Volume 1
Capítulo 9: Você Por Aqui?
— O quê? — Ele não soube disfarçar o choque.
Ela desviou o olhar, a respiração presa, como se estivesse prestes a mergulhar em águas que evitava há anos.
— Minha mãe era uma meretriz... — seus lábios estremeceram, só de pronunciar essas palavras. — Me vendeu ainda no ventre.
Fez uma pausa. O silêncio entre eles pareceu se condensar no ar.
— Ela fez um pacto. Queria o amor do homem que a engravidou. E eu… eu fui o preço.
A voz saiu baixa, quase sem força, e por um instante, Bella pareceu tão pequena quanto a lembrança que carregava.
— Foi assim que nasci… com esses traços, com essa maldição cravada no sangue.
Ela esboçou um sorriso sem cor — não de humor, mas de dor antiga que já não surpreende. Seus dedos deslizaram pelo próprio braço, como se buscassem a criança que um dia foi e que nunca teve chance.
— Pode achar que recebe olhares... mas eu cresci sendo chamada de aberração por quem devia me proteger. As pessoas olhavam pra mim como se eu fosse uma praga. E o pior é que... eu não podia fazer nada. Não podia lutar contra o que minha mãe escolheu por mim.
Um silêncio pesado se instalou.
— A única pessoa que me enxergou de verdade… — a voz dela falhou, apertou os olhos, prendendo a lembrança antes que ela a transbordasse. — alguém que me mostrou o que era ser amada… foi meu irmão.
Ela abriu os abriu lentamente. Mas o que havia neles agora era outra coisa. Não mais fragilidade. Mas raiva.
— E eu vi ele ser assassinado. Bem diante de mim.
O rapaz continuava em silêncio, com as palavras presas na garganta. O riso de Trudy, ao longe, parecia vir de outro mundo — um contraste cruel com o peso da revelação.
Bella piscou rapidamente, espantando as lágrimas antes que se rendessem. Endireitou os ombros. Firmou o maxilar.
Quando voltou a falar, sua voz não tremeu. Mas havia um corte afiado em cada sílaba.
— Desde então... eu nunca mais deixei ninguém pra trás. E eu não posso Kant! Não posso aceitar que mais pessoas tenham a mesma vida que eu tive… — murmurou, a voz embargada. — Eu não pedi para nascer assim...
A última palavra saiu quase sem fôlego, como se deixasse para trás uma parte de si. Ficou só o silêncio. E nele, o vazio de alguém que nunca pode ser inteira.
Kant a encarou por um momento. Então estendeu a mão e segurou a dela, firme, sem hesitar.
— Ei... — seu tom era mais brando do que o usual — pode respirar tranquila. Estamos todos juntos nessa.
Seus olhos encontraram os dela, e havia uma convicção neles que parecia maior do que ele próprio.
— Eu prometo… não vou deixar esses malditos conseguirem o que querem.
Bella piscou devagar, como se ainda tentasse processar aquelas palavras. O rapaz, então, se levantou de súbito, a cadeira rangendo levemente.
— Aproveitando... Você disse assassinos. Não demônios.
— Notícia boa né? Alguns humanos também estão envolvidos — ela respondeu. — Gente que abriu mão da alma por poder.
Kant assentiu, pensativo.
— Beleza... vou me lembrar disso. — esticou os braços como se espantasse um peso dos ombros. — Enfim, bora logo. Quero ver essa tal feirinha que você comentou.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Você está dizendo que vai procurar informações sobre seus irmãos?
Ele deu de ombros, irônico.
— Não... estou dizendo que vamos procurar informações sobre artefatos. — piscou em provocação.
Ela soltou um suspiro teatral, revirando os olhos, mas havia um sorriso discreto despontando em seus lábios. Levantou-se da mesa, caminhando em direção ao saguão.
Kant a seguiu, mas antes de passar pela porta, deixou a atenção recair uma última vez sobre o casal ao fundo. O bebê ria enquanto era alimentado, os pais trocavam olhares ternos entre uma colherada e outra.
Uma expressão tranquila aflorou, breve e silenciosa, antes que voltasse para acompanhá-la.
— Vamos, Trudy. A gente precisa ir — Bella se aproximou da garota, pousando as mãos suavemente sobre seus ombros a guiando para fora do hotel.
A garotinha resmungou algo ininteligível, mas não resistiu. Apenas a seguiu com Grimmuff em mãos.
Enquanto isso Kant se aproximou do balcão e jogou as chaves em direção ao atendente.
— Valeu, parceiro. Ah, manda um abraço pro senhor que nos atendeu de madrugada. Ele foi muito gentil.
O recepcionista pegou as chaves no ar e franziu a testa, confuso.
— Senhor? Mas… não temos nenhum funcionário homem no turno da madrugada.
— Como assim?... — perguntou, intrigado
Antes que a conversa continuasse, o recepcionista desviou a atenção para alguém que descia as escadas em direção ao salão do café da manhã.
— Ei! Não pode entrar com essa vestimenta no restaurante, senhor!
O rapaz parou e se virou com a expressão entediada. O cabelo preso num coque samurai, as laterais da cabeça raspadas. No pescoço, uma corrente de metal escuro com um anel do mesmo material pendurado, ambos opacos sob a luz. Cada orelha carregava um brinco de pedra negra, discreto, mas marcante. No peito nu, um casaco de manga curta, aberto. Usava calças largas e botas de couro já bem gastas.
— Como não pode? — ele apontava para si. — Isso aqui é roupa, qual o problema?
— Até pode ser, senhor, mas precisa abotoar o casaco. Tem famílias no salão.
O rapaz bufou alto e, com má vontade, começou a fechar os botões. Enquanto seus dedos se moviam, algo neles chamou atenção — uma coloração incomum, quase hipnótica.
Os polegares tinham o tom intenso de brasas vivas, como se guardassem calor sob a pele.
Os indicadores exibiam um violeta profundo, lembrando o céu no instante exato em que o sol desaparece no horizonte.
Os dedos médios mantinham a coloração natural, seguindo o padrão da pele.
Já os anelares brilhavam num cinza metálico, reluzente como aço recém-forjado.
Seus mínimos como a neve, quase translúcidos sob a luz suave do saguão.
As unhas seguiam o mesmo padrão de cores, reforçando aquele contraste surreal — como se cada dedo pertencesse a um ser diferente, a um elemento distinto do mundo.
— Aliás… só pra avisar, o cadeado da porta do quarto já tava quebrado quando eu deixei cair.
O recepcionista passou a mão pelo rosto, suspirando. Virou-se novamente para Kant.
— Me desculpa… eu tenho que resolver essa situação, mas obrigado pela preferência do hotel.
Kant, ainda confuso, continuou encarando o recepcionista enquanto ele subia as escadas.
Em seguida virou-se e saiu pela porta do hall de entrada, alcançando Bella e Trudy que aguardavam ao lado de fora.
— Me tira uma dúvida — Ele apontava com o polegar por cima do ombro, para dentro do hotel. — O atendente da madrugada era um senhor de idade, né?
— Era, sim. — respondeu Bella. — Por quê?
— Nada demais... só queria confirmar. — esfregou uma mão na outra como se afastasse a desconfiança. — E então, pra que lado fica a tal feirinha?
— Tá cego? — retrucou Trudy, apontando para uma placa presa ao chão com uma seta: “Feira Multicultural”.
O rapaz lançou um olhar sarcástico para a garota.
— Ah, Trudy… como eu amo sua bipolaridade.
Ela abriu um sorriso genuíno, como se tivesse acabado de ganhar um elogio.
— Espero que tenha um bom vinho por lá — comentou Bella. — Queriam cinco francos por aquela hospedagem, e nem sequer serviram um vinho.
— Vinho? Bella, era café da manhã! Quem serve vinho de manhã? — perguntou Kant, espantado.
— E por que não serviriam? — respondeu dando de ombros.
Com isso, os três deixaram o hotel e seguiram pelas ruas de paralelepípedo rumo à feira.
À medida que se aproximavam, o ar era tomado por um mosaico de aromas — especiarias quentes, carnes grelhadas e o cheiro reconfortante de pão recém-saído do forno. O lugar borbulhava de vida.
Mercadores chamavam os transeuntes com entusiasmo, exaltando seus produtos; crianças corriam entre as barracas coloridas, rindo alto; viajantes descansavam à sombra dos toldos, alguns tocando instrumentos, outros apenas observando o movimento.
As estantes de madeira estavam abarrotadas de mercadorias — frutas reluzentes, temperos vibrantes, tecidos com bordados minuciosos e até armas artesanais com empunhaduras esculpidas à mão.
Era como entrar em outro mundo — um onde culturas se entrelaçam e tudo parece possível.
Trudy parou por um instante, encarando as crianças. Sua mandíbula travou. A mão foi até a tatuagem, lenta, automática — como quem repete um gesto que virou escudo.
— Tudo certo aí? — perguntou Kant.
Ela forçou um sorriso antes de voltar a andar.
— Tá sim.
— Aham... — repousou sua mão sobre o ombro da jovem conduzindo-a em direção à entrada.
Mal haviam pisado na feira, um homem de avental encardido surgiu diante deles com uma bandeja fumegante em mãos. O cheiro era intenso, quase hipnótico.
— Olha a carne na bandeja, minha gente! Carne fresquinha! Sintam esse aroma! — anunciou, com voz alta e rouca, tentando atrair os primeiros fregueses.
Trudy perdeu o fôlego por um segundo, como se tivesse encontrado um tesouro escondido.
— ME DÁ! ME DÁ! Eu quero! — gritou, se agarrando à perna do mercador como um filhote faminto.
O homem soltou uma gargalhada calorosa e ergueu a bandeja para que ela não a derrubasse.
— Claro, pequena! Apenas uma moeda.
A garotinha se virou para Bella com os olhos brilhando e a expressão mais dramática que conseguia forçar — um verdadeiro espetáculo de piedade.
Bella cruzou os braços e a encarou por um instante, sem se deixar levar. Mas bastou um suspiro resignado para ceder.
— Tá bom, tá bom... — murmurou, retirando a moeda do saquinho. — Aqui está.
Trudy pegou a moeda com um sorriso triunfante e a entregou ao mercador, que logo lhe passou um pedaço bem servido da carne envolto em papel grosso.
Sem perder tempo, ela deu uma mordida generosa e deixou o rosto relaxar em puro êxtase.
— Caramba! — exclamou com a boca cheia. — Que delícia! Meu Deus, que coisa boa!
Bella observava, meio divertida, meio curiosa com a reação exagerada.
— Tá… mas é carne do quê?
O mercador sorriu com satisfação, limpando uma das mãos no avental.
— De peixe.
Kant, que até então examinava algumas adagas em uma barraca próxima, girou o rosto em direção a eles como se tivesse ouvido um disparo.
Trudy congelou. O corpo enrijeceu, o sorriso oscilando no rosto enquanto ela se virava, devagar, para Bella — já com a visão marejada.
— Peixe… é tão bom… — sua voz veio como num fio, quebrada e trêmula. — Por que é tão bom, Bella?
E, mesmo com lágrimas descendo pelas bochechas, ela levou mais um pedaço à boca, mastigando entre soluços.
Kant suspirou e passou a mão no rosto, tentando conter o riso.
— Trocou de personalidade…
Bella abriu a boca, pronta para responder, mas foi interrompida por uma voz feminina suave, surgindo ao lado deles como uma brisa gentil.
— Não se sinta tão mal, garotinha.
Todos se viraram. Ali estava uma mulher loira, de traços delicados, cabelos presos em um coque, olhos azui
s vívidos e um sorriso caloroso.
Kant piscou algumas vezes, atônito.
— Marie?
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