Volume 1: Caçadores – Arco 1: Ressurgimento

Capitulo 6: Mundos Diferentes

Yuki

Qualquer pessoa, independente de quem fosse, possuía: tato, olfato, audição, paladar e visão.

Algumas até acreditavam fielmente que havia um sexto sentido presente em algumas pessoas, algo mais inconsciente relacionado a acontecimentos posteriores.

Porém, havia algo que nenhum historiador ou pesquisador sabia ou teria sequer chegado perto de descobrir; existia um sétimo.

Eu era um súdito de Nômades, conhecido como o reino com os maiores festivais de Valíria, suas grandes quantidades de competições impressionavam qualquer viajante.

Nômades com tamanho tráfego de pessoas, eventualmente acabou se tornando um centro principal de treinamento para os caçadores.

Aquele reino se tornou atrativo para guerreiros de baixo e alto calibre provarem seu valor em combate, mesmo as vezes sem o intuito de adentrar na ordem.

Provavelmente por aquela enorme influência, Dominus nos encontrou. Não sabia dizer se o que eu via era um sonho ou um pesadelo.

Era uma noite gélida com uma forte ventania batendo na madeira apodrecida de nossa casa, junto a ela, entrava em nosso minúsculo quarto, o fedor dos cadáveres das últimas famílias ao lado.

O frescor da água salgada do oceano deixavam nossas narinas ainda mais debilitadas, o ar parecia cada vez mais pesada a cada inspiração.

O som das ondas serenas realçaram as batidas na porta, elas foram como uma melodia de esperança.

Mesmo sem força alguma, eu me levantei e corri em sua direção.

Cada passo que eu realizava, mais minha audição se perdia, meus músculos se apertavam e minha respiração oscilava.

Mas o que eu deslumbrei daquele lado da porta, não era esperança. Lá estava o lorde dos caçadores.

Parado encarando meu estado deplorável enquanto era iluminado pelo luar imponente. Suas palavras foram breves:

— Se ainda deseja salvar seu irmão, venha comigo.

Também sendo as únicas palavras que consegui compreender, minha audição havia ficado abafada enquanto minha visão se tornava quase totalmente turva.

Embora eu estivesse em meus aparentes momentos finais, meu braço ao seu encontro consegui levantar.

Eu sabia muito bem o que havia me dado aquela força; não era o desejo de viver, a preocupação com nossos pais desaparecidos ou aquela fome e a sede destruindo cada parte do meu corpo, não mesmo.

O que me deu forças foi ele, e somente ele. No fim, eu nunca me importaria em perder um braço, uma perna... ou mesmo minha vida; se fosse para salvar o Judi.

Despertado, nosso ambiente era totalmente diferente. Um lugar belo, quente e aconchegante, aquele enorme local era chamado de orfanato.

Uma casa que possuía deveras crianças para todos os lados em uma moradia de madeira enorme. Nunca havíamos chegado tão perto de uma moradia daquelas, parecia até mesmo um castelo de madeira.

Eu e meu irmão nos aproximamos das quatro crianças mais estranhas do lugar, trigêmeos com dez anos de idade e uma garota tão velha quanto eu, juntos éramos as crianças mais velhas daquela casa.

A garota com seu longo cabelo ondulado escuro, mostrava sempre um lindo sorriso em seu rosto. Muito esperta, observava tudo ao seu redor, sempre parecia estar pesando em algo. Muito curiosa, falava e perguntava todo tipo de coisa a quase todas as pessoas.

Os trigêmeos eram quase idênticos em aparência e personalidade, maior forma de diferenciação entre eles eram suas pintas, uma na bochecha esquerda, outra na direita e uma na testa, sempre foram muito energéticos quase o tempo inteiro, irônico eles terem sido tão quietos naquele meio tempo.

Tanto meu irmão quanto eu éramos os únicos com nomes naquela casa, a maioria havia sido pega e trancafiada ainda muito novos em uma situação muito semelhante a nossa, sem pais, amigos ou outros familiares próximos.

Eu não entendia naquela época o que realmente era aquele lugar, mas depois de tanto tempo finalmente compreendi; nós estávamos em um laboratório.

Afastado e escondido, não existia civilizações ao seu redor. A comida mesmo era um mistério, era abundante e não dava sinais de falta, mesmo sem nenhum animal por perto.

Ainda assim, o detalhe mais importante e perturbador, nenhuma criança naquela casa por mais esperta conseguiria decifrar; sem nenhum animal por perto uma coisa era certa; nós éramos as cobaias.

Sair não era uma opção, afinal, existiam monstros horríveis lá fora. Todos tinham medo de sair e serem comidos vivos ou até se tornarem brinquedos de demônios.

Mas estava tudo bem, contanto que seguíssemos todos os protocolos dos homens de jaleco branco sem tardar ou falhar, os demônios permaneceriam apenas lá fora.

Os demônios me causavam calafrios a noite, mas os mistérios sem respostas do orfanato me causavam sentimentos piores.

A cada cerca de três dias, algumas crianças sumiam e outras mais novas apareciam. Quase todas elas afirmavam a mesma coisa, diziam felizes que logo suas famílias se juntariam a eles na grande casa, claro... qualquer Nullu gostaria de comida e moradia para sua própria família, seria um sonho realizado.

Talvez eu deveria ter me importado mais; parado e pensado direito. Mas a verdade era que na minha cabeça... enquanto não fosse meu irmão ou meus amigos, eu não me importaria.

Mas não havia como fugir do inevitável. Foram apenas três semanas naquele maldito lugar para o que eu mais temia ocorresse, em uma noite com névoas densas perante as janelas; nós fomos os escolhidos.

Levados por uma enorme escada quase sem fim em direção ao subterrâneo, onde nos deparamos com um subsolo exuberantemente branco.

Cada pedaço do lugar brilhava tanto que respondia a dúvida em nossas mentes referente as máscaras escuras dos homens de jaleco.

Todos os escolhidos foram separados em duplas para diversas salas espalhadas pelo local. Não conseguíamos ver do lado de fora, a porta abria e se fechava sem deixar rastros, tornando a sala um cubo branco por completo.

Havia uma iluminação que estava saindo diretamente das próprias paredes, uma luz forte e reluzente que iluminava toda aquela sala, eu acreditava finalmente estar vendo magia.

Entretanto, ao conseguir um conhecimento maior em arcanismo, eu ainda não conseguia entender o que eram aquelas luzes naquela sala.

Mas existia um problema maior que o quarto branco e a luz desconhecida; Judi não estava comigo.

Apenas um garoto quieto e estressado, com punhos serrados e machucados por brigas dentro do orfanato.

Fiquei ali; parado, calmo e pensativo. Eu acreditava do fundo da minha alma que enquanto fizéssemos o que eles pedissem, logo estaríamos com nossos amigos novamente... que ingenuidade.

Parados e confusos dentro do claro vazio, os barulhos começaram. Eram gritos, vários aumentando como se estivessem se aproximando.

Começaram baixos e aumentaram gradativamente. Eram nitidamente gritos de dor e agonia, e não cessavam... eram incessantes.

Quanto mais o tempo passava, mais os gritos pioravam. Mas o tempo que havia passado já não era mais relevante, apenas as paranoias eram.

Enquanto eles começavam a nos alcançar, minha cabeça não parava de pensar a mesma coisa repetidas vezes:

— Não... não são eles! Não tem como serem eles... por favor, Caos, Essência, Espírito... ou qualquer um que esteja me ouvindo... que não sejam eles...

Talvez minhas preces tivessem sido ouvidas, ou talvez não. Não importava mais; eles haviam chegado.

Os gritos eram tão altos que minha cabeça a qualquer momento explodiria, o garoto antes inquieto começou a bater em todas as paredes gritando para abrirem a porta.

De repente, um chiado baixo vindo do teto surgiu, e aos poucos o garoto diminuía sua batida na parede, ele estava parando gradativamente enquanto suas pernas perdiam as forças.

Em seguida da queda do garoto o ar pareceu mais pesado. Pouco a pouco minha respiração oscilava e meus olhos começavam a se fecharem... a última coisa que conseguia me lembrar daquele quarto branco, foi dos homens de jaleco entrando e se aproximando do garoto caído perto da parede.

Todas as vezes que me concentrei; eu não consegui recordar. Não conseguia lembrar de nada que aconteceu depois daquilo, mas algo me chamava a atenção, um único detalhe continuava constante e sem uma alteração em minhas memórias sequer; os gritos de dor horripilantes das várias crianças do orfanato.

 Sempre quando os gritos cessavam e minha memória continuavam, eu me encontrava largado acima de uma muralha gigantesca que beirava um habitat montanhoso. Com meu corpo totalmente pálido e quente, muito quente.

Diante daquelas montanhas levemente alaranjadas, eu ouvia vozes em diversas direções, tantas que não compreendia meus próprios pensamentos.

Todos os tipos de conversas mais variadas possíveis, risos, choros, gritos, cochichos, todos com tons diferentes martelando minha cabeça.

Um enorme frio na espinha era o que eu sentia, elas não paravam e eu nem ao menos sabia de onde vinham. Perante as vozes desconhecidas, levantei minha cabeça e olhei ao meu redor.

Aquilo que eu enxerguei me fez entrar em pânico instantaneamente... não tinha ninguém perto de mim. As vozes não viam de fora, mas sim, de dentro da minha cabeça.

Eu estava sozinho e sem meu irmão. Totalmente aparado em um lugar que eu nunca tinha visto e com vozes brigando dentro da minha mente.

Com as lágrimas salgadas escorrendo, fechei meus olhos diante daquela madrugada sombria. Não havia me restado mais nada.

Perdendo o que restava de minha sanidade, eu senti um abraço. Meus olhos não enxergavam, porém, meu corpo não mentia.

Eu sentia cinco pessoas me abraçando firmemente. Um sentimento acolhedor e caloroso me acalmando rapidamente.

As lágrimas secavam, meu corpo não tremia, as vozes sumiam. Abraçando-me estavam eles, Judi, os trigêmeos e a garota.

Meu irmão apertava minha mão bem forte, os trigêmeos abraçavam juntos minha barriga, enquanto a garota usando meu ombro como apoio, acariciava minha cabeça cantando algo que eu não compreendia.

Eu os enxergava, os sentia, ouvia suas vozes, mas eles não eram os mesmos, estavam diferentes... quase transparentes. Mas ao mesmo tempo, igualmente sólidos.

Sentia-me pleno e calmo, como se nada pudesse me abalar, como se a única coisa que importava era que eles estavam comigo, Judi, Liria, Scott, Shed e Styl, eles eram minha família, meu lar e meu refúgio naquele meu pesadelo constante.

Como sempre, eu acordei com meus olhos marejados. Deitada em meu ombro estava Liria me encarando pacientemente.

Ela sorriu para mim e se virou murmurando algo. Olhando pela carroça, Karla estava roncando, Wally se encontrava no fundo fazendo desenhos, Soltrone dormia com suas asas à sua volta em uma espécie de casulo e Akiris estava sentado próximo as rédeas.

Nós passamos a noite no castelo de Dracaries, ao amanhecer partimos em uma carroça comum onde nos estamos naquele momento.

Eu não dormi no dia anterior graças a aquele maldito pesadelo, sonhar com seu passado era o pior tipo de repouso que alguém poderia ter. Observando o céu escuro perante a lua, sentia Liria me beliscando.

— Não está esquecendo nada? — ela perguntou.

Peguei-me pensando por alguns segundos sobre o que ela poderia estar falando enquanto ela aumentava gradativamente a força.

— Olá, Liria! Olá!

Liria soltou minha coxa, se espreguiçou um pouco e deitou mais uma vez para o outro lado.

Ao me ajeitar para sentar, percebi que lá fora estava muito silencioso, não parecia existir movimentação alguma.

Apenas escutava as rodas da carruagem passando sobre a estrada junto as folhas das árvores balançando com a forte ventania.

Os caçadores em outros reinos já estariam realizando pelo menos uma simples e rápida ronda pelas redondezas mais a fora dos muros.

Ah... verdade. Eu sempre esquecia. Os caçadores não possuíam autoridade em Dracaries ou em Gladius.

Dracaries eu conseguia até entender, sempre foram muito orgulhosos sobre sua nacionalidade, sempre prezaram pelo mais forte.

Há gerações seu governo só podia ser liderado pelo mais notável e inteligente guerreiro da atual geração, fazendo assim, os caçadores se tornarem simples viajantes estranhos. Mesmo o reino fazendo fronteira com a grande muralha.

Porém, Gladius não era um reino militar, mas sim comercial. Gladius se tornou o reino com o maior poder em Valíria através de seu policiamento em todos os reinos, implementando suas leis e sua moeda.

Ainda assim, como aquilo era possível? Akiris era um Nullu. Como um Nullu era rei de um reino tão orgulhoso?... Sério? Ele era o homem mais forte e inteligente daquele reino inteiro?

Não, ele era um Nullu, um Nullu! Não tinha como algo assim ser possível. Nullus não podiam utilizar arcanismo ou mesmo possuíam corpos fortalecidos pelos Elementos... quanto mais eu refletia sobre aquilo, mais eu sentia um péssimo pressentimento sobre ele.

Talvez por aquele pressentimento e sensação estranha que ele passava, meus irmãos pareciam observa-lo tão atentamente.

Aquela com certeza era uma das viagens mais quietas que eu havia realizado em grupo, todos ali eram completos opostos uns dos outros.

Karla uma mulher completamente maluca, Soltrone sempre preferia o silêncio, Akiris não parecia gostar da ordem e muito menos de nós, e o Wally, bom, ele era apenas um garoto comum... e estávamos o levando até a ilha...

O garoto não tinha preparo algum para ser caçador, pelas suas perguntas e reações, ele mal aparentava saber sobre arcanismo.

Ainda assim, mesmo com aqueles detalhes aparentes... Dominus veio pessoalmente busca-lo.

Bahamut ficava bem longe da grande muralha e não era conhecido por nenhuma imigração ou ninho de monstros. Então por que estávamos levando um garoto como aquele para a ilha dos caçadores?

Mesmo sendo um híbrido ele nem sequer passou por Nômades ou um treinamento minimamente razoável... logo, a única opção que sobrou, foi proteção.

Precisávamos proteger aquele garoto por algum motivo, um motivo que preocupava até mesmo Dominus.

Os cavalos cessavam seu calvagar, até finalmente a carroça parar. Nós aparentávamos termos chegado. 

Eu levantei para olhar a frente das rédeas, como esperado, enxergava um porto. Diversos barcos atracados até onde minha vista alcançava. Diante daqueles barcos existiam algumas barracas de madeira com placas de comida ou equipamentos desenhados nelas.

Akiris se levantou, virou-se e caminhou em nossa direção. De frente com Karla ele realizou petelecos em sua testa até ela finalmente começar a acordar. Após ele seguiu até o pano no fundo da carroça e o abriu.

Uma claridade alaranjada absurda batia em meu rosto, ainda não amanheceu completamente. Observando Liria ainda sentada, eu estendi minha mão para ela.

Em pé, ela parecia muito sorridente, claramente ansiosa para sair da carroça. Seguindo sua vontade comecei a sair logo atrás de Akiris.

Olhando de relance para trás consegui ver Karla tentando acordar Soltrone ainda encasulado e Wally arrumando alguns livros na sua pequena bolsa.

— Você já tinha visto um porto comercial Yuki? — Liria me perguntou com seus olhos radiando de curiosidade.

— Não... acho que nunca.

Ao descer da carruagem, caminhei para o lado esquerdo. Passando pela traseira da carruagem... o que eu enxergava... era incrível!

Ainda estava amanhecendo, mas já existiam muitos barcos e várias barracas sendo quase abertas, Dracaries parecia quase que viva não importasse a hora, mas um detalhe roubou minha atenção completamente, muitas das pessoas ali... eram Nullus!

Eles não estavam acorrentados, machucados nem nada do tipo, apenas trabalhando normalmente... não existia roupas de trapo, corpos imundos ou mesmo tristeza em seus olhos, eles não demonstravam medo algum...

— Yuki... a maioria dessas pessoas não são Nullus? — Liria apontando para frente parecia tão confusa quanto eu.

— Sim... é o que parece Liria.

Não conseguia respirar, eu não sabia mais como falar... em toda Valíria nunca tínhamos visto nada como aquilo. Era como um conto de ninar para pequenas crianças.

— Nunca imaginei que isso seria possível... todos os lugares que você já passou, olhavam feio pra você só de verem seus olhos — Liria relembrou enquanto sorria.

— Então... por quê? Por que ninguém contou pra gente que um lugar assim existia Yuki? — ainda sorrindo, lágrimas começaram a escorrerem de seus olhos.

Com a visão deslumbrante em nossas frente e o nascer do sol iluminando nossas costas, entrelacei sua mão junto a minha. Liria secou as lágrimas e me mostrou um meigo sorriso.

Ela estava certa, ninguém imaginaria um oásis como aquele para os Nullus. Quando chegamos em Dracaries não vimos nenhuma tenda, nenhuma corrente ou sequer ouvimos o som de um chicote, não existiam sinais de zonas de concentração.

Ele conseguiu, Akiris havia alcançado o nosso... não, o sonho de todos os Nullus. Naquele momento eu tinha entendido... o motivo de um Nullu ser chamado de rei perante aos Ominidianos.

Karla e Soltrone passaram por mim seguindo o chamado de Akiris, Wally e nós éramos os únicos ainda próximos da carroça.

Com a mão esquerda de Liria junto a minha mão direita e tentando manter minhas lágrimas guardadas, eu caminhei até o barco observando Nullus e Ominidianos conversando e se auxiliando... como desde sempre deveria ser.

A bordo do barco conseguia ver melhor sua estrutura, ele era relativamente pequeno, existia apenas uma cabine onde possivelmente caberia somente o motorista e no máximo mais duas pessoas. Uma vela mestra no pilar central do barco e as suas bordas para apoiar-se nas beiradas.

Terminando de subir a rampa escutei cochichos de Wally sobre arcanismo e Primordiais, ele parecia muito interessado particularmente no Aska. Se não me falhava a memória, ele era o Primordial de Energia.

Recordei-me de um livro raro encontrado em uma masmorra que explorei junto a outros caçadores, ele especificava a especialidade dos dois Primordiais daquele exato elemento.

Aska era especializado em velocidade, sendo o mais rápido de todos os Primordiais, enquanto Shyn era especializada em algo chamado gravitatis e uma tal arte espacial.

Por mais que eu pesquisasse sobre, nunca entendi direito o que estava registrado sobre a Shyn, e nem posso averiguar mais sobre o livro já que Dominus o confiscou.

Dentro do barco, rapidamente todos se separaram, Soltrone se deitou na vela mestra, Wally foi para dentro da cabine, Akiris estava junto a Wally explicando provavelmente nosso destino ao marinheiro e Karla apagou outra vez próximo o mastro da vela.

Chegando nos fundos da cabine, eu sentei junto a Liria, observando o oceano e apreciando a paz que os Nullus conquistaram, eles sorriam despreocupadamente sem se importar com quem poderia estar por perto, eles finalmente alcançaram a liberdade... ou o primeiro passo para ela.

— Você acha que um dia Valíria será igual? — Liria questionou ao se deitar em meu colo.

— Eu não sei Liria... Ominidianos não veem os Nullus como iguais.

— Eu sei... nós sabemos. Mas, mesmo assim... tem que ser possível, basta olhar pra eles.

O laboratório me marcou profundamente... seja lá o que eles realizaram me fizeram deixar de ser um Nullu por completo. Meus olhos não eram mais pretos como meus iguais, eles eram olhos de Híbridos com afinidade ao elemento de Espírito.

Não conseguia ter a mínima ideia do que eles haviam feito comigo. Mesmo assim, os Ominidianos não me viam como igual, nem perto disso. Eles se mostravam enojados quando algum tipo de Híbrido aparecia.

Mesmo sendo mais comum nos tempos atuais, ainda era relativamente difícil encontrar alguma pessoa que também tivesse sangue Nullu nas veias.

Com aquilo em mente e de acordo com meus irmãos, todas as outras crianças daquele lugar estavam mortas ou talvez a deriva pela grande muralha.

No entanto, Soltrone me lembrava muito aquele garoto encrenqueiro que ficou preso junto a mim.

Em um primeiro instante acreditei mesmo que fosse ele, mas Soltrone nunca falava sobre o passado, e de acordo com ele qualquer coisa que passou não importava mais, e obviamente, o garoto não tinha asas.

 — Liria, não acho que podemos criar esse oásis... mas acredito que ao menos, podemos ajudar quem possa.

Liria permaneceu em silêncio com os olhos fechados por alguns segundos, era sempre impossível dizer o que ela pensava.

A mente dela as vezes aparentava ser um turbilhão. Em um rápido instante, Liria se levantou reclamando.

— Já entendi! Ta! Ta! Ta!... Judi quer te ver — Ela me informou com um rosto irritado.

Antes que eu pudesse falar, Liria me agarrou em um forte abraço, onde a cada segundo seu corpo ficava mais gelado; quando pisquei, quem esta comigo era Judi, meu irmão mais novo.

Judi tinha um cabelo curto, liso e escuro. Sombrancelhas mais grossas que as minhas e um sorriso gigantesco.

A diferença de tempo entre mim e Judi era alta, mas ele cresceu muito desde o orfanato... já fazia um ano...

— Você demorou! — Judi aparentemente irritado gritou ao se soltar.

— Desculpa, estávamos pensando no seu presente de aniversário.

— Mentiroso.

— É a verdade, seu aniversário é na semana que vem, se esqueceu?

— Claro que não, eu tenho a melhor memória da família — Judi afirmou rindo com seus olhos fechados.

— Queria muito saber de onde ele tirou isso — cochichei para o outro lado.

— Estamos voltando pra ilha? — questionou ao abrir os olhos.

— Sim Judi, lembra do nome dela?

— Claro, o nome era... ah, era...

Ele nitidamente não se lembrava do nome da ilha.

— Ilha Venatorum, Judi.

— Isso! Eu tava só te testando.

— Mesmo? Então me conta, por que ela ganhou esse nome?

— Pera!... isso eu lembro. Hummm... foi porque algum Dominus deu o nome de Ordo Venaseilaoque.

— Ordo Venatorum, Judi.

— Exato! Dez pontos pra você! Chamavam ela de Ordo Venaruntum porque significava ordem dos caçadores naquela língua estranha, ai mudaram para Ilha Venaruntum.

— É... claro.

Acho que eu deveria ignorar a pronuncia e apenas me contentar com o fato dele lembrar do motivo. Judi se virou, aproximou-se da beirada e se apoiou olhando para o mar.

— Sabe, eu não gosto da ilha.

— Por quê?

— Lá não existe diversão, somente pessoas preocupadas e tristes andando sem rumo por todo lugar.

— Os caçadores? — perguntei me levantando.

— Sim, mas aqueles do outro lado também. Eles apenas reclamam como deveriam ter aproveitado mais a vida, como tudo agora é pacato... e alguma outra palavra difícil.

— Muitos deles não queriam nada disso Judi, eles tinham sonhos que queriam realizar, pessoas para cuidar, vidas para viverem, mas não conseguiram. Por isso eles apenas se lamentam.

— Eu sei... por isso não gosto da ilha, ela é chata, prefiro quando você sai explorando outros lugares.

— Eu também, é divertido né? — perguntei me aproximando e acariciando seu cabelo.

— À beça! Quando qualquer um dos trigerios ou a Liria voltam, eles contam várias histórias de como ajudaram você nas batalhas, eu sempre fico empolgado.

— Entendi, então você quer me ajudar em combate não é? Quando você se tornar beeem grandinho tenho certeza que irá ter um poder mega forte pra me emprestar.

— Você acha?! — Judi perguntou exageradamente entusiasmado.

— Pode apostar! Já que você está tão animado, por que não me deixa falar com os gêmeos enquanto você aperfeiçoa seu poder?

— Beleza! eu vou chamar os três, não sai daí.

— Afirmativo capitão! — afirmei ao caminhar para trás e me sentar.

Judi começou a desaparecer em meio ao horizonte, seu sorriso foi a última coisa que vi até minha visão ser tomada pelo oceano, quando escutei.

— Apreciando a paisagem?

Olhei para trás instintivamente. encontrei um garoto com um topete ruivo deitado sobre a cabine, com sua cabeça caída para mim ele disse:

— Do outro lado.

Em seguida alguém puxou minha bochecha. Outra vez eu me virei, deparando-me com outro garoto ruivo.

Aquele possuía um grande cabelo solto balançando junto ao vento, seus olhos pretos definitivamente não combinam com seu cabelo e sua pinta na bochecha direita provava que ele era o Shed.

A minha direita enxerguei Styl, o mais tímido dos três. Ele não gostava muito da pinta em sua testa graças as piadas do Scott.

Styl tinha um cabelo curto, seco e ondulado que sempre estava jogado para algum lado.

— Do que você precisa Yuki? — Scott perguntou se apoiando em meu cabelo.

— Me digam... quando olham para o garoto de olhos amarelos... o que vocês sentem?

Em minha pergunta, Shed e Styl mudaram suas expressões, senti Scott se afastando do meu cabelo e depois se aproximando de seus irmãos. Ele me olhou e disse:

— Não sei como explicar isso pra você.

— Imaginei, tem algo nele que é diferente de tudo o que eu já vi, essa pressão; essa sensação... esse calafrio.

Junto a todas aquelas sensações que surgiram na arena e se intensificaram após aquele urso caótico, também existia o fato de o Dominus desejava proteger o garoto.

— Você não enxerga Yuki? — Styl perguntou.

— Enxergar o que?

— Ele é sobreposto por ele mesmo — explicou Shed.

— Sobreposto?

— É como se eu, Styl ou o Scott estivéssemos no mesmo espaço, dois corpos em uma sincronia perfeita, como... como... uma fusão, é, uma fusão.

— Isso, mas tem mais, os olhos do segundo garoto são diferentes, eles brilham forte como uma chama amarela que percorre por todo o seu olho. Tipo, todo o seu olho mesmo — Scott adicionou a explicação olhando para Shed.

— Mas o pior é quando os olhos se abrem, aquela coisa espalha uma corrente de energia gigantesca; Yuki, aquilo não é humano... é um verdadeiro demônio.

— Caçadores foram feitos para caçar monstros Scot...

Antes de terminar de falar, Scott se aproximou e segurou na gola da minha camisa com sua cara completamente fechada.

Sem riso ou sorriso, não tinha nenhuma piada ou brincadeira, ele estava receoso; apavorado de verdade. Ele me encarou como se vasculhasse a minha alma e afirmou:

— Você vai morrer Yuki! Ninguém pode contra aquilo, nem mesmo Dominus deve ser capaz. Aquela aberração parada dentro da cabine só pode ser uma coisa; um demônio de verdade. Eu te peço Yuki... não lute, não olhe, não sinta, não converse. Apenas fique longe; pelo Judi.

— Você também percebeu não é Yuki? — Shed perguntou ao se aproximar.

— Sim Shed, eu finalmente me toquei... eu já morri naquele quarto.

Scott me soltou e se afastou. Apoiou-se na borda do barco ainda virado pra mim com uma expressão muito melhor daquela de alguns segundos atrás.

— Exatamente, por isso seu corpo é gelado e sua pele está sempre pálida.

— Mas se eu estou morto, por que eu preciso comer? Por que sinto sono? Por qu... entendi... Elementos.

— Sim, aqueles homens fizeram algo com você, por algum motivo não sumimos como os outros que morreram, permanecemos com você. Talvez por nossa própria ampla vontade — Scott explicou se questionando olhando para cima.

— Uma fração das pessoas desenvolve um poder único graças a sua afinidade com um Elemento, graças aqueles homens você conseguiu afinidade com Espírito — Shed falou pensativo.

— Mas tem algo diferente em você Yuki, você não faz parte do Elemento como as outras pessoas, ele que está fazendo parte de você — Disse Scott com a mão no rosto.

— Então é por isso que conseguimos tocar nele? — Perguntou Styl.

— Sim irmãozinho, conseguimos emprestar nossos poderes e magias para o Yuki por isso. Esse também é o motivo para ele apenas conseguir tocar em nós e não em outros espíritos.

Aquela hipótese sempre existiu na minha cabeça, eu sempre dizia para mim mesmo que era mentira, que nada daquilo faria sentido, mas nunca havia feito desde o começo.

Minha família estava morta, mas ainda assim estavam aqui. Nem todo espírito desaparecia após a morte, se eu não me concentrasse direito, via e escutava diversas almas à deriva... tudo graças aqueles malditos Elementos, por causa deles o mundo girava de uma forma peculiarmente horrível.

Mas então, se eu estava morto, se não conseguia interagir com outros espíritos; isso significava que minha família ainda existia porque estavam ligados a mim de alguma forma.

— Scott... se eu já estou de certa forma morto... o que vai acontecer se eu...

Scott saiu de seu apoio, se agachou ao meu lado, colocou uma mão perto da sua boca e cochichou:

— Apenas eu e Liria percebemos, mas você ainda está vivo porque nossas existências alimentam a essência do seu elemento, mas se você morrer outra vez... acho que vai ser de vez, tanto pra você, quanto pra gente.

Scott tirou a mão e se afastou de volta a beirada, enquanto Shed imitava irritado os cochichos de Scott. Em seguida, Scott acariciou o cabelo de Styl.

Ele estava certo... não podia permanecer ao lado do Wally, a minha vida não era mais somente minha, ela era de Liria, Scott, Shed, Styl e do Judi.

Eu precisava protege-los. Mas para protege-los, eu iria precisar de Dominus... eu tinha que entender de uma vez por todas como um Hibrido ficou tão forte daquele jeito, assim... NINGUÉM! Absolutamente ninguém... iria tirar minha família de mim outra vez.

 

 

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