Volume 1
Capítulo 7: Entre Peixes e Espíritos
— Ah... essas luzes... — murmurou Bella para Trudy enquanto caminhavam lado a lado. Sua atenção passeava pela cidade banhada em tons dourados. — É linda à noite, não acha?
Mesmo com o cansaço estampado no rosto e os olhos avermelhados de sono, a garotinha sorriu. Havia um brilho novo ali — um misto de encanto e fascínio — que só uma criança diante de algo mágico poderia exibir.
Genebra se erguia imponente ao redor deles. As ruas de pedra se estendiam sob os pés, úmidas e irregulares, refletindo os lampejos suaves das lanternas a óleo penduradas nas sacadas.
Algumas casas ainda guardavam sinais de vida: sombras se movendo atrás das cortinas, risos abafados escapando de janelas entreabertas.
O ar era frio, carregado do cheiro terroso de madeira antiga e musgo, conferindo à cidade uma atmosfera nostálgica e quase encantada.
Bella respirou fundo, como se por um instante se permitisse relaxar... até sentir a mão da pequena se soltar da sua.
— Trudy…?
Mas a garota já corria alegremente em direção ao grande rio que cortava a cidade de leste a oeste. A água refletia as luzes da cidade como um espelho em movimento, e sob sua superfície, pequenos cardumes deslizavam em dança silenciosa.
— Uou! Olha só quantos peixes! — exclamou, abaixando-se perto da margem, os olhos brilhando como se tivesse encontrado um tesouro.
Bella apenas sorriu, observando-a de longe.
Kant soltou uma risada curta diante da empolgação da garota. Então, num impulso quase infantil, aproximou-se dela e apertou as bochechas com as mãos, empurrando o rosto para frente.
— Olha só, Trudy... eu também sou um peixe!
Ela o encarou com a cabeça levemente inclinada, sobrancelhas franzidas em ceticismo.
— Hm... tá mais pra um peixe doente.
Bella riu, discreta, cruzando os braços enquanto observava a cena. Momentos como aquele eram raros — preciosos. Instantes em que Trudy podia apenas ser... uma criança.
O rapaz se endireitou, ajeitando o sobretudo e olhando em volta.
— E aí, o que achou? Bonito o rio, né? Espera só até ver o lago. Vai gostar ainda mais.
— É lindo… — respondeu, com a atenção ainda voltada aos peixes que nadavam sob a superfície. — É só que… eu sinto falta da minha vila. Lá também tinha um monte de peixes...
Os dedos deslizavam pela água com delicadeza, traçando círculos lentos como se acariciasse uma lembrança distante.
Ele notou a mudança em seu semblante. Sem pensar muito, se abaixou um pouco e pousou de leve uma das mãos sob seu ombro, num gesto simples, mas cheio de presença.
— É mesmo? Quem sabe um dia você me conta mais sobre ela. Queria saber como era.
A jovenzinha o encarou, surpresa por um instante, antes de forçar um pequeno sorriso.
— Sim... claro... eu conto, sim.
Kant sorriu em resposta, então apontou com o queixo para o pequeno boneco preso ao cinto dela.
— Então... vai me contar como isso funciona? O Grimmuff ficar grande e depois voltar a ser um boneco... ele é algum tipo de objeto amaldiçoado?
— Você lembrou o nome dele...
— Difícil esquecer. É único... e combina com a carinha dele. — completou, piscando com uma descontração quase infantil.
Trudy abaixou o rosto, os dedos acariciando com cuidado a cabeça da pelúcia.
— Não... ele não é amaldiçoado. — respondeu com voz suave, quase vacilante. — Se olhar com atenção, vai notar a cicatriz no peito dele. Igual à minha.
Ela ergueu o boneco, como se o oferecesse para que visse melhor.
— O coração... é o ponto mais frágil da alma. É o elo que a mantém presa ao corpo. Se quem empunha o gume tiver uma ligação forte com a vítima—seja de admiração ou de ódio—essa conexão pode atravessar esse elo. Quando a lâmina perfura o coração, a alma se desprende... e segue seu caminho, seja ele qual for.
Fez uma pausa breve, como se escolhesse com cuidado as próximas palavras.
— Mas o espírito... — ela passou os dedos pela linha tatuada no braço, traçando-a com delicadeza. — Ele fica preso à linha da arma. E aí, posso transferi-lo para um boneco que eu tenha costurado com essa agulha. — apontou para a lâmina negra da tatuagem.
Houve um brilho tênue nos olhos dela, entre orgulho e melancolia.
— Mas, pra ele lutar como fazia em vida... ou pelo menos de forma parecida, o boneco precisa lembrar quem ele foi. Não só na aparência... tem que carregar algo dele. A essência. Só que o gume tem seus limites. Espíritos muito pesados—de vontade forte, como anjos ou demônios—estão além do meu alcance. Acho que a linha simplesmente... não consegue segurá-los.
Trudy soltou uma risada baixa, com um tom que beirava a melancolia.
— Essa técnica de transferência de espírito... — murmurou, como se pesasse cada sílaba. — O antigo mestre tecelão sempre se recusou a usá-la. Dizia que era uma arte amaldiçoada.
Ela fez uma breve pausa, o olhar vagando antes de se voltar para a amiga.
— Mas, no fim das contas, Bella disse que eu teria que aprender... se quisesse sobreviver.
Kant manteve sua atenção nela enquanto a via acariciar Grimmuff com cuidado, como se despertasse algo adormecido.
— Ele era um monstro — continuou, em tom calmo, mas carregado. — E eu tentei recriá-lo o mais fiel possível... como era em vida.
O rapaz não respondeu de imediato. Apenas a observou por um momento em silêncio, absorvendo suas palavras. Então, esboçou um pequeno sorriso — não irônico, mas compreensivo.
— Você não queria que ele fosse esquecido, né?
Ela apertou o boneco contra o peito com delicadeza, depois sorriu, de um jeito tênue.
— Acho que não. No fim, percebi que ele só estava assustado. Talvez nem quisesse me machucar...
Ele se abaixou à frente dela, apoiando uma das mãos no chão, buscando seus olhos com calma.
— Talvez você tenha razão... mas, naquele momento, você fez o que precisava. Se proteger também importa.
Trudy ficou em silêncio por alguns segundos, pensativa. Depois, prendeu o boneco de volta ao cinto, os dedos demorando um pouco mais do que o necessário.
— É... acho que você tá certo. — respondeu, puxando discretamente um pedaço da blusa para cobrir a cicatriz no peito.
— Ai. Isso não é um fardo — Ele ajustou o capuz para o lado revelando a própria cicatriz. — Tá tudo bem ter marcas.
Ela inclinou a cabeça, curiosa.
— O que aconteceu com você?
— Família é complicado. — respondeu com uma risada seca.
Ela riu, e o sorriso que surgiu em seu rosto parecia aliviar um pouco do peso que carregava.
Kant se levantou, batendo uma mão na outra para tirar a poeira enquanto a observava por um instante.
"Ela tá bem diferente do que parecia no bar…" pensou, o olhar suavizando. "Tão calma... tão gentil."
Alguns minutos se passaram enquanto eles atravessavam as ruas silenciosas da cidade, até pararem diante de um hotel com um letreiro ornamentado de ferro forjado, cujas letras douradas refletiam suavemente a luz vacilante das lanternas a gás presas à fachada.
— Hotel Paraíso... Será que nesse paraíso eu consigo entrar? — comentou Bella, com um sorriso debochado, lançando um olhar provocativo para os dois.
O rapaz bufou enquanto ajustava as foices cuidadosamente por dentro do manto.
— Ha-ha. Muito espirituosa. Agora vamos logo, que eu tô caindo de sono e... Droga, espera... — Ele começou a tatear os bolsos, franzindo o cenho. — Esqueci que tô sem um franco para pagar a estadia.
Bella ergueu um pequeno saquinho de moedas de seu cinto, balançando diante dele com um brilho maroto nos olhos.
— Relaxa, Cavaleiro. Peguei emprestado lá no bar — disse com uma piscadela, antes de atravessar a porta acompanhada por Trudy
Ele suspirou, incrédulo.
— Como alguém consegue ser tão... lisa… opa! Espera aí... isso aí é meu!
Ao entrarem, o saguão estava silencioso e vazio. Exceto por um senhor de idade, com um chapéu amassado na cabeça, permanecia no balcão de recepção, de costas para eles, alheio à sua chegada.
Ding.
Bella tocou o sino da recepção com um toque leve.
— Boa noite, senhor. Gostaríamos de um quarto com três camas separadas, por favor.
O homem se virou devagar, com um prato de macarrão em mãos e um ar acolhedor no rosto — até que seus olhos pousaram em Bella.
— Boa noi... AI MEU DEUS! — exclamou, dando um passo para trás, quase derrubando o prato. — O que aconteceu com sua pele!?
Kant se adiantou antes que qualquer confusão começasse. Aproximou-se com um sorriso casual e apoiou a mão sobre o ombro da amiga.
— Pois é, eu avisei pra ela não exagerar no sol... mas sabe como é, né? Mulher quando cisma com alguma coisa, não tem quem faça mudar de ideia. — disse, piscando para Bella com um ar teatral.
Ela apenas revirou os olhos, soltando um suspiro resignado.
Trudy abafou uma risadinha atrás da mão.
O atendente, ainda um pouco desnorteado, pousou o prato no balcão, coçando a cabeça ao tirar o chapéu.
— Ah, sim... entendo perfeitamente. Lá em casa é igualzinho. Quando minhas filhas decidem algo, ninguém convence do contrário! — riu, mais aliviado. — Bom, sinto muito, mas infelizmente só temos um quarto disponível esta noite, e são duas camas.
— Vai ter que servir — respondeu Kant, andando até a porta do hall de entrada e se apoiando no batente para apreciar a vista da cidade mais uma vez.
— Maravilha! Então são dois adultos e uma criança, com café da manhã incluso. Isso dá… — o homem começou a anotar no livro de registros, franzindo o cenho enquanto fazia as contas. — Cinco francos!
— CINCO FRANCOS?! — Kant se afastou da porta e voltou ao balcão, surpreso.
Bella apoiou o cotovelo no balcão, deixando escapar um charme natural no olhar.
— Será que não rola um desconto? Estamos viajando com uma criança, sabe… ela tem só nove anos.
— O que? Ei! Eu não tenho nov… — Trudy tentou protestar, mas Kant logo a interrompeu, apontando discretamente para um pequeno lago artificial no saguão.
— Olha lá, um laguinho cheio de peixinhos!
Os olhos da garota brilharam e, esquecendo a conversa, ela correu animada em direção à água.
— Peixinhos? Onde? Onde?
Bella disfarçou um sorriso no canto da boca ao vê-lo acompanhar a garotinha. O atendente, distraído pela cena e pela conversa, coçou o queixo pensativo, e logo voltou a atenção para ela, como se não engolisse aquele papo.
— Sabe, aqui a gente cobra por quarto, não por pessoa... — bufou, fixando-se na garotinha que estava radiante. — A menina parece gostar de peixes, muitos dos meus filhos também amam.
“muitos?” pensou ela.
Ele então voltou para Bella.
— Tá certo, quatro francos, é o melhor que posso fazer.
— Já ajuda bastante. — respondeu, jogando quatro moedas sobre o balcão com um olhar satisfeito. — Muito obrigada, senhor!
Ela pegou a chave com um sorriso gentil.
— Ei, vocês dois! Vamos logo, nosso quarto é o 26.
Subiram as escadas e seguiram pelo corredor até encontrarem a porta. Ao abri-la, foram recebidos por um quarto surpreendentemente espaçoso.
— Uau... — Trudy arregalou os olhos, fazendo um gesto amplo com a mão para comparar o tamanho. — É enorme! O meu quarto na vila era bem menor.
Sem perder tempo, ela lançou Grimmuff sobre uma das camas e pulou logo atrás, afundando nos lençois de algodão macios.
— Aaah... tão confortável... acho que vou acabar me acostumando mal.
Bella sorriu enquanto fechava a porta do quarto atrás de si.
— Foi um ótimo negócio, hein? E o mais curioso... ele nem chegou a perguntar nossos nomes. Dá pra acreditar?
Kant riu de canto em resposta, observando o espaço, cruzou os braços e franziu o cenho.
— Realmente é espaçoso, mas tem um problema... — comentou, virando-se para Bella — onde eu vou dormir?
Ela sentou-se na outra cama, ergueu uma sobrancelha e bateu no colchão ao lado dela, como se o convidasse a sentar.
— Não é óbvio?
Ele parou, surpreso, hesitando por um instante antes de avançar.
Assim que se aproximou, Bella inclinou o rosto, exibindo um sorriso malicioso.
— No chão.
— O quê? — ele perguntou, incrédulo.
— Você vai dormir no chão — respondeu, jogando-lhe o travesseiro com um ar de provocação.
Fechou os olhos por um instante, respirou fundo, buscando paciência.
— Só pode ser brincadeira... Por que vocês duas não dividem a cama, e eu fico na outra?
— Não vai caber! — Bella exclamou firme.
Trudy, ainda deitada, soltou uma risadinha abafada com o rosto socado no travesseiro.
— Parece justo para mim.
Mais tarde naquela noite.
D[eitado no chão, coberto por um lençol, Kant lançou um olhar de reprovação para as duas, já adormecidas. Virou-se, fixou o teto e soltou um suspiro derrotado.
— Devia ter ficado no bar...
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