Cavaleiros do Fim Brasileira

Autor(a): zXAtreusXz


Volume 1

Capítulo 10: Manual de Como Não Ser Adotada

— Kant? — repetiu a mulher com uma sobrancelha arqueada, antes de abrir um largo sorriso. Sem esperar resposta, se aproximou para um abraço caloroso. — O que você tá fazendo aqui?

— Bom ver que chegou bem à cidade, Marie. — retribuiu abraçando-a de volta.

“Sabia que lembrava da cidade por algum motivo.” pensou

— Posso dizer o mesmo. — ela recuou um passo. — E quem são suas companheiras?

— Ah, claro. Marie, essa é a Bella, e essa pequenininha aqui é a Trudy. — apresentou, fazendo um gesto para as duas.

Trudy o encarou friamente enquanto Marie e Bella se cumprimentavam com um abraço breve e cordial.

— Meu Deus… tá tudo bem com você? Sua pele tá meio… vermelha. — perguntou Marie, inclinando a cabeça em preocupação.

— É o sol... — murmurou Kant, lançando um olhar de canto para Bella.

Bella bufou, revirando os olhos.

— Aham. O sol…

— Eita, entendi. — respondeu Marie, e então se agachou diante de Trudy com um sorriso acolhedor. — Que nome lindo o seu, sabia? E olha, Trudy… não precisa se sentir culpada, viu? Eu sou vegetariana, sempre tem espaço pra mais um nessa jornada.

Seu tom era suave, quase como se contasse um segredo só entre elas.

Trudy ficou em silêncio por um instante, encarando a mulher. Depois voltou a atenção para o pedaço de carne nas mãos como se fosse o centro de um dilema existencial. 

Soltou então um suspiro pesado com os olhos ainda marejados.

— Não… tô de boa.

Marie soltou uma risada leve e sincera, endireitando a postura enquanto cruzava os braços.

— E então? O que os trouxe até Genebra? — perguntou com curiosidade genuína, antes de erguer uma sobrancelha em direção ao rapaz. — E você não tinha dito que era casado e tinha uma filha.

Ele congelou na hora, pego de surpresa.

— O quê?! Não, não! Não somos... não estamos juntos! — começou a gesticular, atrapalhado. — Quer dizer, estamos viajando juntos, mas... só isso! E a menina também não é nossa! Digo, não é filha da gente! E a gente não sequestrou ela nem nada.

Bella suspirou antes de intervir, com um tom mais calmo:

— Somos apenas amigos a passeio. Viemos ouvir histórias de aventureiros que andam pelo mundo.

— Então acertaram em cheio o destino. — Marie fez um gesto sutil com o queixo, indicando um grupo de pessoas reunidas ao redor de uma grande fogueira um pouco mais à frente na feira. — Tá vendo aquela roda? Alguns ali já cruzaram a Europa inteira... e tem quem diga que foram além.

— Aí está você, Marie! — chamou uma voz masculina, aproximando-se. Era o padre Louis, surgindo entre a multidão com uma garrafa de vinho em mãos. — A feira está lotada hoje, mas só por essa garrafa aqui já valeu a jornada!

Ele ajeitou os óculos no rosto antes de pousar os olhos em Kant.

— Ora, ora... este não é o seu amigo da noite passada?

— Exatamente, padre. Ele e as amigas estão explorando o mundo.

— E procurando por um bom vinho, se possível. — completou Bella, com uma expressão travessa, fixada na garrafa que o padre continha.

— Nesse caso, já encontraram os dois destinos. — brincou o padre, levantando ligeiramente a garrafa como se brindasse.

— Que ótima notícia! — Bella tomou a frente, lançando um olhar sugestivo para Kant. — Sabe o que mais? Acho que você devia ficar aqui, bater um papo com a Marie... aprender mais sobre a cidade e tudo mais. Já eu e Trudy vamos ali ver se descobrimos algo.

Ele entendeu de imediato. 

Sabia que Bella estava tentando afastá-lo de forma sutil, e mesmo preferindo ir com elas, recusar na frente de Marie soaria grosseiro.

— Ah... claro. — murmurou, coçando a nuca com um leve constrangimento.

— Ótimo! Padre, poderia nos apresentar ao pessoal da fogueira?

— Com o maior prazer. — respondeu ele, já girando nos calcanhares para guiá-las.

Bella lançou um último olhar, acompanhado de uma piscada discreta, para o companheiro, antes de puxar Trudy pela mão.

A garotinha ainda enxugava os últimos vestígios de lágrimas no rosto.

Olhou para Bella com um franzir de cenho:

— Bella... por que o Kant não vem com a gente?

— Porque ele é teimoso. — resmungou, com a atenção voltada para a trilha à frente. — E provavelmente vai tentar cavar informações sobre artefatos, o que até seria útil… mas no momento, quero focar em outra coisa.

— Tipo?

— Os irmãos dele. Talvez alguém aqui saiba de alguma pista. — murmurou em tom conspiratório, puxando Trudy com mais firmeza.

Enquanto elas se afastavam em direção à fogueira, o som da feira voltava a preencher o fundo com conversas, risadas e música.

— Suas amigas são adoráveis. — Marie continha um sorriso caloroso enquanto acenava para Trudy.

— Com certeza são. — confirmou Kant, embora o tom cético e a expressão vaga dessem a entender o contrário.

Ele lançou um breve olhar para Marie e fez um gesto com a cabeça, chamando-a para acompanhá-lo pela feira.

— E então… você e o padre parecem bem próximos, não?

— É, somos sim. — respondeu ela, girando distraidamente uma das mechas loiras que caíam sobre o rosto com o dedo. — Nunca tive uma família de verdade… ele acabou sendo quem me ensinou quase tudo que sei.

Kant desacelerou os passos, absorvendo aquelas palavras.

— Pensei que tivesse me dito que vinha de uma família religiosa.

— Eu disse. — deu uma risadinha, envergonhada. — Achei que nunca mais fôssemos nos encontrar… só queria causar uma boa impressão.

— Hm. — riu de leve em resposta enquanto corria os dedos por um conjunto de facas expostas em uma barraca. — Para alguém religiosa, devia saber que mentir é pecado.

— Engraçadinho. — rebateu ela, com um soquinho leve no braço dele.

Depois virou-se, deixando os braços pendurados atrás das costas, e passou a observar as bancas de frutas e pães.

— Quando eu era só um bebê, me deixaram na porta do orfanato aqui da cidade. — sua voz vinha serena, mas havia peso nas entrelinhas.

— Sinto muito.

— Não precisa. — respondeu com um sorriso tênue, sem encará-lo. — Pode parecer trágico, mas… acho que se não fosse por isso, não seria quem sou hoje. Fiz boas amizades lá. Algumas viraram minha verdadeira família.

Ela abriu a bolsa e tirou de dentro uma pequena bíblia, manuseando-a com carinho.

— Esse livro... sem dúvidas é uma das maiores provas de que fui feliz.

O rapaz soltou um suspiro quase cínico ao ver o objeto. Um gesto sutil, mas claro.

Marie franziu levemente o cenho:

— Qual o problema? Da outra vez que toquei nesse assunto, você também reagiu assim.

— Não me entenda mal. — Ele cessou os passos com as mãos nos bolsos e o olhar perdido entre as barraquinhas por um momento. — Eu só… não consigo acreditar.

— Em Deus? — perguntou ela, com cuidado.

Kant hesitou, antes de responder:

— Pode ter certeza que nele eu acredito. Só não acho que ele realmente se importe com a gente.

— E por que pensa assim?

— Eu tenho meus motivos… — murmurou, olhando para o chão como se buscasse respostas ali.

Ela deu alguns passos em direção a ele.

— Se quiser conversar sobre isso...

Ele balançou a cabeça em negação, se afastando e retomando a caminhada entre as barracas.

— Não precisa se preocupar, são só coisas minhas. Nada demais.

Desviou o assunto com uma breve pausa antes de continuar:

— E o livro? É tão importante pelo que tem dentro ou tem outro motivo?

A jovem assentiu, os olhos perdidos por um instante na própria memória.

— No orfanato, cresci com muitas crianças… mas uma em especial se tornou minha melhor amiga. Éramos inseparáveis. Brincávamos, fazíamos bagunça, corríamos por todo lado… tudo que duas crianças poderiam fazer juntas.

Ela fez uma pausa, respirando fundo antes de continuar.

— Um dia, ela foi adotada. Algo que deveria ser maravilhoso… se não fosse por um detalhe. A família não era daqui, e ela teve que partir de repente. A única coisa que me deixou… foi essa bíblia. — prosseguiu apertando a bíblia com carinho. — Disse que um dia voltaria, que finalmente seríamos irmãs de verdade.

Por um momento, ela apenas acariciou a capa gasta do livro, antes de devolvê-lo à bolsa.

— Depois disso, fui adotada várias vezes. — uma risada baixa escapou, quase irônica. — Mas eu fugia de todas.

Kant lançou-lhe um olhar de lado, e esboçou um sorriso contido. Não surpreso, compreensivo.

— Sempre voltava pro orfanato. — ela continuou. — Me esgueirava durante a noite enquanto todos dormiam. Me trancava no sótão e ficava lá, quieta, só esperando a nova família aparecer no dia seguinte e perguntar às freiras se eu tinha voltado.

Ela balançou a cabeça com nostalgia.

— Nas primeiras vezes, as freiras ficaram desesperadas, achando que eu tinha sido sequestrada ou algo assim. Mas depois acabaram se acostumando.

Pararam diante de uma banca com objetos religiosos. Marie se aproximou, passando os dedos por um terço de madeira envelhecida. O gesto era quase inconsciente.

— Um dia, o padre percebeu o que estava acontecendo. Entendeu que eu não queria ir embora de verdade. Então... me acolheu. Não oficialmente, mas foi como se fosse. Me levou pra igreja, começou a me ensinar tudo o que sabia, tudo em que acreditava.

Ela então o fitou com um sorriso sereno, sem nenhum traço de arrependimento.

— E foi assim que me tornei quem você conhece hoje… E quanto a você? Como era sua família?

— Minha família? — repetiu, como se a palavra soasse distante.

A jovem apenas assentiu, esperando.

— Acredite, não é algo que você queira ouvir. — ele respondeu.

— Ah, não vem com essa. — cruzou os braços. — Eu acabei de abrir minha vida inteira pra você. Agora é sua vez.

Kant suspirou, desviando o olhar.

— Tá bom... Resumindo: éramos quatro irmãos. Três homens e uma mulher. Minha mãe morreu depois de dar à luz ao caçula — ele nasceu doente. Por causa disso, nos mudamos para longe da cidade. Algum tempo depois, meu pai morreu também.

Fez uma breve pausa, a voz ainda firme, mas com um traço distante.

— Depois disso… cada um seguiu seu próprio caminho.

Ela ouviu tudo em silêncio, os olhos arregalados.

— Mas e seu irmão doente?

— A, ele melhorou…

— Essa história… você tá falando sério?

Ele deu de ombros, encarando o chão como se revisitasse lembranças que preferia não mexer.

— Pulei alguns detalhes importantes. — admitiu. — Mas acho que já deu pra entender o principal.

— Caramba... — Ela passou os dedos pelo cabelo enquanto digeria tudo o que acabara de ouvir.

Antes que pudesse dizer algo mais, uma voz animada surgiu da loja de artigos religiosos:

— Marie, querida! Que vestido lindo está usando hoje!

Algumas freiras vinham em sua direção, sorrindo calorosamente.

— Obrigada, irmã Marguerite. — retribuiu com elegância, curvando-se um pouco e puxando as laterais do vestido num gesto gracioso.

— Essa é a nossa doce Marie. — comentou outra freira, com os olhos brilhando de afeto.

— Não exagera, irmã Agnès. Vocês também estão lindas.

— Estamos sempre com essas roupas, minha querida. — brincou uma terceira, rindo ao apoiar a mão no ombro de Marguerite. — E quem é seu amigo?

Marie virou-se um pouco.

— Lembram do rapaz que comentei? Aquele que me ajudou e me levou até o padre? Esse é o Kant. — voltou-se para ele o puxando para perto. — Kant, essas são as irmãs Marguerite, Agnès e Thérèse. — completou, apontando com o olhar para cada uma delas.

— Um prazer conhecer as senhoras. — cumprimentou-as, com um aceno respeitoso.

— Nada de tanta formalidade, filho. — Agnès interviu, soltando uma risada leve. — Não estamos no meio de uma missa.

— Ele está aqui com umas amigas — completou Marie. — Vieram passear e ouvir histórias dos viajantes.

— Que maravilha! — exclamou Thérèse, animada. — Então venham conosco. Temos muitas histórias de nossas viagens pela Europa.

— Claro. — respondeu Kant, sorrindo cordialmente. — Vou gostar de ouvir.

Apesar da expressão contida, havia algo sincero em sua voz — como se, por um momento, se permitisse respirar com mais leveza na presença daquelas senhoras.

Mas, ao fundo da feira — entre barracas decoradas com tecidos desbotados e lamparinas de óleo apagadas — uma sombra deslizava em silêncio.

Movia-se com calma, quase imperceptível, contornando mercadores e clientes como se fosse parte da própria escuridão. 

Quem cruzava seu caminho, mesmo que por um instante, parava em choque. O corpo era inteiramente escuro, sem traços, sem detalhes — apenas o contorno lembrava o de um homem robusto. 

Os olhos vazios, a ausência total de expressão... havia algo profundamente errado naquela presença.

Ela se esgueirava entre

 as bancas como um animal oculto pela mata, fixo no rapaz.

E seguia.

Cada vez mais perto. 

Muito perto.

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