Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 8 – Arco 6

Capítulo 155: As Criações dos Sonhos

Os olhos negros se abriram, camuflados na extensa escuridão.

O homem caminhou a passos curtos, abafados na névoa negra, ao exato meão do dominado recinto.

Respirou fundo. De sobrancelhas arriadas, encarou a palma canhota, levemente trêmula.

Então, estendeu-a adiante, na mira do mesmo plano.

Uma porção da bruma condensada naquele salão começou a se mover, reunindo-se em camadas que, gradativamente, ganharam tangibilidade.

Logo, o aspecto se consolidou.

Um assento de trevas, apropriada para que o atinente pudesse dar a volta e repousar, resfolegado.

Exalou outro lamento pesado.

Não existia luz alguma naquele local. E, mesmo assim, podia ver tudo com tamanha clareza.

Inclusive, o quanto carecia de algo importante.

— Que situação... — Passou os dedos pela longa barba ao resmungar. — Aquelas megeras têm pensamentos engenhosos demais às vezes. Estou em desvantagem...

Piscou com lentidão.

Chegava a ser incômodo o fato de sentir-se um tanto quanto vazio por dentro.

Era como se todos os membros do corpo estivessem pesados. Mesmo divagar lhe trazia cansaço.

Portanto...

— Creio que seja prudente... elevar meu alcance... e me resguardar de infortúnios. — Fechou as vistas. — Até o momento... em que tudo convergirá ao despertar de minha conquista.

O silêncio tomou conta do ambiente.

Bastante tempo se passou.

Adormecido, o dono das trevas permitiu aos acúmulos de Energia Vital manterem-se ativos em sua volta, num trabalho constante.

Em contato direto com a neblina dominadora no saguão encíclico, essa também passou a tomar forma.

Se dividiram em três, no total. Diferente do trono criado antes, essas cresceram de forma vagarosa.

Ganharam não só altura, como extensão.

No avanço imparável dos anos, aqueles moldes se transformaram. Concebidos em figuras humanas.

Braços cresceram, um tronco foi definido.

No limite da metamorfose de escuridão, passaram a adquirir características próprias.

Uns mais masculinos, outras mais femininas.

Uns maiores, outros menores.

Lado a lado, eles ascenderam em suas figuras respectivas. E contemplaram o responsável por os oferecer “vida” logo à frente.

Assim que o último fio de cabelo foi “finalizado”, os quatro, ainda conduzidos pela conexão vital com o criador, se ajoelharam.

No exato momento, os olhos do deus voltaram a se abrir.

Foi rápido ao identificar a personificação do trio, a exemplo dos semblantes soturnos voltados aos próprios joelhos, demonstração essa de completo respeito.

Eu sou vocês... e vocês são eu. — A voz grave do deus se espalhou aos três como um arrepio. — Para igualar os fatores ante aquelas megeras, além de resguardar minha presença de nosso inimigo... darei a vocês o dever de conduzirem os preparativos em meu nome. Seus poderes são únicos. Suas essências pertencem a mim. Porém, todos, sem exceções, carregam suas individualidades...

Todos escutavam em silêncio.

Dois deles já tinham fracos sorrisos, agitados perante tamanha soberania. O outro permaneceu circunspecto.

Todos vocês são Morfeu! Todos são uma fração inestimável de minha Essência! No entanto, ei de nomeá-los, enquanto entidades singulares, despertadas nesse plano. — Estendeu a mão. — Skathi! Haumea! Bergelmir! São os nomes que carregarão enquanto controlam os alicerces de nosso desejo... até que o momento derradeiro seja alcançado.

Sim, Criador — responderam, os três, em uníssono.

Morfeu, o Deus dos Sonhos, voltou a relaxar o braço sobre o apoio do trono de trevas.

Então, os cílios se conectaram com morosidade.

— Primeiro as deixaremos agirem como desejam. E então... — A consciência voltou à escuridão. — A Era dos Sonhos se tornará realidade.

Com os três nascidos de si próprio, voltou a adormecer por mais um tempo.

Abaixo até mesmo da grande escuridão, os estampidos incessantes reverberavam a agonia através das passagens cercadas por celas enferrujadas.

Os calabouços daquela região se mostravam como o lar do sofrimento, fosse físico ou mental.

Em geral, era uma mistura dos dois.

À medida que os chicotes rebentavam, o pranto e as súplicas cresciam exponencialmente.

Só que no entremeio dessa união de mártir, risos agressivos se sobressaíam acima do puro desgosto.

Os dentes afiados subiam e desciam, na iminência dos movimentos recheados de jocosidade dos lábios secos.

Os olhos negros esgazeavam ao limite, a ponto de deixarem que veias estourassem pelas escleras.

Sem um dos braços, perdido numa batalha que ela mesma criou, Megera descontava todas as suas lamúrias nos pobres mortais que ali eram aprisionados.

Torturados, tinham nenhum desejo além da morte, que viesse o quanto antes a fim de os livrar daquele tormento.

Aquilo, contudo, parecia longe de apetecê-los; muito pelo contrário.

— Sofram!!! — O estridente rugido da erínia fazia estremecer a terra; enquanto chicoteava uns com as mãos, usava tentáculos das costas para mutilar outros. — Isso tudo é por depositarem suas fés naqueles desgraçados!! Malditos!! Malditos sejam!!

Não importava o quanto orassem para os deuses ou implorassem por misericórdia à enegrecida.

Todos sofriam por igual, sem distinção de gênero, etnia ou idade...

Os berros misturavam-se no puro desespero, criando uma sinfonia agonizante juntos das perfurações e chicotadas em diversos corpos.

Quem ouvia a tudo isso eram as outras duas, na superfície...

— Não acha que ela está exagerando um pouco? — indagou Tisífone, metade de sua face soturna coberta pelo capuz.

Sentada em um assento não tão distante do ambiente tortuoso, podia escutar os berros proliferados por aqueles que tinham o sangue arrancado e a alma lacerada pela enfurecida.

Não que se importasse muito com eles.

Nem chegava perto de lhe incomodar; confessava até apreciar em certa magnitude.

Mas...

— Tivemos todo o trabalho de capturar esses fiéis de todas, ou quase todas, cidades olímpicas. E Megera continua os matando muito rápido, desde aquele dia... — completou, piscando um dos olhos.

— Deixe-a extravasar. É o que podemos fazer para mantê-la controlada por enquanto — retrucou Alecto, o rosto sombreado pela franja encardida. — Mesmo que ela tenha recebido o que procurou, é bom que fique ocupada descontando sua vergonha nos prisioneiros.

— Entendo o ponto, e sei que é do feitio dela brincar com os mortais. Mas...

— Para agora, Tisífone, é importante que ela não faça outra besteira, como ir buscar os deuses em prol de descontar suas frustrações. Que faça com seus fiéis, portanto. — Apoiou o rosto no punho cerrado. — Perdê-los agora não impactará em nada. Já avançamos a um ponto em que suas vidas não mais importam a eles.

— Se você diz, irmã... — Se retraiu, a ponto de levar os dedos a acariciarem as mechas do cabelo que escapavam nas alas do capuz. — Eu, sinceramente, gostaria de não entrar em ação. Mesmo que Megera discorde disso, aqueles garotos poderiam surpreender as Moiras.

— Você confia neles? — Alecto a fitou de esguelha.

— É meio-termo.

— Já é o suficiente. Permanecemos alertas para o lance que se confirmará, caso venham a falhar.

— O que seria o caso mais provável...

A mais velha adotou o silêncio.

Sabia que, de todas as maneiras imaginadas, obter o favorecimento das Moiras não passava de uma utopia.

Mesmo com as brechas que usufruíam na equação, seria de extremo milagre se fossem capazes de convencê-las a agir contra os deuses.

“Elas já demandaram a favor deles, no fim das contas”, lembrou-se da decisão de entregá-los à vitória na Grande Guerra.

No mínimo, aquela jogada podia se tornar mais numa “distração de luxo”.

Afinal...

— E pensar que vazaram o plano para os deuses — mussitou a encapuzada, o olhar cabisbaixo. — E nem isso foi o suficiente para atrair os “peixes grandes”.

— Eles pensaram como nós. Ou além... — Semicerrou as vistas sangrentas. — Afinal, eles têm aquela peste maldita.

Resmungando consigo, concebeu a falha ganhando mais cores na tela pintada pela mente presunçosa.

Só que era imprescindível que mantivessem tal informação longe dos ouvidos de Megera.

Por isso acreditavam na importância de a respectiva perder fôlego e tempo com os inúteis.

Apesar de ser muito conduzida pela própria cólera, a erínia do meio ainda era bastante perspicaz.

O grande tabuleiro de xadrez, jogado entre a luz e as trevas, já passava pela fase dos entrelaçamentos complexos.

Enquanto os peões se moviam rumo a um horizonte improvável, as peças mais importantes se guardavam ao momento certo...

Só então, quiçá, a impetuosidade que Megera tinha para dar e vender poderia se tornar interessante às forças da escuridão.

Alecto abriu um sorriso deleitoso, revelando os caninos salientes. Interromper a ebulição da semelhante de fato se mostraria um erro.

Pelo contrário, deveria permitir que continuasse sendo alimentada pela fúria.

— Ainda temos surpresas interessantes em nosso arsenal... — Virou os olhos para a passagem secundária do grande templo. — A disputa para usar ou ser usado está ao alcance de nossos olhos.

Tisífone respirou fundo e apenas assentiu com a cabeça.

Com o tempo, os gritos e lamúrias dos sofríveis perdeu ímpeto, a exemplo do frenesi de Megera.

Assim como as balbúrdias findaram no lado de fora, através do interior sombrio elas não mais alcançaram a presença silenciosa.

Nada obstante, os olhos negros se abriram.

Pequenos pontos que só ganhavam algum destaque graças às escleras brancas.

Vangloriou a quietude íntegra que voltava a dominar o recinto fechado, onde a névoa de fuligem insistia em se espalhar pelo domínio pleno.

A face repousada no punho fechado sequer se moveu.

Mesmo ao contemplar o vazio cercado de neblina, podia enxergar, alto e claro, o que o futuro lhe aguardava.

Estava cada vez mais próximo. E isso o envolvia em uma retrospectiva desde onde tudo começou.

Ser permeado em corpo e alma pelo que viveu era a força motriz que ainda lhe empurrava até chegar naquele ponto.

Para ir além.

Os preparativos para a grande reviravolta de uma vida podiam ver sua reta de conclusão.

Onde prevaleceria acima daqueles que o fizeram sofrer sem justificativa alguma.

Aqueles que arrancaram tudo de si, baseados nas sujas convicções de soberania e austeridade.

Condensado nesse ensejo, próximo do limite da utopia, havia se fragmentado.

A desconstrução que qualquer ser, mesmo um grande deus, jamais poderia conceber.

Em vista da futura grande reconstrução daquele mundo...

— Finalmente aquela desgraçada parou — resmungou uma voz alheia na sala, que criou alguns ecos contínuos. — Essas megeras gostam mesmo de fazer o que querem, hein!? Nossa, como irritam! Sem contar o quanto são convencidas em pensar que estão à frente da situação.

— Isso tudo é uma chatice — resmungou um segundo. Sua voz não parecia vir da mesma posição, sendo fruto do outro flanco do grande trono. — Vamos só destruir todos eles de uma vez...

— Ora, vocês dois. O que aconteceu? Estão alterados demais para o meu gosto! — A terceira voz, feminina, soou jocosa. — Criador. Eu não suporto mais esses insuportáveis toda vez! Ficar escutando as lamúrias deles faz mal para minha pele.

Ao se apoiar no topo do respaldo, a intrometida quase sussurrou ao pé do ouvido de seu criador.

Ele, entretanto, piscou com delonga e exalou um fraco suspiro.

— Sabe, Criador?... O senhor poderia delegar a Essência que desperdiçou com eles em mim. — Assanhou-se para mais perto do homem, que nada disse em retorno. — O que me diz? Eu sou a mais interessante, não concorda?

— Que merda você ‘tá fazendo, maldita!? — O primeiro que resmungou elevou o timbre, irritado. Mesmo assim, sorria convencido. — Isso tudo é inveja sua porque não foi enviada pra recolher as sobras daqueles que falharam?

— Que vulgar, Haumea... — O outro expressou seu desapontamento.

— Você acha que eu estou com inveja de vocês, Skathi!? — Franziu o cenho, sustentando a elevação presunçosa dos lábios. — Me poupe! Se eu fosse no lugar de vocês, aqueles moleques nem teriam sobrevivido pra contar história!

— É engraçado afirmar isso quando nem mesmo conseguiu evitar que aquela falha fugisse, não acha!?

Skathi juntou os dentes, posando triunfante nas proximidades da porta de saída do recinto.

Haumea soltou um resmungo, claramente atingida pela disparada do rapaz.

— Parem, vocês três. Que chatice... — Bergelmir, o que restava, bufou com cansaço. — E saia de cima do Criador...

— O quê? Eu sou ele, não é? — Aproximou o rosto do dele. — E logo a fração mais instigante...!

— Você é só indecente! — O convencido rebateu. — Isso faz até que sentido, já que foi incapaz de manter aquela idiota aqui! São duas idiotas!

— Skathi, seu...!!

— O desaparecimento de Ophelia não interfere em nossas ambições. — A voz retumbante do Criador ecoou antes que a garota pudesse xingar seu “semelhante”. — Muito em breve, ela regressará até mim. Todos vocês irão. Para que o ato final seja imediato e imparável.

— Sim, meu senhor — entoaram os três, em coral.

Haumea deixou a lateral do trono, por onde estava prestes a se sentar no colo do superior.

Então, a quietude alastrou-se pelo salão.

Todos sentiram-se desconfortáveis, mas desde sempre já entendiam os próprios destinos.

— Skathi, meu Orgulho. Bergelmir, minha Frieza. Haumea, minha Perversão. — Abriu os braços, as palmas erguidas. — Todos os três devem se preparar ao momento em que iremos compartilhar minha Substância àqueles seres impuros e corruptos. Depois, deverão cumprir suas funções até que o equilíbrio perfeito seja alcançado. Para, então, retornarem a mim...

Aos poucos, os olhos dele se fecharam. Sua voz foi perdendo força, indicando que um inédito período de hibernação viria.

Assim, o pronunciamento desapareceu, já determinado.

Nenhum dos três originados do deus reclamaram de algo.

Haumea, todavia, reergueu-se rapidamente e corrupiou-se na direção da saída.

— Então vou aproveitar a liberdade momentânea...

Quase apoiado com o ombro na porta, Skathi a fitou de perfil.

— Onde pensa que vai!?

— Não é da sua conta. — Empurrou a estrutura vertical sem nem devolver o olhar ao garoto. — Só vou dar uma volta. Se vocês puderam, eu também tenho o direito.

Conforme o rangido se proliferou pelos ambientes, a escuridão escapou um pouco até o outro salão, também envolto em maioria pelo breu.

O ínfimo raio luminoso esvaneceu quando a porta se fechou, sem permitir ao orgulhoso rebater.

Cercada por um manto negro do pescoço às pernas, deixou as camadas que constituíam o interior do grande templo.

Nem mesmo as erínias, sentadas em seus tronos na passagem primordial, disseram algo referente à deixa da garota.

Somente encararam-na, percebendo sua aparência.

Tinha curto cabelo preto, que carregava um volume de pontas até a altura da nuca, alternadas a uma tonalidade índigo.

Mesma cor dos olhos, que se voltaram por um átimo às duas soberanas, delegando um sorriso satisfeito a elas.

Quando deixou o local fechado, já sabia muito bem seu destino.

Depois de tomar o ar maculado pela névoa umbrosa, prosseguiu pelas mazelas da prisão em ruínas, sem ser notada por qualquer indivíduo nas proximidades.

Alguns minutos concluídos durante seu passeio, se deparou com o único que queria encontrar.

— Olá, garoto dos portais — saudou o rapaz coberto dos pés à cabeça pelo característico manto esfarrapado.

Sentado no topo da grande muralha, incumbida de circundar aquela pequena cidade inteira, encarou a aterrissagem inaudível da menina na ponta dos pés ao seu lado.

Debaixo da grossa camada de tecido, observou-a sorridente e com os braços detrás do torso não muito grande.

— Você... O que deseja? — mussitou na soturnidade que lhe era de costume.

Ela piscou algumas vezes, até levantar o indicador canhoto.

— Gostaria de conferir com meus próprios olhos aquilo que vamos tomar em breve! Por isso... — Ergueu o queixo, girou a mão e a estendeu, aberta, à direção do rapaz. — Quer ser meu acompanhante de honra neste passeio!?

Os dois voltaram a trocar olhares em absoluta quietude por aquele período de pura tensão no ar frio do anoitecer.

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