Volume 1
Capítulo 6: A Tecelã do Firmamento
O vento frio serpenteava entre as árvores, farfalhando as folhas e espalhando o silêncio tenso que pairava sobre o grupo.
Kant mantinha a atenção fixa em Trudy, como se tentasse montar um quebra-cabeça cujas peças se recusavam a se encaixar. Por fim, soltou um suspiro cansado e passou a mão pelo rosto, buscando clareza em meio à confusão.
— Ok... certo. Entendi. — murmurou, mais para si do que para as outras.
Bella observava tudo com um sorriso divertido nos lábios, recostada preguiçosamente no tronco de uma árvore, como se aquela conversa fosse só mais um passatempo em uma noite tranquila.
— Aposto que está se perguntando por que viemos atrás de você, não é? — perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— Você comentou algo sobre demônios estarem atrás de artefatos. — ele respondeu, sem desviar o olhar da garotinha que agora brincava com seu ursinho.
A demônia soltou uma risada baixa, carregada de ironia.
— Isso mesmo. Mas não é só isso. — Ela cruzou os braços, a sombra das folhas dançando sobre seu rosto. — Ouvi umas histórias… sobre uma criatura que odeia demônios. Que os caçaria até o último suspiro. Que faria qualquer coisa para vê-los desaparecer. E dizem que esse alguém… seria você. Cavaleiro. A própria Morte.
Ela pausou, apenas o suficiente para medir a reação do rapaz, mas ele permaneceu imóvel.
— E quando descobri que os Cavaleiros, antes de tudo, eram humanos… aí tive certeza. Era você quem eu deveria encontrar.
Enquanto escutava manteve o rosto baixo, olhos na terra, voz abafada:
— Já falei... não sou quem vocês estão procurando.
— Ah, eu ouvi isso também. Que a Morte renunciou. — Bella riu, balançando a cabeça como quem escuta uma história infantil. — Que coisa ridícula, alguém já te disse que não é assim que funciona?
— Já me disseram…
“Na minha cabeça, fazia tanto sentido simplesmente renunciar ao cargo…” — pensou, sem deixar transparecer nada em seu rosto.
— E essa sua "abdicação" — continuou ela, fazendo aspas com os dedos, zombeteira — acabou criando uma recompensa bem generosa no Inferno. A cada dia, mais estão sedentos te procurando.
Ele soltou um riso seco, sem levantar a cabeça.
— Isso também me disseram.
Ela soltou uma risada curta em resposta ao riso dele.
— Procurado por todo o inferno, basicamente.
— É. — confirmou. — E por isso mesmo... por que eu deveria sequer cogitar me juntar a vocês?
Levantou a cabeça. O olhar afiado se fixou em Bella, carregando um ceticismo evidente.
— Espera mesmo que eu acredite que quer impedir os demônios? Você? Uma demônia?
Ela apenas retribuiu com um sorriso enigmático, os olhos cintilando com algo indecifrável.
Sem dizer nada, arrancou uma maçã do galho acima e deu uma mordida preguiçosa. O estalo do fruto ecoou no silêncio da floresta.
Ao engolir, seu semblante se fechou.
— Assim como você, eu também tenho meus motivos.
Kant não respondeu de imediato. Apenas desviou a atenção por um instante, como se estivesse digerindo não só a fala dela, mas a situação toda.
Então se virou para Trudy, passando a mão pelos cabelos, inquieto.
— E você? Confia nela?
A garotinha hesitou, sentindo um aperto familiar no peito. Seu olhar vacilou, perdido por um breve instante entre as árvores.
— Se a gente tivesse se conhecido em qualquer outra circunstância... provavelmente não. — disse por fim, num tom sincero.
Soltou um suspiro baixo antes de erguer a cabeça novamente, firme.
— Mas no dia em que nos conhecemos, há dois anos, Bella salvou minha vida. E desde então... foi a única família que me sobrou. Então, sim. Eu confio nela.
O rapaz permaneceu em silêncio por um momento, com o rosto inclinado para o chão enquanto a mente pesava as possibilidades. Por fim, ergueu a cabeça para a demônia, o cenho levemente franzido em desconfiança.
— Se o que ela diz é verdade... então tenho que admitir, estou surpreso. — sua voz carregava um tom misto de ironia e cautela. — Uma demônia ajudando uma humana? Isso não é exatamente comum.
Cruzou os braços enquanto se virava.
— Mas se os demônios estão realmente tramando algo grande... por que não deixar isso nas mãos dos anjos?
Bella arqueou uma sobrancelha, lançou a maçã de lado com um gesto casual e cruzou os braços logo em seguida, como se aceitasse o desafio no mesmo tom.
— Pelo pouco que sei, nem mesmo a Estrela da Manhã está envolvida. Se ele não está envolvido, é sinal de que o Céu talvez não considere isso prioridade.
Fez uma pausa, deixando o peso de suas palavras pairarem no ar antes de continuar, com um tom mais sombrio.
— Mas sei que alguns poucos anjos estão levando a questão a sério.
Ela deu um passo à frente, se aproximando do rapaz, e sua voz caiu para um tom mais baixo, carregado de significado.
— Aliás... acho que não mencionei um detalhe importante. Há uma frota demoníaca envolvida — não só lacaios comuns. Eles têm um líder. E aposto que você já ouviu esse nome antes.
Inclinou levemente a cabeça.
— Draevoth... soa familiar, Cavaleiro?
No instante em que o nome foi dito, a postura de Kant mudou por completo.
Ele se virou de súbito, os braços se descruzando enquanto a encarava — agora tomado por uma fúria contida e algo mais profundo... incredulidade, talvez medo. Ou até mesmo lembrança...
— O que você disse? — sua voz era firme, mas havia nela um frio cortante, como se cada sílaba raspasse pela garganta.
Por um momento, sua respiração falhou. A mão direita se fechou em punho, os dedos tensionados como se lutassem contra algo invisível dentro dele.
Trudy, que até então distraída perdida em pensamentos enquanto acariciava seu ursinho, levantou os olhos. A súbita mudança no ar era palpável.
A demônia manteve-se firme, o olhar fixo, impassível. Um pequeno sorriso — quase imperceptível — curvou seus lábios ao confirmar sua suspeita.
— Draevoth... então é verdade — murmurou, como quem acaba de encaixar a última peça de um quebra-cabeça antigo.
Ela avançou um passo, devagar.
— Agora me diga, Morte... se decidir virar as costas, pessoas vão morrer. Muitas. E não só morrer — vão sofrer o que você sofreu. Ou pior.
Sua voz suavizou, mas a firmeza permaneceu, cortando mais do que qualquer ameaça explícita.
— Você conseguiria viver com isso? Sabendo que podia impedir... e escolheu não fazer nada?
Ele permaneceu quieto por um instante. O silêncio falava mais que palavras. Então, ergueu lentamente o queixo, olhos cravados nos dela.
— Me convenceu quando disse que aquele filho da puta tá no meio disso.
Bella sorriu com um ar satisfeito, inclinando levemente a cabeça para o lado.
— Isso foi um sim, cavalheiro?
— É… é um sim. — respondeu, com um suspiro pesado, passando a mão pelo rosto como se estivesse varrendo o cansaço e a raiva ao mesmo tempo. — Mas chega de “Morte” ou “Cavaleiro”, tá? Me chama de Kant.
Trudy abriu um sorriso discreto ao ouvir isso. Havia um certo alívio em sua expressão, como se aquela simples decisão tivesse acendido um novo caminho diante deles.
— Hmm… não. “Cavaleiro” tem mais estilo. — disse Bella com uma piscadela. — Agora só faltam três.
Ele franziu o cenho ao notar o tom despreocupado dela e captar o sentido por trás daquela frase.
— Três? — questionou. — Não… não, nem vem! Nem pensar! Tá maluca se acha que vou trabalhar com meus irmãos.
Ele ergueu uma mão, já antecipando a discussão.
— Esquece. Vamos só nós. Eles não têm nada a ver com essa história.
Bella bufou, impaciente
— Fora de cogitação. Precisamos dos quatro. Vocês podem ser os Cavaleiros do Apocalipse, mas no fim das contas... ainda são humanos. Não estão nem perto do nível que um demônio teria nessa posição.
Kant soltou uma risada curta pelo nariz, afundando as mãos nos bolsos do sobretudo.
— É mesmo? Boa sorte com isso, então. — O tom carregava uma ironia cortante. — Não nos vemos há séculos, e a última vez que nos vimos... bem, não foi exatamente um momento em família.
Ele avançou um passo, encarando a demônia com um meio sorriso carregado de sarcasmo.
— Se nos reunir de novo… pode ter certeza. Vai presenciar o apocalipse de verdade.
Bella sustentou o olhar, séria, e se aproximou no mesmo compasso, como se aceitasse o desafio.
— É exatamente com isso que estou contando.
Kant permaneceu impassível.
— Eu sou a única opção que resta. É isso ou nada.
Sem hesitar, ele avançou mais um passo, ficando face a face. A voz saiu baixa, firme, carregada de tensão.
— E então... como vai ser?
Trudy, até então em silêncio, se aproximou com passos contidos abraçando sua pelúcia. A tensão entre os dois era palpável.
— Bella… — sussurrou, com a voz embargada enquanto puxava o tecido da calça da amiga. — eu não quero ver o apocalipse.
Bella virou-se para a garota. Passou os dedos gentilmente entre os fios do cabelo dela, oferecendo um sorriso breve e tranquilizante — quase triste — antes de encarar o rapaz outra vez.
Ela abriu a boca para responder, mas o som cortante de aço se chocando ecoou entre as árvores, interrompendo qualquer palavra.
Vozes ríspidas começaram a se aproximar, dando ordens com autoridade e pressa. A demônia estreitou os olhos, o corpo enrijecendo de alerta. Ela farejou o perigo antes mesmo de avistar o inimigo.
— Paladinos… — murmurou.
— Temos que sair daqui. Agora. — completou, recuando um passo enquanto ainda vasculhava o entorno. — Mas não pense que terminamos, Cavaleiro.
Ele então arqueou uma sobrancelha e respondeu apenas com uma piscada provocadora.
Enquanto se preparavam para partir, Trudy saltitava ao lado de sua amiga, com o brilho de uma criança prestes a ouvir sua história favorita.
— Ahhh, ouviu isso, Grimmuff? — soltou radiante, apertando a pelúcia contra o peito. — Um dos Quatro Cavaleiros! Isso vai ser incrível! Finalmente temos uma chance de verdade!
Kant lançou um olhar discreto em sua direção — e por um breve instante, o peso que carregava pareceu afrouxar.
Havia algo no entusiasmo puro da garota que cortava o cinismo do mundo como um raio de sol atravessando nuvens pesadas.
Sem mais palavras, o grupo adentrou a floresta, movendo-se com agilidade por entre as árvores sombrias para evitar qualquer encontro indesejado com os paladinos.
(Uma hora depois — arredores de Genebra.)
Após manterem um ritmo acelerado, os três finalmente avistaram uma estrutura que cortava a neblina do anoitecer: os portões robustos de uma cidade fortificada. Madeira antiga reforçada com tiras de ferro formavam a entrada, e uma placa pendia de um gancho enferrujado, rangendo suavemente ao sabor do vento.
(GENEBRA), dizia a inscrição gasta pelo tempo.
— Genebra, hein... — murmurou Kant, aproximando-se da placa. Ele estalou os dedos na lateral da cabeça, tentando puxar alguma lembrança da memória. — Tô quase certo de que alguém comentou algo sobre essa cidade recentemente...
Ele franziu o cenho, dando leves tapinhas na própria testa, como se isso pudesse acelerar o pensamento.
Ao lado dele, Trudy soltou um longo bocejo, esfregando os olhos com as costas da mão enquanto se encostava levemente na amiga.
— Bella... a gente pode achar um lugar pra dormir? Eu tô morrendo de sono.
Ela sorriu de leve, apertando com carinho a mão da garota — um gesto tão natural que parecia hábito. Preparava-se para dar o primeiro passo rumo à cidade quando Kant ergueu a mão, fazendo um sinal para que parassem.
— Ei. Espera aí. Vamos com calma aí, beleza?
Bella parou, lançando-lhe um olhar curioso enquanto arqueava uma sobrancelha.
— O que foi?
— Olha... as pessoas não vão receber bem um demônio andando pela cidade. Você tem, sei lá... algum disfarce? — coçou o queixo, pensativo.
Ela o encarou por um momento. Então, num estalo dos dedos, suas características demoníacas desapareceram: chifres, cauda, olhos âmbar — tudo oculto por uma ilusão perfeita.
— Melhor? — perguntou, com um leve desafio no tom.
Ele inclinou a cabeça, examinando-a de cima a baixo, antes de erguer o braço à sua frente, bloqueando-a novamente.
— Ainda não.
Bella soltou um suspiro, cruzando os braços.
— E agora?
— Você ainda está meio… vermelha. — ele apontou para a pele, que carregava um leve tom carmesim.
A demônia piscou devagar, um sorriso quase divertido surgindo.
— Cavaleiro... — sussurrou com voz tranquila, como se testasse sua paciência — acha mesmo que alguém vai reparar nisso no meio da noite?
Antes que ele pudesse responder, Bella já havia passado por ele, puxando Trudy pela mão, sem abrir espaço para mais objeções.
Murmurou, os olhos baixando enquanto pressionava a ponte do nariz:
— Foi essa a decisão que tomei…
— Você vem ou não? — Bella perguntou, caminhando ao lado da garotinha pela entrada da cidade, sem se virar.
Após um breve momento de dúvida, acelerou o passo para alcançá-las.
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