razão. Sabiam que havia algo de errado.

Devia ter cerca de cem, ou um pouco mais.

Quando chegaram num lugar um tanto afastado, a sensação piorou.

Um dos antigos púrpuros olhou ao redor, a testa franzida.

– Não compreendo... É como se meus sentidos gritassem para vir para cá...

Alguns concordaram.

– Tem algo estranho...

Mael disse, franzindo a testa. Então seu pelo se eriçou e sua pele se arrepiou.

Ele arregalou os olhos e, antes de pensar em qualquer reação, seu próprio corpo reagiu.

– Fujam! – Mael ordenou.

Num momento ele estava ao lado de uma centena de vitanti, noutra, estava pulando do alcance deles.

Apenas uma dúzia reagiu a tempo, junto de Mael.

Quando esta dúzia deu por si, estavam estupefatos.

Olhando para o lugar onde estiveram antes, havia apenas uma cratera enorme.

Algo havia engolido os vitanti que não reagiram a tempo. E levou junto um enorme pedaço de terra.

Mael suava frio. Que é que tinha acontecido?

Uma risada sarcástica e fria soou.

Quando aquele pequeno grupo ergueu o rosto, dois homens os encaravam.

Eram bem parecidos, exceto que um tinha cabelos negros e escorridos para trás, nariz torto e seus olhos eram de peixe morto e cinzas feito céu nublado.

O outro tinha um cabelo cor de aveia e olhos verdes. Seu rosto era quadrado.

Parecia dominado pela loucura.

TSK! Quase que eu os peguei em cheio, Tom. Ainda sobraram alguns ratinhos, olha.

Disse o sujeito de olhos verdes, apontando para o grupo de vitanti.

O vitanti que havia falado antes se adiantou, raiva estampada em seu rosto.

– Que é que você fez com os outros? Eram todos ótimos guerreiros.

O homem de olhos verdes parou de sorrir por um tempo, então encarou Mael.

– Você parece ser o mais forte. Deve ser Mael Eblomdrude.

Irritado, um dos vitanti deu um passo à frente.

– Você ousa ignorar Drauzio do clã Vieggo? Qu-

– Silêncio. – Disse o sujeito de olhos verdes, erguendo uma mão e fechando-a.

No mesmo instante, o soldado que falava calou-se.

Seu corpo caiu no chão, sem vida. Onde deveria estar seu maxilar, havia apenas uma fenda circular, com sangue pingando e os músculos e ossos perfeitamente arredondados.

Suor frio escorreu das costas de Mael.

O sujeito de olhos verdes olhou de volta para o General e sorriu.

– Me chamo Jimothy Vinice e é uma honra finalmente conhece-lo, Mael da linhagem Eblomdrude. – Um sorriso frio se ergueu em seu rosto. – Estou aqui para matar você, seus cachorros lilases e pegar a cabeça de seu querido pai. Então, quem é o primeiro?



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