Volume 2
Capítulo 79: TENTE DE NOVO
O sujeito não parecia entender a língua de Kai. Ou se entendia, preferia não dizer nada. Ele achou melhor assim. Não queria ficar jogando papo furado.
Eles acabaram voltando pelo mesmo lugar que Kai viera, enfim passando pela sala anterior. Kai franziu a testa, mas com sua mão apertando a nuca do sujeito, e o cacetete pulsando com uma corrente de 80 miliamperes.
Continuaram virando em corredores até que chegaram num beco sem saída. Kai apertou as sobrancelhas.
– Tá querendo me enganar?
Ele aproximou a arma do sujeito, próximo às costelas. Seu desespero quase arrancou gargalhadas de Kai, que deixou para sorrir depois.
O guarda se afastava da corrente, arqueando as costelas num ângulo estranho. Ele tentava se desvencilhar do aperto, mas não conseguia. Era fraco demais.
Kai apertou sua nuca.
– Vamos!
O guarda ergueu as mãos, trêmulas.
– A-a saída é aqui! – Balbuciou, num sotaque forte.
Então o desgraçado sabia falar.
Kai afastou esse pensamento e encarou a parede. Havia dois batentes e uma rocha redonda na parede, claramente não fazendo parte do resto das rochas. Seria uma porta? Ele não sabia.
Apertou os olhos, tentando descobrir qualquer coisa que fosse. Uma fechadura, uma maçaneta, qualquer coisa. Mas nada havia.
Kai olhou de novo para o guarda. Sua paciência estava acabando.
– Então abre! – Falou, balançando e apertando o sujeito.
– N-não p-posso.
Kai bufou. Pra que fazer tanta hora por um negócio desses?
– Não pode ou não quer?
– Não posso! – O guarda balbuciou, engolindo em seco. – Um alerta será acionado, e haverá caos e...
“Então é isso?” Pensou Kai.
– Lido com isso depois. Agora abra e me diga onde estão minhas coisas.
– E-eu não se-sei. Sou apenas um guarda, juro... senhor.
Kai começava a entender como Abeeku tinha dizimado essa raça. Eram fracos, seus guardas sequer eram capazes de suportar preso acamado. Avalie um homem que se intitulava Imperador. Se Abeeku fosse um homem.
Não desmerecendo a força de Abeeku, Kai viu em primeira mão como um subordinado seu era forte. A força de Kesel era algo a se considerar. Isto é, quando estava vivo.
Kai tinha o receio de descobrir que o sujeito não estava no topo da pirâmide entre as forças de Abeeku. E isso seria um problema. Ele mesmo teve problemas contra O ministro, mal escapando com vida.
Observando agora, via e sentia o resultado disso: queimadura evidentes em sua pele, dificuldade para respirar, a fina camada que separava sua vida da morte: um longo traço que latejava em seu peito a cada respirada, a cada andar, a cada palavra dita. Ele mesmo não sabia como suportou a dor até aqui.
Lembrava-se do longo rasgo feito, e pior: sentia. Sabia que ainda estava ali, livre de infecções, mas não das marcas. Talvez tivesse recebido um tratamento que afastasse a dor, talvez a falta dela fosse fruto da adrenalina. Pra bem ou pra mal, ele não sentia dor, mas sentia o rasgo feito. Seria impossível não sentir.
E vendo como ele, um homem retalhado, cheio de mazelas, foi capaz de facilmente – diga-se de passagem – colocar sete guardas para dormir... as coisas estavam ruins. Se tivesse que lutar contra Abeeku e não houvessem aliados... ele morreria naquele fim de mundo.
E essa sensação crescia a cada momento, a consciência de que uma batalha era inevitável. Ele suspeitava qual era seu propósito ali, só não gostava de admitir tanto quanto deveria. E odiou os protetores por isso. Mais uma vez.
Afastando os pensamentos, Kai suspirou.
– Abra! – Sua voz foi carregada de intenção. Mesmo que por pouco, chi vazou, e uma dor irradiou do tanden de Kai. Era como se o bracelete estivesse fazendo isso, forçando seu chi a não agir. Enclausurando seu Tanden. Ele se sentia claustrofóbico.
O guarda meteu a mão trêmula nas vestes e puxou um pequeno cristal menor do que um mindinho, feito de safira verde. Era cristalino e reluzia verde sobre verde.
– B-basta inserir na fresta, no meio desta rocha... só não sei se tenho o direito de...
Kai tomou a safira na mão e sorriu.
– Balela.
Ele olhou para o sujeito, recém livre do aperto na nuca. Suspirou.
– Mais uma coisa: como tiro isso? – ergueu o braço da algema.
O guarda se encostou na parede, parecendo menor do que era. O que era isso? Agia feito uma criança. Kai estranhou essa ação. E voltou a pensar na fraqueza desses guardas e no problema a se tratar.
– E-eu não p-posso...
Irritado, Kai pegou-o pela nuca de novo e tacou sua cabeça na parede. O sujeito gemeu.
– Tente de novo.
Sem pensar duas vezes, ele meteu a mão nas vestes de novo e puxou um estranho metal. Era liso e mais fino que, pasmem, um dedo mindinho. No entanto, era grande o bastante, do tamanho de um dedo médio. Seu segredo não tinha marcações nem dentes.
Kai aparou o objeto e revirou-o até que ficasse de ponta e ele viu: o segredo estava na ponta.
– P-por favor, não me machuque... mais. – Balbuciou o guarda.
Observando a chave, Kai trocou o cacetete de mãos e pegou-a com a direita, inserindo no sulco do bracelete. Houveram vários cliques e, em instantes, a algema se iluminou.
Mas não aconteceu o que Kai esperava. A chave inflamou-se e começou a derreter, virando pó. O bracelete continuou estático no pulso dele.
“Seria mais fácil ter dito que não a tinha do que tentar ser poupado...” Kai pensou, mais irritado. Ele já imaginava que algo assim poderia acontecer... quer dizer, não que a chave derreteria. Mas pensou que possivelmente não serviria.
Talvez a chave real estivesse com os guardas anteriores, talvez não. Kai não pensou direito, foi muito apressado. Mas deixou isso de lado. Ele suspirou e olhou para o guarda, que ainda tremia.
Pegou o rapaz pelo cangote de novo e bateu sua cabeça três vezes na parede.
– Isso foi por tentar me capturar... isso por fingir que não entendia... e isso por tentar me enganar.
Seu capacete rachou e ele caiu no chão. O baque produzido fez com que o capacete rachasse mais, revelando seu rosto. Aquilo sim foi uma surpresa para Kai.
Por trás daquela armadura havia um garoto, não muito mais novo do que Kai. Talvez tivesse treze ou quatorze. Mas era um menino. Precoce.
O que mais chamou a atenção foi que ele era diferente dos cinzentos que estavam dissecando Kai. Sua pele era cinza, sim, mas era como e fosse feita de porcelana, lisa e límpida.
Sua boca não era desprovida de lábios, que eram roxos por sinal. Suas orelhas eram um pouco curvadas, com brincos e broches. O nariz era aquilino, fino e pontudo. E havia cabelo. Tanto o pelo sobre sua cabeça quanto os cílios eram quase brancos, feitos de pérola brilhosa e prateada. Era muito bonito. Mas uma criança.
Kai observou uma cicatriz antiga vertical em seu lábio. E observou o sangue escorrer da ponte de seu nariz, uma ferida feita há exatos trinta segundos. Era humano, mais próximo de um vitanti ou elfo.
De repente Kai se lembrou de algo que não deveria ter esquecido. Mas já voltava a se esvair de sua mente. O elo era fraco para se manter, e ele não sabia se deveria ser uma memória ou um sonho...
Mas a imagem de seres altos luminosos, de cabelos prateados em todo seu esplendor, veio a sua mente. E se foi. Ele mesmo não conseguia manter uma imagem detalhada dessa memória.
O que diferenciava este garoto daqueles cinzentos? Ou os cinzentos desta imagem que já se afastava de sua mente? Ele não sabia.
Piscando e afastando a culpa que ousava se formar, Kai suspirou.
Ele encarou a rocha com ar renovado. Tinha coisas a fazer, e não podia ficar se prendendo a detalhes bobos. A primeira era encontrar Batista e o Guardião. Depois encontrar sua espada, depois descontar sua raiva no imbecil que ordenou que suas memórias fossem vasculhadas.
Ele se aproximou da rocha buscando a fresta mencionada pelo guarda. Nada.
Meteu a mão nas vestes – que eram ásperas, e com isso adicionou outra nota mental: pegar suas próprias roupas de volta – e puxou o cristal.
Imediatamente o verde acendeu, e a fresta na rocha apareceu.
Kai inseriu o cristal, e observou enquanto o verde pulsava eletricamente.
A rocha se moveu para o lado, dando lugar a um corredor estreito. Luzes vermelhas piscaram em profusão, com uma zoada enjoativa de fundo. Alarmes soaram, e uma algazarra parecia começar.
Sem perder tempo com mais nada, Kai lançou um olhar cauteloso ao jovem guarda, se perguntando se os outros também eram garotos feito esse. Talvez fosse só esse... pelo menos gostava de pensar assim.
Kai correu pelo corredor estreito, sentindo o cansaço se alastrar. Talvez não devesse ter ficado surpreso com a falta de dor. Com a sua sorte, era óbvio que isso se tornaria o contrário. E se tornou.
Ele correu e correu, diminuindo o corredor às pressas.
A passagem era estreita, mas Kai logo chegou ao fim. Desceu e subiu degraus, aparentemente colocados sem nenhuma razão ou funcionalidade. Virou esquinas para esquerda e direita, e finalmente chegou num novo vão, estreito e de teto baixo.
Precisou passar de lado e, após isso, se agachar para passar por uma estreita passagem no chão.
Do outro lado, enxergava pouco, e talvez por isso sua mente vagueou de volta para o jovem guarda.
Ele se via no menino. Tinha mais ou menos a mesma idade quando começou a fazer trabalhos para Enoryt.
Tinha treze quando foi em sua primeira missão. Talvez fosse o bilhete de boas-vindas do lorde, um lembrete e um aviso de que o usaria ao máximo. E nesta mesma missão, assassinou pela primeira vez.
Mas foi necessário, e nunca pensou o contrário disso. Nunca pensou que fora obrigado a fazer o que fizera. Eram assassinos, fugitivos, estupradores e saqueadores, que estavam colocando as pequenas vilas em pavor e medo constante.
Uma missão. Um garoto sem a carta mágica, numa missão. A primeira de muitas. Mas Kai sempre teve escolha, ou era o que pensava.
Haviam outros para fazer o trabalho? Provavelmente sim. Mas a vida era como era.
Ele era uma criança. O guarda é uma criança. Que diferença fazia? Toda.
Talvez não houvesse escolha, para ambos.
Será que não havia? Será que Kai fizera tudo o que Enoryt e Siobhan esperaram exatamente? Será que conversaram sobre seu futuro, a joia, o títere. Os Murphy usando-o feito um ventríloquo. Hilário. Sádico. Mórbido.
Para bem ou para mal, Kai não os culpava, mesmo que quisesse. Tinha raiva? Agora, sim. Mas as circunstâncias foram apropriadas. Ele fez uma mudança, mesmo que pouca.
Este menino, o jovem guarda, será que tinha escolhas? Será que fazia isso por querer, ou porque a situação era tão angustiante que precisavam colocar crianças entre o fio da navalha e a casta última de inocentes?
Estava tão ruim assim?
Kai começou a imaginar se fosse outro em seu lugar. Será que este teria pena, nem ligaria para quem quer que estava atrás daquela máscara? Kai não estava, mas já não mataria os guardas mesmo que fossem homens treinados, avalie reles crianças.
Será que outra pessoa teria segurado seus socos, mesmo diante da morte iminente. Kai constantemente estava nesse dilema, entre matar e ser morto. Pelo menos sabia distinguir quando alguém deveria ou não ser morto, não era inocente ao ponto de querer que fosse diferente. Carregava o peso de lutas, batalhas, pressão, vidas em jogo, núcleo destruído, mente arruinada, tortura.
Kai era gentil, e esse poderia ser seu mal. Esse era seu mal. Ele pensava no próximo, tinha pena, mesmo que não deixasse aparentar, e seu modo de evitar tudo isso era não fazer perguntas demais, pois sabia que seria realocado nisso tudo. Era seu cerne, pra bem ou mal.
Mas Kai poderia permanecer assim? Mesmo diante de pessoas que queriam seu fim e de seus aliados? Ele não hesitaria em matar, mas seu núcleo, seu ser, seu brio, continuariam o mesmo, imutáveis, inabalados, envoltos nas dores do mundo, feito um anticorpo que protege as células de vírus, de novo e de novo, num ciclo interminável de tragédia, sangue, perdão e medo. Um mártir, alguém a se opor. Sem nada a receber em troca, nem mesmo querendo algo em troca.
Sua mente facilmente foi entre o drama do menino e sua vida em Neve Sempiterna. Entre o menino e... mais quantos poderiam estar nessa, e os fios do titereiro, presos em suas articulações, manipulando-o.
Kai fazia o que queria, ou era forçadamente inclinado a acreditar que sim?
Muitas perguntas, poucas respostas. Sempre que ele acreditava encontrá-las, tudo se embaralhava. Ele achava que sabia quais as necessidades do mundo, que seu propósito era se opor a tiranos e valentões, pessoas que só queriam destruir e tomar. Pensava que poderia ser a linha tênue entre eles e a felicidade de pessoas gentis. Mas sua própria gentileza vinha sendo colocada a prova, e seria cada vez mais, colocando a prova também seu limite, querendo ver, lutando pra descobrir se ele ruiria ou suportaria.
Kai suportaria?
Ele caminhou pelo corredor, que era fracamente iluminado pela luz vermelha do alarme. Uma sirene passou a tocar em algum momento.
Kai virou uma esquina e agora havia luz. Ele suspirou fundo e apertou bem o cacetete. Um sorriso fraco e um olhar frio, ensandecido, preencheram seu rosto.
– Suportar, eu acho? – se perguntou, olhando para frente.
Diante dele, havia um corredor, mas era mais como um túnel de teto abobadado e baixo. Suas paredes foram substituídas por tijolos intrinsecamente bem colocados, e um líquido viscoso vazava.
Na sua frente, uma horda de guardas, portando cacetetes, bastões, lanças e maças. Todos esperavam por ele, em torno de cem... ou mais. Kai não tinha forças... só com artes marciais não conseguiria.
Então iria se entregar? Se dar por vencido?
– Nem fodendo! – Gritou, entredentes, respondendo a seus pensamentos.
Ele apertou mais ainda o cabo, e se posicionou. As luzes mudaram de cor, piscando entre vermelho e breu. O líquido piscou, as respirações se tornaram tensas.
Kai sorriu doentiamente, ele era louco, e pulsava por mais adrenalina. Suportaria ou morreria tentando.
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