Volume 1
Capítulo 5: Além do Véu
— O que... o que acabou de acontecer? Para onde eles foram?! — berrou um dos paladinos, girando em círculos, visivelmente tomado pelo pânico. Outros soldados olhavam ao redor, tentando entender o que acabara de se passar.
No salão, os clientes pareciam tão desorientados quanto. Alguns apenas olhavam ao redor, sem reação, outros se ajoelhavam e murmuravam preces trêmulas enquanto os mais esperançosos agradeciam pelo desaparecimento das ameaças.
Trudy, por sua vez, encarava as próprias mãos com uma expressão estranhamente assustada.
— Por que tudo ficou tão escuro...? — sussurou. — O bar tá... esquisito.
O mundo ao redor deles havia mudado. As cores haviam sumido, como se drenadas por algo invisível. A luz tremeluzente das lamparinas agora parecia fraca, doente. O ar se tornara denso, quase sufocante, e os sons pareciam abafados, como se estivessem debaixo d’água.
Os olhos da jovem se arregalaram assim que percebeu que ninguém no bar reagia à presença deles.
— Eles não conseguem ver a gente… — sua voz oscilou com o início do pânico.
Se empalideceu ainda mais.
— Ai, meu Deus... a gente morreu! — choramingou, as lágrimas escorrendo enquanto corria até Bella e se agarrava às vestes da demônia como se quisesse desaparecer ali mesmo.
Kant soltou um longo suspiro, passando a mão pelo rosto.
— Ninguém morreu. — disse, tentando manter a calma na voz.
Trudy fungou, espiando por entre os cabelos desgrenhados com olhos marejados e inseguros.
— Então... o que tá acontecendo? — perguntou, a voz baixa, os dedos ainda apertando o tecido da calça de Bella.
— Resumidamente? Bem-vinda ao Reino Umbral. — respondeu, fazendo um gesto amplo com a mão, a voz arrastada, quase desinteressada. — Ou o vazio... o nada... chame do jeito que preferir.
— Ou Reino da Morte... — murmurou Bella, enchendo a pausa com um tom mais sério.
Ele virou o rosto só o suficiente para encará-la de canto, e assentiu devagar — um gesto contido, mas carregado de significado.
O silêncio que se seguiu caiu pesado como pedra.
Trudy piscou, uma, duas vezes.
— O q-quê?! Então a gente morreu sim! Bella! — guinchou, desatando a chorar outra vez ainda agarrada à amiga como se o chão estivesse prestes a sumir.
Bella, no entanto, abriu um leve sorriso, com a atenção voltada ao ambiente distorcido ao redor.
— Você chamou esse lugar de vazio... pensei que fosse um ser, não um lugar.
— E é. — respondeu, sem rodeios. — É um estado de espírito... e também uma entidade. — suspirou, como quem já lidou demais com aquela coisa.
Ele deu alguns passos, fazendo um gesto largo com a mão, como se apresentasse uma paisagem arruinada.
— Não é exatamente o melhor destino turístico.
Parou por um instante avaliando o que havia ao redor, antes de continuar, agora num tom mais explicativo:
— Mas enquanto estivermos aqui, somos completamente intangíveis, invisíveis e inaudíveis pra quem está do lado de lá. E antes que você repita a pergunta, garotinha... — ele virou o rosto brevemente em direção a ela — NÃO estamos mortos.
Deu de ombros continuando:
— Consigo trazer no máximo duas ou três almas pra cá, dependendo do peso de cada uma.
Enquanto ouvia, Bella estendia a mão até o rosto de um dos soldados. Seus dedos o atravessaram sem resistência — como se ela não passasse de um fantasma.
O rapaz então prosseguiu, vasculhou o ambiente ao redor, como se sentisse o tempo apertar. Seu semblante endureceu.
— De qualquer forma, precisamos sair daqui. Não dá pra ficar muito tempo nesse plano…
Sem esperar resposta, puxou as duas para fora do bar, deixando para trás o caos silencioso que haviam provocado.
Assim que pisaram no lado de fora, um rugido gutural cortou o ar, fazendo os três se enrijecerem no mesmo instante.
— O que foi isso...? — sussurrou Trudy, trêmula, agarrando um pequeno ursinho de pelúcia preso ao cinto.
— Exatamente o motivo pelo qual não podemos ficar. — respondeu Kant, acelerando o passo e guiando as duas em direção à saída da cidade.
Os sons de gritos e vidros estilhaçados ainda pairavam no ar, mas logo se tornaram ecos distantes conforme o trio se afastava da cidade.
— Senhor! — o paladino de corte tigela avançou até Aleric, firme. — Precisamos de ordens. O que devemos fazer agora?
Aleric lançou um breve olhar ao soldado, depois virou-se para a entrada destruída do bar.
— Mandem patrulhas para procurar pela cidade e pela floresta. Vamos ver quanto tempo ele demora para voltar desta vez. — respondeu, seco, mantendo o foco na escuridão adiante.
— Graças a Deus que foram embora! Se não… mais um pouco e a gente virava peneira! — choramingou um dos clientes, agarrado ao amigo como se escapassem da morte por um fio.
— Olha o estado do meu bar… — murmurou o barman, a expressão esmagada pela frustração, encarando os destroços.
— Pelo menos não cheguei a entregar a recompensa do sujeito... dá pra cobrir parte do estrago. — resmungou, andando até o armário dos fundos. Mas, ao abrir a porta, travou de súbito.
— O quê…?!
Já a uma distância segura, envoltos pelo silêncio espesso da floresta, o grupo caminhava sob a luz filtrada pela copa das árvores.
Com um brilho travesso no rosto, Bella deixou que a cauda se enroscasse no bolso e puxasse um pequeno embrulho de couro. Lançou-o no ar com um gesto leve. As moedas cintilaram e tilintaram suavemente ao cair em sua palma.
— É. Aqui já está bom. — presumiu Kant, cessando os passos.
— Kant!?
Uma voz se ergueu entre as árvores... e, antes que alguém reagisse, uma moeda atingiu o rapaz na nuca.
— Aí! Quem foi?
— É-é um esqueleto! — gaguejou Trudy, recuando um passo.
Ducare surgiu da mata, marchando na direção do grupo com o capuz balançando ao ritmo de seus passos.
— Cara! Eu falei pra evitar o vazio por um tempo! Que parte você não entendeu quando eu disse que todo mundo tá atrás de você!? E quem são essas duas?
— Foi mal, parceiro. — respondeu Kant com um meio sorriso, já girando a mão no ar, refazendo o movimento invertido que havia feito no bar. — Tô sem tempo pra conversa. Depois explico. Mas foi ótimo te ver de novo… outra vez.
Num instante, o mundo ao redor mudou. As árvores perderam o tom pálido e fantasmagórico. Eles estavam de volta ao mundo real.
— Meu Deus... que diabos era aquilo? — soltou a garotinha, ainda pálida.
— Um velho amigo — respondeu. — Não se preocupe, ele só tem cara de marrento… ou ossos marrentos, sei lá. Nunca soube direito como me referir a ele.
Ele parou, olhando em volta por um instante. O vento balançava as folhas acima de suas cabeças, e o som da cidade já havia sumido.
— Bom... — disse enquanto esfregava uma mão na outra, como quem se prepara pra algo — acho que estamos longe o suficiente.
Se posicionou à frente das duas, o semblante mais sério agora que estavam em segurança. As árvores ao redor lançavam sombras longas e densas, criando uma atmosfera pesada.
— Hora das perguntas. Primeira: o que uma garotinha tá fazendo andando ao lado de um demônio? Segunda — e não menos importante — onde foi parar aquela criatura enorme que tava com vocês?
Bella soltou uma risadinha baixa, os olhos cintilando com aquele brilho enigmático que irritava e intrigava ao mesmo tempo. Cruzou os braços, o sorriso curvando os lábios.
— Está bem aqui, Cavaleiro.
Trudy deu um passo à frente, com a expressão cheia de orgulho. Do cinto, puxou uma pelúcia costurada e remendada — a mesma que Kant lembrava vagamente.
A criatura, agora reduzida a um formato tosco e pequeno, parecia uma versão corrompida e enfraquecida daquele monstro colossal que ele vira antes.
O rapaz estreitou os olhos e se aproximou lentamente, analisando a pelúcia com desconfiança. A tensão em seu rosto deixava claro que ele tentava encaixar aquela visão com o que havia presenciado antes.
— Não... — murmurou, franzindo a testa. — Ele era muito maior. Não tem como ser o mesmo. Eu lembraria se fosse desse tamanho.
— Como assim? Claro que é ele! — retrucou Trudy, ainda tranquila, segurando o bichinho com firmeza. — E, pra começar, ele tem um nome. Grimmuff. E sim, agora ele está pequeno. Que parte disso é tão difícil de entender?
Ele lentamente voltou sua atenção para ela, como quem pondera se está diante de magia ou loucura.
— Você fala isso como se fosse a coisa mais normal do mundo... — resmungou, ainda confuso, mas já recuando um passo.
Ela deu de ombros, abraçando Grimmuff como se fosse o mascote mais natural do planeta.
— Mas enfim — continuou, voltando o olhar para Bella. — E a outra pergunta? A principal, na verdade...
Bella apontou com um leve aceno de cabeça para Trudy.
— O que foi agora? — perguntou o rapaz, arqueando uma sobrancelha, sem entender.
— Ela. — rebateu Bella, como se a resposta fosse óbvia, um sorriso travesso se formando nos lábios.
— Ela o quê?
— É portadora de um artefato. — completou.
Ele encarou a garotinha de forma mais cuidadosa.
— Sério? Ela? Tem certeza disso? — perguntou, cruzando os braços. — Uma garota de doze anos com um artefato? Esses negócios exigem um vínculo forte, testes, resistência… não é algo que se entrega assim.
Trudy franziu o cenho e caminhou até ele com um olhar irritado, os passos decididos. O sorriso malicioso em seu rosto não escondia o incômodo — mas Bella levantou o braço e a segurou de leve, impedindo-a de avançar mais.
— Não sente nada vindo dela? Nenhuma energia diferente? — perguntou com um tom provocativo.
Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos, observando as duas. Depois fixou-se em Trudy
— Me mostra.
Ela soltou um suspiro impaciente e revirou os olhos enquanto prendia o ursinho de volta ao cinto. Sem pressa, deslizou os dedos pelo braço esquerdo, acompanhando o traçado de uma tatuagem clara que serpenteava da altura do ombro até a mão.
Assim que alcançou o final do desenho, a tinta começou a se dissolver diante de Kant — como se derretesse no ar. E, no lugar dela, uma lâmina negra se formou em sua palma.
Com um movimento fluido, puxou o fio que parecia costurado à própria pele. A linha se desfez como seda rasgando, revelando uma kyoketsu-shoge incomum:
A lâmina lembrava uma agulha de costura, forjada em um metal escuro, coberta por runas antigas que pulsavam sob a luz da lua.
A corda, tão fina quanto uma linha de costura, tinha a cor da neve recém-caída. Apesar da aparência delicada, havia uma presença silenciosa nela.
Ela segurou a arma com firmeza e esticou a linha em direção ao rapaz — o olhar afiado, como se testasse até onde ele ousaria se aproximar.
Ele não recuou. Pelo contrário, deu um passo à frente, fixando-se na arma.
Ele sentia... algo. Não era só uma arma qualquer. A energia que dela emanava era confusa.
— Você… arrancou essa coisa de dentro de uma tatuagem. — disse, a voz entre surpresa e cautela. — Pensando bem… nem lembro de ter visto uma tatuagem em você. Isso foi... sinistro.
Acompanhava cada detalhe da arma, tentando entender.
— Bom… sua kyoketsu é bem diferente. A lâmina parece uma agulha... e essa linha, parece mais feita pra costurar do que pra matar. Mas tem algo além disso.
— A linha carrega uma energia... divina. Quase serena. Já a lâmina… — ele fez uma pausa, franzindo o cenho. — É outra história. Tem algo sombrio ali. Como se fosse amaldiçoada. Maligna, até.
Levantou os olhos encontrando-se com os de Trudy.
— Que tipo de artefato é esse?
Bella deu um passo à frente. Seu sorriso era sutil, mas havia algo de enigmático no olhar.
— Esse artefato, Cavaleiro... é o Gume Tecelão. — Sua voz soou baixa, quase como se contasse um segredo antigo. — A agulha e a linha foram usadas pelo próprio céu para costurar a divisão entre os mundos.
Fez uma breve pausa, deixando o peso da frase preencher o silêncio.
— Do primeiro céu, onde andam os homens e voam os pássaros... ao segundo, o véu estelar que envolve o mundo... e ao terceiro céu, morada de Deus e dos seus anjos. Mas, assim que chegou a vez de costurar a fronteira entre o primeiro céu e o abismo... — seus olhos pousaram na lâmina, a voz baixando ainda mais — a lâmina não resistiu. Começou a se corromper.
E assim nasceu um dos artefatos mais raros que se tem notícia.
Kant franziu o cenho e observou novamente a arma. Ficou em silêncio por um instante, depois soltou, hesitante:
— Sim… claro. Já ouvi falar disso.
As duas o fitaram como se pudessem ver através da desculpa. O silêncio das duas falava por si.
Kant bufou, rendido.
— Tá, tá. Nunca ouvi falar. Mas então... por que nunca ouvi falar de um artefato assim?
Bella deu de ombros com naturalidade.
— Se todo mundo soubesse, não seria raro.
Ele assentiu devagar, não apenas com a cabeça, mas com os ombros também — como se, apesar de confuso, tudo aquilo começasse a fazer algum sentido.
— Certo... mas por que ela? Por que esse artefato está com uma garota?
Trudy ergueu o queixo com leveza. Com um movimento calmo, fez a agulha e a linha sumirem da palma, dissolvendo-se em fragmentos que voltaram a se fixar sob sua pele, reassumindo a forma da tatuagem que serpenteava por seu braço.
Sem dizer nada, puxou sutilmente a gola do vestido, revelando uma cicatriz funda logo acima do coração. Dela nascia a trilha clara da tatuagem, como se cada fio tivesse sido costurado diretamente em sua alma.
— Meu nome é Gertrude Fadewind. — sua voz agora carregava um peso que não combinava com sua idade. — E esse artefato está comigo porque não restou mais ninguém.
Fez uma pausa, olhando Kant nos olhos.
— Sou a última da minha tribo. A única protetora restante. A nova Tecelã do Firmamento.
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