Cavaleiros do Fim Brasileira

Autor(a): zXAtreusXz


Volume 1

Capítulo 8: Onde Dormem as Cicatrizes

 — Acho que assim já está bom — disse Kant, batendo uma mão contra a outra para tirar a poeira enquanto ajeitava a última tora no pequeno trenó de madeira que arrastava consigo.

Endireitou-se com um leve estalo nos ombros levantando o rosto para o céu, onde flocos de neve dançavam lentamente sob a noite cerrada.

— Esse inverno não tá pra brincadeira… — murmurou, passando a mão pela testa, deixando um rastro úmido onde o calor do corpo derretia os flocos.

— É melhor eu voltar pra casa… — soltou um leve sorriso de canto. — As duas já devem estar preocupadas.

Ajeitou as luvas e retomou o caminho por entre árvores retorcidas, cujas folhas secas reluziam sob o brilho suave da neve. Seus passos afundavam a cada passada, vencendo o peso do trenó atrás de si e a densidade da trilha coberta de branco.

O silêncio da floresta era quase absoluto, exceto pelo som abafado da neve sob suas botas… até que algo no ar mudou.

Um cheiro estranho. Azedo, quente. Fora de lugar naquele frio cortante.

Seguindo o odor, logo avistou uma figura caída à beira do caminho. Um cervo. O corpo tremia em espasmos fracos, coberto de moscas que não pareciam se importar com o frio. O sangue escorria, tingindo a neve ao redor de um vermelho escuro. Um fedor rançoso, misto de carne aberta e podridão precoce, pairava.

Ele estreitou os olhos aproximando-se devagar, abaixando-se ao lado do animal. A respiração da criatura era frágil, quase inaudível. O ventre estava rasgado, dilacerado.

Passou os dedos devagar pela borda da ferida, e seu semblante se contraiu. Aquilo não era comum. Não era natural.

Ficou ali por um momento, encarando a dor que pulsava no olhar turvo do animal.

Então, com um suspiro, afastou um lado do casaco. Uma das foices descansava ali, fria e silenciosa… 

Após retomar o trajeto, mais alguns minutos se passaram até chegar a um velho rancho. Encostou o trenó, tirou as luvas e desabotoou o pesado casaco de lã, revelando por baixo a camisa de linho um pouco úmida de suor frio.

Enquanto se livrava das camadas de roupa, voltou sua atenção em direção a um celeiro que havia por perto e franziu o cenho. A porta estava entreaberta.

— Podia jurar que havia trancado…

Assim que se aproximou, notou o cadeado jogado ao chão. Se agachou para pegá-lo e, ao fazer isso, um cheiro familiar invadiu suas narinas — pútrido, espesso. O mesmo que sentira naquela trilha.

Empurrou devagar a porta e entrou.

A cena o atingiu como um soco.

Os animais estavam mortos. Todos.

Corpos abertos, rasgados como se alguma criatura tivesse se divertido com aquilo.

— Lizie! Greta! — gritou, largando o cadeado e correndo em direção à casa, a poucos metros dali.

De repente, uma voz cortou o ar — ou talvez só sua mente.

— É tudo culpa sua...

Ele parou em seco.

— O quê...? — murmurou, olhando ao redor. — Quem tá aí?

— Você podia ter salvado elas. Bastava cumprir sua parte. Era só manter o contrato…

A voz ria. Um som que roía por dentro.

— Não... não de novo... — ele murmurava, trêmulo.

— Papai!

Um grito vindo da casa. A voz de uma menina. Cheia de desespero.

— Lizie! — berrou ele, disparando para frente.

— Tarde demais, Kant. Agora vai aprender do jeito mais difícil...

— Isso não é real! Não pode ser! — gritou, sacando as foices, os olhos arregalados em agonia.

— Apodreça... e viva com a culpa.

Ele caiu de joelhos. As mãos na cabeça. A respiração falha, o grito preso no peito.

— NÃO PODE ACABAR ASSIM!

Ele sentia o medo crescer por dentro, silencioso e sufocante.

— ACORDA!

A voz explodiu como um trovão, despertando-o com um sobressalto. Ainda desorientado, antes que pudesse entender o que estava acontecendo—

THUMP!

Trudy se jogou sobre ele com um baque pesado.

— Acorda pra cuspir, dorminhoco! — gritou com um sorriso sádico, apontando para a janela. — Olha lá fora, bora que o sol já tá raiando!

A luz entrava pelas frestas, dourando o quarto. O rapaz piscou algumas vezes, ofegante, o suor ainda frio nas costas.

Ela o encarava como se nada tivesse acontecido, como se o mundo não tivesse acabado na mente dele segundos atrás.

E por um momento... ele quase acreditou que realmente não tinha acabado.

— Argh, Trudy… acho que você esmagou minhas costas — resmungou, ainda meio grogue, massageando a lombar. — Já não bastava o chão duro…

Ela soltou uma risadinha divertida e se levantou, caminhando até a janela com passos leves, apoiando-se no parapeito para observar o movimento lá fora.

Kant se espreguiçou com um gemido baixo, tentando soltar os músculos doloridos.

— Ai, caramba… O que aconteceu com aquela garotinha delicada e educada que me fez companhia ontem?

Bella riu baixinho enquanto prendia uma mecha de cabelo atrás da orelha.

— Ainda é a mesma, Cavaleiro. Mas desde que colocou as mãos naquele gume... digamos que ela desenvolveu uma certa dualidade.

— Dualidade? — repetiu, arqueando a sobrancelha.

— Tem momentos em que ela é um anjo — continuou enquanto se virava e começava a dobrar as roupas de cama. — e outros… que ela é meio caótica.

— "Meio"? — apontou com o queixo em direção a janela.

— Ei, careca! Eu tô acenando pra você! O mínimo que você pode fazer é acenar de volta, seu mal-educado! — gritou Trudy para um homem que atravessava a rua apressado.

Ela se preparava para pular a janela e correr atrás dele, mas Bella foi mais rápida, segurando-a firmemente pela manga.

— Me solta, Bella! Eu só vou esfregar a cara dele no paralelepípedo da rua, nada demais!

Kant, ainda sonolento, encarava a cena com os olhos semicerrados, tentando entender o caos diante de si.

— Minha nossa… — murmurou, passando a mão no rosto. — E ainda nem tomamos café.

— Falando nisso, eu e Trudy já vamos descer pro café da manhã. Então não demora muito para descer. — avisou Bella, ainda segurando a garota que se debatia como um gato bravo nos braços.

Antes de sair pela porta, lançou a Kant um olhar firme.

— E nem pense que esqueci do que temos pra resolver.

Fechou a porta com um estalo seco.

Ele permaneceu ali por alguns segundos, em silêncio, antes de se deixar cair de costas no chão. Ficou olhando para o teto, os pensamentos girando em torno do sonho que ainda pesava em sua mente. Passou a mão pela testa, como se isso bastasse para afastar as imagens, e respirou fundo.

Passado alguns breves minutos, desceu os degraus do hotel com passos lentos, rumo à sala de refeições. Ao chegar, avistou as duas sentadas à mesa. Ambas já comiam — pão com manteiga e canecas de café à frente.

Trudy o notou primeiro. Sorriu com a boca cheia e acenou com tanta empolgação que quase derrubou a xícara.

Ele retribuiu o gesto com um aceno discreto e suspirou. "É melhor acenar de volta... vai saber se não dá a louca nela..."

Seguiu até o balcão para pegar o café, distraído com a cena das garotas, mas no caminho esbarrou levemente na mesa de um rapaz encostado à parede. O baque foi suave, porém suficiente para sacudir ligeiramente a xícara sobre o pires.

O jovem, imerso em um jornal amarelado, ergueu os olhos por um breve instante. Seu olhar cruzou com o de Kant — mais precisamente, parou por um segundo na cicatriz em seu pescoço — antes de voltar, sem pressa, às palavras impressas.

— Foi mal, amigo. — murmurou Kant, dando um passo para o lado.

Nenhuma resposta.

O homem manteve-se imóvel enquanto levava a xícara de café à boca. Seu rosto seguia encoberto pelo papel, revelando apenas o cabelo negro e desgrenhado, as orelhas adornadas com discretos brincos de argolas douradas e um piercing em sua sobrancelha direita.

Kant ia seguir caminho... mas ao estreitar os olhos notou algo mais.

O jeito como o sujeito segurava o jornal — com naturalidade, sim, mas também com um detalhe que não combinava com o resto. 

As mãos. As duas eram negras como carvão, uma coloração que não parecia ser de nascença... como se fossem feitas de fuligem sólida. As unhas acompanhavam a mesma cor opaca e opressiva, quase como se tivessem sido carbonizadas junto ao restante.

"Talvez eu ainda esteja meio grogue... ou talvez seja só um tipo excêntrico..." pensou, tentando afastar o incômodo. Mesmo assim, não conseguiu deixar de encarar por mais alguns segundos.

O rapaz, no entanto, sequer virou a página. Continuava ali, imóvel, alheio à sua presença — como se já soubesse que estava sendo observado, e não se importasse nem um pouco.

Kant desviou a atenção para o jornal que o sujeito segurava. A manchete chamando sua atenção: 

"A Façanha de Garibaldi: Os Mil Desembarcam na Sicília pela Liberdade da Itália!" 

Apenas observou em silêncio antes de seguir em direção ao balcão como se algo o incomodasse, pegou três pães, uma xícara de café e retornou à mesa onde as duas estavam. 

Assim que se sentou, Trudy arregalou os olhos diante do prato cheio.

— Três pães!?

— É, preciso de mais "presença", segundo você — respondeu com uma careta cínica, imitando a voz dela. — Mas se acha que isso aqui é muito… espera até conhecer minha irmã.

Do outro lado da mesa, Bella o observava, atenta aos seus gestos enquanto ele começava a comer com apetite.

— Só tenta não exagerar — comentou ela, erguendo a caneca de café. — Depois daqui, vamos à feira. É famosa entre os viajantes. Pode ser que encontremos alguém com alguma pista sobre seus irmãos.

O rapaz soltou um suspiro contido e continuou mastigando.

— Ainda com essa história?

— Já entendi que vocês não se davam bem. — retrucou ela, com firmeza na voz — mas tem algo maior em jogo agora. Vai ter que engolir esse orgulho, pelo menos por enquanto.

Ela cruzou os braços, o olhar mais sério.

— Estive pensando… talvez devêssemos procurar por Guerra primeiro. Um especialista como ele faria diferença na equipe.

Kant engasgou na hora.

— Não! — respondeu após uma tosse seca. — Já falei que não vamos atrás deles. Ainda mais daquele merda.

Aproveitou a deixa para mudar de assunto, enxugando a boca com o dorso da mão.

— Mas enfim... o que exatamente a gente tá fazendo? Quero dizer, como vamos saber onde esses demônios estão, ou atrás de quais artefatos eles vão? Podem ser muitas coisas. Qualquer coisa, na real.

Bella refletia sobre as palavras, mas antes que pudesse responder, se inclinou para impedir Trudy de se servir de mais uma xícara de café.

— Melhor ir com calma — interviu, empurrando suavemente a mão da garota para longe da bebida. — Se tomar mais disso, vamos ter outro problema para lidar hoje.

A jovem franziu o rosto como uma criança contrariada, cruzando os braços num protesto teatral.

— Hmph! Então vou ver os peixinhos no lago!

Virou as costas e saiu batendo os pés, bufando a cada passo. Bella apenas a observou, esperando que ela se afastasse o suficiente para que pudessem continuar a conversa com mais seriedade.

Quando teve certeza de que estavam a sós, soltou o ar devagar, girando a alça da xícara entre os dedos, como se organizasse os próprios pensamentos antes de falar.

— Quando a encontrei, ainda conseguia interceptar algumas transmissões dos demônios. Foi logo depois da minha deserção. Descobri que estavam atrás de um artefato... Cheguei a tempo. Um segundo a menos e eles teriam levado mais do que o artefato. Teriam levado ela também.

Bella deslizou os dedos ao longo da xícara, sentindo o calor da porcelana, mas o olhar parecia perdido em outro lugar.

— Naquele dia… depois de tirá-la de lá, quase não escapamos. Eu a segurei nos braços e corri. Por quase duas horas. Se tivesse parado para enfrentar os assassinos que dizimaram a vila dela… nós duas estaríamos mortas.

Voltou sua atenção ao rapaz, mais firme agora, carregado de lembrança e convicção.

— Eu vi o que aconteceu. Vi o terror estampado nos rostos das pessoas. O mesmo que vi no olhar das almas que apodrecem no Hades. E sei o que aquilo significava. O que vem depois… é pior.

Ela fez um leve movimento com a cabeça, indicando discretamente uma mesa próxima, onde um casal alimentava um bebê. O pai fazia caretas enquanto a mãe segurava a colher, os dois rindo baixinho entre uma colherada e outra.

— Se continuarmos só nós três, não vai ser o bastante. Não podemos bancar os heróis solitários. Eu não sei exatamente o que aconteceu entre você e seus irmãos, mas você precisa deixar isso para trás. Isso não é sobre orgulho. Ou mágoa. É maior que vocês.

Ele desviou o rosto para a cena familiar. O riso do bebê era claro, contagiante, e os pais trocavam olhares cheios de carinho. Uma imagem tranquila… Mas por quanto tempo ainda existiriam momentos assim?

Um sorriso sutil surgiu em seu rosto, como um reflexo involuntário — mas logo sumiu, substituído por um murmúrio rouco:

— O mundo também tá cheio de gente podre...

Bella manteve sua atenção nele, como quem já esperava aquela resposta.

— A existência da escuridão não apaga a luz. Assim como a maldade de alguns não diminui o valor da bondade dos justos. “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.”

— Um demônio citando as escrituras? — arqueou as sobrancelhas, surpreso, voltando sua atenção a ela.

— Demônios conhecem mais as escrituras do que qualquer humano. — respondeu.

O olhar dele se voltou para Trudy, que agora se debruçava à beira do lago, lançando migalhas de pão para os peixes, completamente alheia à conversa. Ele suspirou, a expressão carregada de dúvida.

— E ela, por que você liga tanto? Podia ter apenas salvo a garota, deixado num orfanato qualquer... e seguido para o próximo artefato. Não é do feitio de nenhum demônio compaixão.

Bella observou os movimentos de Trudy à beira do lago, sorrindo de leve. Mas não respondeu de imediato. Ficou em silêncio, como se as palavras estivessem presas, entaladas entre o peito e a garganta.

O rapaz sentiu a mudança no ar. A leveza de antes havia sumido — o que restava agora era um peso silencioso, denso. Algo que não precisava ser dito para ser percebido.

Quando finalmente voltou a encará-lo, seus olhos estavam diferentes. Havia ali um abismo de dor contida. Não era apenas tristeza — era algo mais antigo, mais fundo. Um tipo de sofrimento que já tinha se tornado parte dela.

— Não... — sussurrou, a palavra saiu como um sopro. Quase imperceptível, como se tivesse vindo de um lugar muito distante dentro dela.

Ela respirou fundo, tentando manter o controle.

— As pessoas adoram me chamar de demônia… dizem isso como se soubessem o que significa. Mas não sabem. Não fazem ideia.

Fez uma pausa. O maxilar contraído. O olhar vago, como se estivesse vendo outra cena, em outro tempo. Então, sorriu. Mas não havia humor no gesto — só amargura. Um sorriso curto e sem cor, daqueles que nascem do cansaço e não da alegria.

Seus dedos deslizaram até o braço, tocando a pele com leveza — como se estivesse tateando lembranças.

— Minha família... se é que posso chamar assim... nunca foi normal. Cresci cercada de monstros — alguns com rostos humanos. E no meio de tudo isso, havia eu. A aberração. A ex

ceção. A que não deveria estar ali.

Sua voz vacilou, mas não recuou.

— Eu… eu sou humana, Kant.

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